sábado, 10 de junho de 2017

Paulo Varela Gomes: Uma homenagem e a memória de um texto


Por ocasião do primeiro aniversário da sua morte, e na sequência da publicação do livro póstumo «A Guerra de Samuel e Outros Contos», a Tinta-da-china organiza amanhã, 11 de Junho, uma homenagem a Paulo Varela Gomes. A sessão tem lugar na Feira do Livro de Lisboa e conta com intervenções do ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, Eduardo Lourenço e António Guerreiro, que apresenta o livro.

Também em jeito de homenagem, um texto que o Paulo escreveu, sobre cidades, espaço público e mobilidade, para o nº 1 do jornal Manifesto, em Outubro de 1993. Quase 25 anos depois, em ano de autárquicas, o que mudou? Como evoluímos? Temos menos carros nos «centros históricos», é certo, mas teremos mudado substancialmente de políticas e lógicas de transporte, para as cidades e no interior das cidades?


Tirem os nossos carros de cima dos nossos passeios
PAULO VARELA GOMES (Manifesto, nº 1, Outubro de 1993)

Quando o mundo era mais jovem, os capitalistas mais vorazes, os ministros mais boçais e os técnicos mais inocentes, ou seja, nos anos 40 e 50, pensava-se que o problema do trânsito e do estacionamento nas cidades se resolvia com a fluidez.
As cidades norte-americanas foram esventradas para fluidificar o tráfego; desapareceu uma parte do centro histórico de Bruxelas (e é apenas um exemplo). Viadutos, vias rápidas, túneis, largas faixas de rodagem, tudo foi posto à disposição do novo cidadão: aquele que, além de ter cabeça e votos, tem um motor e quatro rodas.
A palavra fluidez é muito desagradável. O conceito, por seu lado, é mentecapto. A nível central e local, Portugal é governado por homens dos anos 50: fluídos e mentecaptos. Nos últimos tempos, Ferreira do Amaral tem-se entretido a presentear as Câmaras com acessos cada vez maiores para o tráfego automóvel. As Câmaras, agradecidas e obrigadas, dão caminho aos carros até ao centro das cidades - e estacionam-nos à balda em cima dos passeios, constroem cada vez mais parqueamentos, esventram ruas. Rumo ao engarrafamento local.

É difícil discutir com os automóveis: são mais rápidos e mais confortáveis que qualquer outro meio de transporte. Baseiam-se num princípio antigo e incontornável: se eu estou na maior, os outros que se tramem! São uma das invenções culturalmente mais importantes e positivas da época moderna. Sem eles, muitos milhões de seres humanos teriam uma vida mais monótona e infeliz. Sem eles ninguém poderia ir longe, sozinho ou bem acompanhado. Sem eles não haveria revistas de automóveis, design de automóveis, perseguições de automóveis, "dragsters", carochas", "espadas" e "carrões" (sem eles não haveria também corridas de automóveis - mas isso que se lixe, só o Adriano Cerqueira é que gosta). Os portugueses, por exemplo, passaram quase cem anos a ver passar os carros dos outros e só agora se atingiu a cifra de 300 carros por mil habitantes, mais baixa que a média europeia (400/1000). Não é justo nem é possível dizer às pessoas para se contentarem com as fotografias das revistas. Não se trata de estrangular o automóvel; trata-se de impedir que ele nos estrangule.


O congestionamento das cidades com o tráfego automóvel particular destrói pessoas e ruas: os hidrocarbonetos, o dióxido e o monóxido de carbono, os óxidos de nitrogénio, causam um número crescente de doenças respiratórias e de pele (nomeadamente em crianças), acidificam os solos e a água, densificam o ozono nas camadas baixas da atmosfera. Os carros provocam prejuízos colossais no património construído. Estudos conduzidos na Suécia comprovaram também que a vegetação perto ou dentro das cidades poluídas pelo automóvel cresce muito mais lentamente e morre muito mais depressa. O prejuízo económico causado às empresas, às autarquias, ao Estado e aos particulares pelas horas perdidas em bichas ou à espera de lugar já foi contabilizado em algumas cidades: em Paris, por exemplo, monta a 2 biliões de dólares por ano.

