quinta-feira, 1 de junho de 2017
Façamos o jeito a Montenegro
Pela voz de Luís Montenegro, o PSD trouxe ao debate público o tema da reforma do sistema eleitoral. Percebe-se o momento escolhido: atravessado por uma crise de discurso político e pressionado pela iminência da divulgação dos resultados económicos do 1º trimestre, havia a necessidade de recuperar um tema de grande acolhimento mediático e popular para polarizar notícias e deixar cair no dia seguinte. Desta feita foi o sistema eleitoral, mas podia bem ter sido a revisão do orçamento da frota dos automóveis ministeriais. O importante é o ruído.
Mas vamos às propostas. O líder parlamentar do PSD sugere três medidas essenciais: 1) redução do número de deputados; 2) introdução do voto preferencial e 3) criação de sub-círculos eleitorais nos distritos de maior dimensão.
Quanto à primeira proposta não me alargarei muito. Quero apenas referir que a poupança marginal que essa medida representaria (os vencimentos de umas poucas dezenas de deputados são uma gota de água no oceano do Orçamento de Estado) nunca daria para compensar o prejuízo democrático da diminuição das minorias políticas representadas. Além de disporem de menos meios e deputados para atenderem à multiplicidade de solicitações do trabalho parlamentar, onde não se insere apenas o plenário mas também todas as comissões especializadas, os partidos minoritários seriam ainda mais vistos como resíduos representativos da sociedade portuguesa, comprometendo a sua projeção e favorecendo a concentração no centro do espectro político.
Olhemos agora a segunda proposta. O voto preferencial sugerido por Montenegro é um sistema que já encontra implantado em países como o Brasil. Funciona do seguinte modo: quando o eleitor se dirige à urna, não vota apenas no partido pretendido mas também no candidato que mais prefere desse partido. Segundo os seus defensores, este modelo tem a vantagem de atribuir maior liberdade de escolha ao eleitor, que deixa de estar condicionado pela ordenação de candidatos definida centralmente pelas direções dos partidos. Nada mais enganador, já que uma das outras características do sistema é que o número de votos recebido por um dado candidato contribui para a sua eleição mas também, em menor medida, para a eleição dos demais candidatos do partido que representa. No Brasil, esta arquitetura eleitoral originou comportamentos que obscurecem a democracia. Na verdade, tornou-se prática comum os partidos utilizarem figuras mediáticas como candidatos, desde ex-futebolistas a comediantes em desgraça, passando pela mulher-pêra e pela mulher-melancia, de modo a que os votos que estes conseguem reunir contribuam para eleger os burocratas ocultos dos partidos, figuras cinzentas totalmente desconhecidas dos cidadãos. Existem até partidos sem matriz ideológica definida, popularmente chamados “partidos pega tudo”, que baseiam a sua ação política no convite a figuras mediáticas para integrarem as suas listas. É um jogo onde todos os participantes ganham: ganha a celebridade por ter um partido pelo qual ser eleita, ganham os membros do partido por serem eleitos à sua boleia. Só perdem a democracia e os cidadãos.
O centro da política desloca-se do debate de ideias para o show mediático. Os valores e as propostas políticas são substituídos por índices de popularidade, em grande medida construídos pela comunicação social de massas, frequentemente conivente com as estruturas de poder instituídas, o que reforça o viés conservador do modelo. Tudo é pior. A maior liberdade individual do sistema é um logro.
Por último, a proposta de criar sub-círculos eleitorais teria o mérito, segundo o deputado social-democrata, de aproximar os eleitos das localidades que os elegeram em distritos de grande dimensão. Antes de respondermos a este argumento, importa descrever sucintamente o sistema eleitoral português: Portugal tem 22 círculos eleitorais, compostos pelos 18 distritos, as 2 Regiões autónomas e os círculos Europa e Fora da Europa. Cada círculo eleitoral elege um número de deputados determinado pelo número de cidadãos eleitores. Assim, círculos com maior população como os de Lisboa e Porto elegem muito mais deputados do que distritos com pouca população, como Portalegre ou Bragança.
O sistema de círculos por distritos/regiões autónomas é justificado pela necessidade de a representação democrática assegurar a dispersão geográfica do território. Mas aqui reside desde já o primeiro problema: como é sabido, os candidatos a deputados pelos vários partidos são amiúde fixados centralmente, após consulta limitada às estruturas locais. Desde logo, não se percebe como é que Montenegro resolveria esta questão aumentando o número de círculos eleitorais.
Adicionalmente, a desmultiplicação em vários círculos constitui com frequência um estímulo ao voto útil. Tomemos o caso de Bragança, que elege apenas 3 deputados: que incentivo tem um eleitor para votar num partido minoritário, digamos, no Bloco de Esquerda, se, dada a concentração do voto tradicionalmente ao centro e o escasso número de deputados eleitos pelo círculo, a probabilidade de esse partido eleger um deputado por esse distrito é residual? O incentivo é pouco. Poderá querer contribuir, por convicção, para a percentagem de votos nacionais, mas isso nada influirá na representação efetiva. O magnetismo do voto útil torna-se, pois, muito pronunciado, sendo as regras do sistema as responsáveis por alterarem as preferências a priori dos cidadãos. Nenhum bom sistema eleitoral deveria permitir este efeito.
