Vale a pena ler este artigo de João Cardoso Rosas no i: «O neoliberalismo acabou por afectar também a esquerda democrática. Em termos políticos, esta nunca conseguiu marcar a diferença de um modo claro, continuando o programa neoliberal de privatizações, desregulamentação e distanciamento face ao ideal redistributivo (neste caso, a esquerda deixou de falar de igualdade para passar a usar a linguagem mais suave da "inclusão"). Do ponto de vista ideológico, a esquerda democrática criou a "terceira via", o "novo centro", ou mesmo "a nossa via" do PS português. Mas tudo isso não passou de um expediente para fazer de conta que não tinha aderido, de facto, aos aspectos essenciais do neoliberalismo».
Tenho algumas discordâncias, sobretudo com a parte final do artigo: não creio que se possa falar apenas de neoliberalismo no passado. Infelizmente, esta questão não depende tanto da verdade e validade das teorias que estão associadas a este movimento intelectual e político, mas mais do seu poder. O neoliberalismo está inscrito em instituições políticas e dispositivos intelectuais poderosos na condução das políticas públicas. De departamentos de economia e gestão até think-tanks e fundações com amplos recursos, passando por bancos centrais, agências de regulação, instituições internacionais, meios de comunicação social ou grupos de interesse poderosos. A viscosidade de uma ideologia elitista que se tornou senso comum da época e a estrutura de constragimentos criada pela actual configuração da economia global têm de ser consideradas.
De qualquer forma, é de assinalar que a expressão neoliberalismo, que até há pouco tempo era proscrita em certos meios, está hoje muito mais difundida. Já passou o tempo em que era considerada um mero slogan de extrema-esquerda. Ainda bem. As palavras são importantes. A discussão pública acompanha assim a melhor discussão crítica. Este livro colectivo, que será em breve lançado, promete ser um excelente contributo para uma mais profunda compreensão do neoliberalismo como projecto intelectual e político. Podem, por enquanto, ler excertos e uma versão do posfácio.
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4 comentários:
Até as pedras se movem
Confesso que estou cada vez mais confuso com o conceito de neoliberalismo. No artigo citado refere-se (julgo que será a parte com que não se concorda) que "O neoliberalismo teve uma face luminosa (...) globalizou a economia e a tecnologia, trouxe riqueza a alguns e pelo menos alguma prosperidade a muitos outros, derrubou as ditaduras comunistas (como na União Soviética), ou obrigou-as a adoptar a economia de mercado (como na China)" (??????). Depois li a parte quase tenebrosa em que se refere que "O neoliberalismo está inscrito em instituições políticas e dispositivos intelectuais poderosos na condução das políticas públicas. De departamentos de economia e gestão até think-tanks e fundações com amplos recursos, passando por bancos centrais, agências de regulação, instituições internacionais, meios de comunicação social ou grupos de interesse poderosos". E pensei: parece que isto só lá iria com uma purga à boa maneira estalisnista (ou se preferirem McCartista).
Mas a seguir a esta vem que "A viscosidade de uma ideologia elitista que se tornou senso comum da época e a estrutura de constragimentos criada pela actual configuração da economia global têm de ser consideradas." E descobri que se calhar só mesmo com uma "revolução cultural" à Mao poderiamos estripar este mal. Comecei a ler os excertos do livro e fiquei desconsolado com o início "Neoliberalism is anything but a succint,clreraly defined political philosophy" e a confusão entre "neoliberalismo" e os neocons americanos. Continuei a ler e cheguei à parte em que se fala da Mont Pélerin Society.
Pelo que pude ler o livro será tudo menos "um contributo para uma mais profunda (?) compreensão do neoliberalismo enquanto projecto intelectual e político" e sinceramente me fez lembrar demasiado as referências a sitas e os famigerados "Sábios do Sião" cujos "Protocolos" (que na realidade eram falsificações da polícia secreta da Rússia czarista com o objectivo de atacar o liberalismo e defender a autocracia e que foram amplamente utilizados pelo anti-semitismo e, em particular pelos nazis).