O caos automobilístico prejudica vários novos direitos fundamentais: antes de mais, o direito à cidade e, dentro desta, o direito ao centro histórico; estudos recentes provam sem margem para dúvida que a multiplicação dos carros e dos seus efeitos é uma das principais razões para a fuga dos moradores das áreas centrais das cidades e a sua consequente degradação. Londres e S. Francisco são os exemplos mais conhecidos de centros urbanos que sobreviveram e ganharam vida com a diminuição do trânsito. Pelo contrário, cidades como Dallas ou Houston têm hoje centros totalmente mortos e em espaços fechados.
O excesso de utilização do automóvel prejudica também o direito aos espaços colectivos, o direito a ir à praia, ao cinema, às compras, ao que se quiser, das multidões que não têm automóvel - e até daquelas que o têm. A utilização automóvel das ruas da cidade já não é um direito básico. Tem de tornar-se num direito condicionado por outros direitos mais importantes.
Não é evidente que o busilis da questão esteja somente na ausência ou má qualidade dos transportes colectivos. Paris, por exemplo, tem a mais densa e funcional rede de metro, autocarro e comboio do planeta para uma metrópole daquela dimensão. A linha Este-Oeste do RER transporta por dia 800.000 passageiros, número único no mundo. Sucede, porém, que o sistema está à beira de ruptura (400% de aumento de engarrafamentos nos últimos anos, 100.000 carros mal estacionados por dia, etc.). Há quatro razões para isto: em primeiro lugar, entre 1974 e 1980, os fluídos e mentecaptos lá do sítio optaram pelo desinvestimento público nos transportes colectivos; em segundo lugar, aumentou a distância de residência em relação ao centro; depois, não há transportes entre subúrbios, obrigando toda a gente a atravessar a cidade; finalmente, 1/3 dos parisienses não desistiu de trazer o carro para a cidade. Chegou e sobrou para lixar a vida aos outros dois terços. Hoje é claro para todos os especialistas - e até para quem se der ao trabalho de pensar com a cabeça e não com o carburador - que os indispensáveis aumento, diversificação e melhoria de qualidade dos transportes colectivos têm de ser acompanhados por medidas sérias que desencoragem por todos os meios o trânsito automóvel de vaivém e a permanência e circulação nas cidades, entre as 8 e as 20h, de carros de não residentes. Qualquer projecto culturalmente moderno e politicamente democrático para as cidades implica esta coragem.

Os autarcas e os ministros portugueses têm tendência para deitarem as cabecinhas no nosso ombro e chorarem imenso de cada vez que é preciso fazer qualquer coisa que não dê imediatamente nas vistas eleitorais. Pois bem, vejam como se faz nas melhores cidades europeias e vão chorar para outro lado.
Em Estocolmo, para circular na área central da cidade nos dias úteis, entre as 9.00h e as 18.00h, é precisa uma autorização especial. Quem não a tem paga multa. O modelo existe também Singapura, em Bergen, em Oslo, etc. O cartão que identifica os felizes contemplados pode ser usado, dentro das cidades, nos transportes colectivos.
Na cidade de Bolonha, a política camarária eliminou sistematicamente parqueamentos e autorizações de estacionamento no centro. Em 1989 só existiam 40.000 autorizações para empresas (com o máximo de uma hora de duração!), 22.000 para moradores, 20.000 para utilizadores de garagens particulares. E Bolonha continua, apesar disto tudo, a ser invadida todos os dias por 300.000 carros particulares. A municipalidade acentuou recentemente a sua política drástica em defesa do centro histórico: foram canceladas mais 50.000 autorizações de entrada na cidade, as principais vias foram dotadas de sistemas de vídeo que permitem detectar e multar automaticamente os carros em situação ilegal, foram completados 60 quilómetros de ruas apenas para peões e ciclistas. O objectivo é reduzir o tráfego em 70 por cento.
Na maior parte das cidades alemãs o estacionamento no centro está progressivamente a ser restringido a moradores: para os outros há parquímetros caros e de curta duração. Em Berlim proibiu-se a construção de novos estacionamentos em algumas áreas; os edifícios públicos só terão parqueamento se não houver transportes colectivos por perto. Em Zurique, eliminaram-se 10.000 lugares de estacionamento público entre 1970 e 1980. Desde então não foi criado mais nenhum. O novo regulamento de obras impõe menos 80 por cento de lugares para carros nos prédios particulares! Na área central de Amsterdão só é permitido um máximo de quatro horas de estacionamento. Entre 1975 e 1989 diminuíram de 28.000 para 8.000 os veículos parcados nessa área. A administração concede benefícios especiais para residentes e empresas. Esses benefícios seriam considerados uma severa penalização entre nós: uma autorização apenas para firmas até 50 empregados, uma por cada 50 empregados para firmas maiores - está-se mesmo a ver que assim só têm lugar nos estacionamentos os BMW, Mercedes e Jaguares: quem tiver alternativas mais democráticas que levante o braço.
É verdade que todas estas cidades (com a excepção - significativa - de Bolonha) há muito que têm estacionamentos nos prédios e que as cidades portuguesas se caracterizam pela sua ausência. Mas seria bom que a mania de construção de parqueamentos que actualmente atingiu os nossos promotores e patos-bravos (sempre os últimos a aprender e os primeiros a desaprender) fosse controlada por Câmaras menos liberais: é preciso ficar aquém dos números europeus e destinar os lugares, em absoluta prioridade, aos moradores. Em Lisboa, Sampaio não conseguiu construir os parqueamentos que queria porque a construção de um só lugar custa qualquer coisa como 1.000 contos. Tarifas lucrativas espantariam os clientes, pelo que a iniciativa privada se desinteressou da coisa.