Em paralelo, é sabido que a desmultiplicação em vários círculos eleitorais tende a desvirtuar a relação entre a votação obtida nacionalmente por cada partido e a sua representação efetiva. Se os resultados globais das últimas eleições legislativas fossem aplicados a um único círculo eleitoral, os partidos minoritários veriam a sua representação substancialmente melhorada.
Com efeito, a reforma do sistema eleitoral não passa pelo voto preferencial nem pela criação de círculos adicionais. A reforma necessária tem de assegurar que cada voto conta. Cada eleitor deve sentir que o seu voto tem tradução na sua representação, independentemente do partido e do círculo eleitoral.
Um importante passo nessa direção seria a criação de um círculo de compensação nacional, à imagem do que já existe hoje nas eleições regionais dos Açores. Esse círculo de compensação acolheria os votos que não tinham contribuído inicialmente para a eleição, provenientes dos diferentes círculos eleitorais “diretos”. Esses votos serviriam depois para calcular a distribuição do número de deputados eleitos pelo círculo de compensação. Este mecanismo combateria a vertigem do voto útil e aproximaria o voto das efetivas preferências eleitorais dos cidadãos.
Talvez este texto seja um favor ao ruído pretendido por Montenegro. Mas, se é para falar de reforma do sistema eleitoral, é importante estruturar oposição às ideias feitas.
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8 comentários:
Caro Diogo Martins:
Disse: «a poupança marginal que essa medida representaria (os vencimentos de umas poucas dezenas de deputados são uma gota de água no oceano do Orçamento de Estado»
A poupança quantitativa ainda assim poderia não ser tão marginal, mas o efeito simbólico seria muito significativo e útil.
Há países com muito mais população e menos deputados e funcionam muito melhor do que nós.
Têm muitos partidos e não se queixam de falta de representatividade: p. ex. a Holanda.
Pense bem na parafrenália de administração política que temos para apenas 10 milhões de habitantes (metade da população de uma grande cidade mundial): um PR (16 milhões de orçamento / um Governo com 50 membros / uma AR com 250 deputados / 2 governos regionais com mais de 10 membros para 2 populações de 250 mil almas / 2 Assembleias Regionais com 50 deputados cada / 5 CCDR / 308 câmaras / 3100 juntas de freguesia, etc., etc.
Temos câmaras com um território de 13 km2 e 20 mil munícipes, sabia?
E qual o resultado desta tralha toda?
Temos cidades, vilas e aldeias aprazíveis e harmoniosas?
Temos um território bem gerido e equilibrado no seu desenvolvimento?
NÃO!
Fico-me por aqui hoje.
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P. S. Os números que apresentei são arredondados, não valia a pena ir procurar saber quantos ministros e secretários de Estado, se 50, 51 ou 52, por exemplo.
"O voto preferencial sugerido por Montenegro é um sistema que já encontra implantado em países como o Brasil."
E na Áustria, na Bélgica, na Dinamarca, na Holanda, na Noruega, na Suécia, na Suíça, etc. - enfim, provavelmente na maioria dos países europeus que usam o sistema proporcional por listas, sem os problemas que ocorrem no Brasil.
Convém não esquecer que o Brasil tem uma peculiaridade - é presidencialista, e num sistema em que o chefe do governo é eleito separadamente dos deputados, é maior a tendência para votar no deputado ligando sobretudo ao candidato individual (já que é nas presindencias que há a grande dsicussão ideológica); já num sistema parlamentarista, em que a composição do governo depende dos resultados das eleição parlamentares, é natural que as pessoas votem em primeiro lugar em partidos (de acordo com quem querem no governo), e só depois, dentre os candidatos do partido que escolheram, é que votem a pensar em pessoas.
O Montenegro não passa de um cão de fila.
«O importante é o ruído.»
Afinal não é só ruído.
Concordo inteiramente. Mas a existência de um círculo eleitoral de compensação não colide com a de círculos uninominais. O sistema eleitoral alemão é mais proporcional que o nosso (as maiorias absolutas só são possíveis com 50% dos votos), precisamente porque combina círculos uninominais com um círculo eleitoral de compensação (também tem um limiar de 5% dos votos para a eleição de deputados). Mas provavelmente o sistema que melhor se adaptaria à realidade portuguesa seria mesmo o dinamarquês...
O importante é mesmo o ruído
Veja-se ali o alter-ego do montenegro a dizer que há mesmo ruído.
Depois das cenas cómicas dos diabos temos que aturar estas cenas dos montenegros ruidosos.
Há que todavia saudar o rigor e a seriedade deste post de Diogo Martins.
Parabéns.
Neste «Maravilhoso Mundo Novo» nunca faltou às sociedades humanas engenhosos servidores dos seus interesses particulares ou de grupo.
De modos que o Sr. Luís Montenegro ao pretender, no seu entender, renovar o Sistema Eleitoral em vigor agarra-se a conjeturas já muito
conhecidas, mas afastadas por ineficiência. E´ que sem afastarmos a corrupção dos círculos do poder e não só, não há Método Eleitoral que nos salve.
Nestas andanças o que me tem parecido e´ que há um saldo democrático negativo nas instituições e em particular, nos partidos políticos e seus dirigentes existentes ao se manterem fiéis a Estatutos que não acompanharam as mudanças dos tempos e das sociedades. De Adelino Silva
E Corbyn não pára de subir nas sondagens para desespero dos trolls e prototrolls.
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