Caro JP Santos,
A confusão é natural. O conceito de neoliberalismo, como qualquer conceito em economia política ou teoria política, presta-se a múltiplas interpretações. O artigo do i até é claro. Esta é a definição que eu tenho num trabalho recente: o neoliberalismo só pode ser entendido como um feixe vencedor de ideias, simultaneamente utópico e pragmático, assente não tanto na redução do peso do Estado, mas antes na reconfiguração das suas funções. O seu objectivo é encontrar soluções, com um grau mínimo de aceitação social, que, em democracias de alcance tanto quanto possível limitado ou mesmo em regimes autoritários, permitam subordinar a actuação dos governos de todos os partidos à promoção política de processos deliberados de engenharia mercantil, ou seja, à promoção de processos políticos de construção de mercados em novas áreas da vida social. Isto implica um reforço da área de actuação e do poder de grupos económicos privados cada vez mais vergados às prioridades de rentabilização do investimento por parte dos seus proprietários, que têm hoje, graças ao «colete de forças dourado» criado pelos mercados financeiros à escala global, muito mais oportunidades de fazer sentir o seu peso. Isto tem como efeito necessário alcançar um dos principais objectivos neoliberais: limitar os efeitos da democracia na estruturação das actividades económicas e fragilizar a acção colectiva dos trabalhadores e os seus efeitos económicos. Como o próprio Hayek (1982) reconheceu, este projecto exigia um poder político em larga medida blindado às pressões democráticas, ou seja, uma democracia atrofiada e de muito fraco alcance.
Quanto a revoluções culturais e purgas, tal não passa de um infundado processo de intenção. Trata-se de um diagnóstico. A luta aberta das ideias no quadro de democracias e o acumular de evidência dos desastres bastam. Quanto ao livro, não há qualquer teoria da conspiração. Os autores são historiadores das ideias e a sua investigação, cujos resultados conheço, resulta de um aturado trabalho de arquivo. Leia o posfácio.
Confesso tb alguma confusão, e fiquei até com a ideia de que o autor do artigo está tb fascinado com o neo-liberalismo:"O neoliberalismo teve uma face luminosa (...) globalizou a economia e a tecnologia, trouxe riqueza a alguns e pelo menos alguma prosperidade a muitos outros, derrubou as ditaduras comunistas (como na União Soviética), ou obrigou-as a adoptar a economia de mercado (como na China)" Parece-me que muitos destes efeitos ficaram a dever-se mais à disponibilidade para o consumo criada pela economia do pós-guerra, particularmente (intervencionismo estatal, políticas sociais, reforço dos sindicatos, políticas de igualdade, etc.). O neo-liberalismo "funcionou" enquanto a sua própria dinâmiva não destruiu aquelas condições, que elas me parece tb que foram as que contribuiram, aliadas a boicotes e bloqueios, para a queda das economias a leste. Quanto à inscrição do neo-liberalismo na generalidade das instituições,e a imposiçã da ideia de que a economia é uma ciência exacta que deve ser aplicada por todos os partidos políticos independenetemente da sua orientação, não há dúvida de que é uma realidade, ao fim de quase 40 anos de intoxicação das universidades e da opinião pública. Entretanto destruiu-se o poder de compra(tornado possível pelas políticas antecedentes, geraram-se desigualdades absurdas,educaram-se gerações no acriticismo, no individualismo e no oportunismo, destruiu-se o poder dos sindicatos, e transformou-se a democracia numa formalidade destinada a garantir a alternância de interesses económicos e financeiros rivais. O legado do neo-liberalismo está à vista: a crise demolidora em que estamos mergulhados, a proletarização vertiginoda das classes médias, a ignorância generalizada, a instrumentalização do ensino e da educação aos lucros de uma minoria cada vez mais reduzida (e ao mesmo tempo suicidária).
"A viscosidade de uma ideologia elitista que se tornou senso comum da época e a estrutura de constragimentos criada pela actual configuração da economia global têm de ser consideradas."- Aqui, parece que se justifica a adesão dos partidos denominados de "esquerda democrática" ao neo-liberalismo .... Como dizia, acho muito confuso.
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