O Renato Carmo coloca o dedo na ferida quando critica o facto do processo de transformação em curso na Venezuela depender do petróleo. Acho que esta é uma questão crucial. Não me parece é correcto criticar a Venezuela por usar as rendas do mesmo. Não é justo colocar o fardo da resolução dos problemas da dependência mundial deste recurso nas costas de um país em vias de desenvolvimento. Também não concordo com a análise algo determinista da «maldição dos recursos». O petróleo em si mesmo não explica nada. Tudo passa pela natureza dos arranjos institucionais nos países que o exportam, dos mecanismos de repartição dos rendimentos, dos sectores que deles usufruem, do grau de autonomia face a pressões externas. Da Noruega à Nigéria há um vasto leque de percursos.
O que se tem passado na Venezuela? O Estado usou o controlo que tem dos recursos (que já vinha detrás, sendo ampliado e reforçado) para financiar programas sociais redistributivos (com algum sucesso aparente), experiências autogestionárias (com resultados contraditórios), investimentos em infra-estruturas e um esforço de diversificação da economia. O restabelecimento de mecanismos de controlo de capitais, o fim da independência do banco central, as nacionalizações de sectores estratégicos, a reforma da estrutura fundiária ou o proteccionismo selectivo assinalam uma ruptura com o modelo neoliberal de desenvolvimento e um esforço para recuperar politicamente algumas alavancas da economia como passos graduais para construir uma economista mista com elementos socialistas fortes (empresas públicas e cooperativas de produção, mas também amplo espaço para a iniciativa privada que aliás tem acompanhado o passo acelerado da restante economia). Existe já, aparentemente, uma certa diversificação económica (e é também por aqui que poderá ser avaliada a prazo esta experiência).
Certamente que existe muita ineficiência e corrupção. E muitos perigos potenciais. O meu pesadelo foi teorizado há já alguns anos por Janos Kornai, um economista húngaro, e chama-se «soft budget constrain». O controlo dos rendimentos do petróleo pode servir para o Estado financiar experiências económicas que seriam a prazo inviáveis sem esta almofada e, pior, o facto dos agentes económicos saberem que a almofada estará sempre presente gera todo uma série de incentivos perversos e de vícios. Toda a área, politicamente promovida, do sector público e da economia solidária corre este risco. E quem está de fora vê um conjunto de experiências interessantes, mas que apenas florescem regadas pelo petróleo. Aqui está a questão central e o Renato identifica-a bem: «É claro que enquanto o barril perdurar, Chávez terá toda a liberdade e todos os recursos para eternizar o seu processo revolucionário». Nada disto é inevitável se se criarem os mecanismos de monitorização adequados. Se os financiamentos forem temporários e se destinarem a financiar iniciativas que a prazo têm de ser viáveis sem apoios. Se isto acontecer, o apoio estatal à criação de cooperativas e de empresas controladas pelos trabalhadores abre uma via que pode libertar energias empreendedoras individuais e colectivas que seriam atrofiadas de outra forma. Acho que deve haver espaço para a experimentação e para a existência de vários sistemas de propriedade (o que a constituição prevê) e de vários mecanismos de coordenação mercantil e não-mercantil. Uma economia impura portanto. Acho que é esta a aposta da Venezuela.
E aqui Zé Neves lamento, mas o Marx serve-nos para muito pouco. O mesmo não se pode dizer da tradição cooperativa, da escola histórica alemã de List, de Keynes e de todos os que desenvolveram a tradição da economia impura. Quem tem de manter uma cooperativa, gerir a atribuição de recursos, tomar decisões sobre política industrial, faz melhor em ter outros livros na sua mesinha de cabeceira para além do Capital e do Império.
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