A solução não podia ser mais simples: ou os autarcas constroem parqueamentos para residentes e outros, periféricos, para não residentes, com o dinheiro das Câmaras e o mais que conseguirem arranjar, ou a gente não vota neles. Desenrasquem-se.
Em Zurique, os Ferreiras do Amaral suíços conseguiram mobilizar contra a Câmara uma vasta campanha filo-automobilística que desembocou num referendo - a autarquia foi impedida pela população de pôr em prática um plano de diminuição drástica das faixas de rodagem para carros no centro da cidade. Antes que os nossos autarcas e ministro esfreguem as mãos de contentes, aqui vai um pedaço de más notícias: sondagens mais recentes demonstram que os zuriquenses mudaram de ideias e prezam agora mais a limpeza das vistas e dos espaços que os seus carrinhos parcados no centro.
Os transportes colectivos da capital suíça são famosos pela sua altíssima qualidade. Circulam em faixas especiais e têm prioridade absoluta nos semáforos pelo sistema de «Tempo de Espera Zero» (o semáforo muda para verde à aproximação de um autocarro ou eléctrico; fica vermelho para os carros). Muitas empresas e centros comerciais dão aos seus empregados e clientes um passe de transportes colectivos. A mobilidade ecológica é encorajada: trânsito de peões, de bicicletas, de carrinhos eléctricos para idosos. Em Zurique, que tem tantos altos e baixos como Lisboa, a autarquia conseguiu convencer muitas empresas a emprestarem diariamente bicicletas («mountain-bikes») aos seus empregados e a muitos cidadãos.
Amesterdão é também um excelente exemplo, entre muitos, de uma política democrática de desenho e utilização de espaços colectivos: passeios e faixas de rodagem são ao mesmo nível, separados por pinos metálicos ou de pedra; deste modo foi possível estreitar as zonas de rodagem (provou-se que o parqueamento incorrecto é inevitável com faixas de mais de 3,5m de largura) e limitá-las a circulações só num sentido, atravessadas constantemente por peões e por cargas e descargas (ou seja, extremamente incómodas para automobilistas). O estacionamento é proibido e surgiram inúmeros espaços para ciclistas e transportes colectivos. Na cidade existe um organismo especial para controlar o estacionamento e regulamentar parqueamentos: são os cerca de 300 funcionários que aplicam braçadeiras nas rodas dos carros mal estacionados e conduzem dezenas de veículos de reboque, pequenos e manobráveis. Um organismo idêntico funciona em Bolonha com cerca de 600 trabalhadores. A experiência de outras cidades ensina que a entrega de parques de estacionamento a privados só resulta se forem estes a controlar também o estacionamento ilegal nas áreas envolventes.

A mudança de imagem e qualidade estética-vivencial de comboios ou autocarros pode fazer milagres em matéria de aceitação popular, como está a suceder em algumas autarquias da periferia de Paris. De facto, um dos aspectos menos notados da decadência da qualidade dos transportes colectivos e da ascensão do transporte individual é o facto de isso provocar o abandono de autocarros, comboios e metro pelos trabalhadores - dando lugar à sua ocupação pelo lumpen. A linha de Sintra é um bom exemplo deste problema. E de outro, a ele ligado: há muito menos crime nesses comboios do que se diz. Mas o facto de o tam-tam do boato urbano propagandear os comboios de Sintra como uma espécie de Bronx ferroviário resulta da decadência da qualidade desses comboios... e, ao mesmo tempo, causa a acentuação dessa decadência.
Fernando Gomes já percebeu tudo: vendeu o eléctrico rápido que vai ser construído no Porto como se fosse um metropolitano, fez uma exposição, obrigou Ferreira do Amaral a desembolsar 20 milhões. Só é pena que o eléctrico vá do Castelo do Queijo à Rotunda e à Trindade em vez de percorrer áreas mais necessitadas. O povo percebeu, claro: assim é mais barato e dá mais nas vistas. Por esta vez passa. Da próxima, Gomes perde votos e é bem feito.
Se a fluidez deixou de ser um imperativo no que respeita aos carros, tornou-se a palavra de ordem para os transportes - nos quais deve ser possível passar fácil e comodamente do comboio suburbano para os autocarros, para o metro, para os eléctricos. Ou seja: não se deve passar à portuguesa: no meio da poeira, debaixo de chuva, aos «esses» por entre obstáculos, arriscando a vida nas vias rápidas. É que este exercício do luso desenrascanço encoraja muito as pessoas a mudarem-se para os seus carros e a ficarem nas bichas a ouvir a Rádio Nostalgia.

O exemplo português mais positivo em matéria de transportes e espaços colectivos é o de Évora. O plano de circulação e transportes, velho de 13 anos, entrou em colapso: a Rodoviária Nacional não implantou as carreiras necessárias na periferia e no centro histórico (que ficou cheio de carros). A revisão do plano implica uma série de estacionamentos na via da cintura, pagos pela autarquia, construídos em terrenos da autarquia (ou em quartéis desactivados). A senha com que o cidadão pagará o estacionamento do seu carro permitir-lhe-á utilizar também, se quiser, os mini-autocarros que servirão o centro. Aqui, o estacionamento será fortemente penalizado com parqueamento tarifado. Para tornar o exercício das pernas mais apetecível a eborenses e visitantes, não haverá carros em cima dos passeios, serão recuperadas fachadas e espaços abertos, haverá mais esplanadas.
São boas notícias, não são? Não há como um «happy-end». Especialmente quando só temos visto filmes tristes em Portugal, em matéria de transportes, espaço público e direitos humanos e urbanos.

5 comentários:

Dias disse...

Justa homenagem e um excelente texto!
(É tão raro encontrar-se hoje bom jornalismo, com trabalho sério de investigação e uma fina ironia...)

“Diversificação e melhoria de qualidade dos transportes colectivos têm de ser acompanhados por medidas sérias que desencoragem por todos os meios o trânsito automóvel de vaivém e a permanência e circulação nas cidades, entre as 8 e as 20h, de carros de não residentes.”

Como muitas outras pessoas, aguardo vivamente que LX enverede por essa via. Até agora é notório que há cada vez mais dificuldades para circular no centro, com automóvel particular. É um bom sinal. Mas os transportes colectivos (ainda) não dão resposta cabal, os parques nas entradas da cidade (ainda) não se vêem, a Emel faz um trabalho desequilibrado e sem proporção, onde o “zelo” vai do 0 ao 100, por vezes assemelhando-se a extorsão. Assim não vamos lá…

Anónimo disse...

Já não é possível continuar calado perante a displicência desta esquerda, a falta de frontalidade nos discursos em tudo o que diz respeito ás cidades é constrangedora. As cidades são cada vez mais lugares de elites, e são estas elites que esta esquerda anda a defender. Comprar casa num grande centro urbano é hoje em dia uma extravagância, o comum português foi empurrado para a periferia da cidade e o que se tem feito nos últimos anos é dificultar o acesso à cidade de todos os que vivem fora dela.

João Pimentel Ferreira disse...

1) Em relação ao texto dos automóveis, excelente texto! Excelente.
Repare que já ultrapassámos a cifra dos 300 por mil, de acordo com o INE deveremos andar já perto dos 500 carros por mil habitantes, ou seja, um carro por cada dois habitantes.

2) Caro Anónimo, o plebeu foi empurrado para a periferia exatamente por causa de um fenómeno da era automóvel chamado espalhamento urbano (urban sprawl). O carro, ao necessitar de mais espaço, torna as cidades menos compactas, e por conseguinte, os centros sendo mais escassos, ficam mais caros. Sobre esse mito da população e do carro, veja este gráfico.

3) Embora eu subscreva este texto, dou sempre o caso da Holanda. Na Holanda, um país marcadamente liberal, mesmo economicamente, ter carro é um luxo. Ou seja, o capitalismo regulado não é incompatível com o respeito pelo ambiente e pela boa qualidade de vida dos cidadãos.

João Pimentel Ferreira disse...

Tão refrescante e tão atual, numa altura em que todos berram que são os turistas os culpados da desertificação do centro da cidade:

"O caos automobilístico prejudica vários novos direitos fundamentais: antes de mais, o direito à cidade e, dentro desta, o direito ao centro histórico; estudos recentes provam sem margem para dúvida que a multiplicação dos carros e dos seus efeitos é uma das principais razões para a fuga dos moradores das áreas centrais das cidades e a sua consequente degradação."

Anónimo disse...

Este João Pimentel ferreira saberá de quem é o texto?

Saberá quem foi o Paulo Varela Gomes?

Conheceria ele a sua integridade intelectual e de como ele abominava os vendedores de banha da cobra?