quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Para quê?


As simulações são conduzidas num contexto de credibilidade e antevisão perfeitas em que uma parte significativa dos consumidores recorre à otimização intertemporal. No entanto, na situação atual caracterizada por um acesso muito limitado dos agentes económicos portugueses aos mercados financeiros internacionais, a otimização intertemporal pode não ser possível (…) O financiamento desta medida pode criar efeitos recessivos no curto prazo e gerar problemas de equidade, os quais são particularmente relevantes no atual contexto em que se encontra a economia portuguesa. Os efeitos da medida estão condicionais num conjunto de hipóteses que não refletem as condições atuais da economia portuguesa, nomeadamente o financiamento regular dos agentes económicos, a credibilidade perfeita das autoridades ou a ausência de incerteza.

Relatório Desvalorização Fiscal, Ministério das Finanças, Julho de 2011.

As hipóteses não reflectem as condições actuais, passadas e futuras da economia portuguesa, nem de nenhuma economia realmente existente. Louva-se algum realismo e seriedade nos comentários dos autores do relatório, que só não estão à altura dos delírios dos modelos de equilíbrio geral usados para fazer simulação e prescrição política no Banco de Portugal e no relatório, assumindo mercados financeiros eficientes, os tais veículos perfeitos para a optimização de agentes omniscientes, que nem um estranho Deus num mercado de Sua criação, num mundo sem incerteza keynesiana, o que aliás as sucessivas crises financeiras dos mercados financeiros liberalizados deste mundo vieram mesmo confirmar. À medida que o realismo aumenta, a perversidade da desvalorização fiscal vai ficando cada vez mais clara nas palavras do próprio relatório. Enfim, tem a palavra Vítor Constâncio, que num prefácio a um livro do Banco de Portugal, pouco antes de ir para Frankfurt assistir à destruição do euro, se encarrega de destruir com alguma diplomacia as perigosas brincadeiras que se praticam no Banco de Portugal, apenas porque têm impactos na vida das pessoas, caso contrário seriam exercícios mais ou menos inócuos, como os que se fazem em demasiados departamentos de economia...

Tantos impostos tortos e tão poucos direitos...

Em 2008, a receita dos impostos indiretos contribuiu com cerca de 43.8% para o total da receita fiscal e contributiva, mais 7.2 p.p. relativamente à média dos países da área do euro. Os impostos direitos [sic] representam cerca de 29.6%, menos 2.4 p.p. que nos países da área do euros e as contribuições sociais cerca de 26.6%, menos 4.9 p.p. que os países da área do euro. Relativamente às contribuições sociais dos empregadores contribuíram com 14.8%, menos 3.3 p.p. que nos países da área do euro.

Relatório Desvalorização Fiscal, Ministério das Finanças, Julho de 2011, p. 17.

Na era da austeridade

Sem confundir correlação com causalidade e sem querer reduzir a complexidade dos “motins”, que só uma análise de economia política e moral, como a que o Alexandre Abreu aqui tem esboçado, pode começar a expor, divulgo este estudo, via vox, impecavelmente ortodoxo nos métodos e nas referências, para o período entre 1919 e 2009: “os resultados indicam uma correlação positiva entre cortes orçamentais e instabilidade”. Para que não se diga, como uma jornalista preguiçosa num directo medíocre, que tudo o que está a acontecer é inexplicável.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Política monetária vs Política orçamental ou como aprender com a História

As notícias vindas do outro lado do Atlântico são preocupantes. Mais do que a novela do incumprimento dos EUA com a sua dívida, ou mesmo a descida de notação da Standard and Poor’s, o que ficou de toda a discussão no congresso norte-americano em torno do aumento do limite da dívida foi uma derrota em toda a linha dos democratas (não é por acaso que houve mais votos contra o acordo vindos desta bancada). Os EUA preparam-se para enveredar, ao nível federal, na austeridade à europeia. Com a economia a desacelerar e a criação de emprego completamente estagnada - sobretudo devido ao encolher das autoridades locais e estaduais -, não é previsível que algum tipo de recuperação económica global, liderada pela maior economia mundial, venha a ter lugar. Para um país como o nosso, apostado na recuperação da crise pelas exportações (embora não se veja qualquer medida de fundo que as promova), estas são péssimas notícias.

É certo que a política monetária nos EUA é bastante diferente da europeia. As taxas de juro continuam historicamente baixas e o Banco Central (a Reserva Federal) terminou agora mais uma ronda de "quantitative easing", que se traduz na compra de activos dos bancos comerciais em troca de liquidez, na esperança que esta se transmita à economia real na forma de crédito. Este tipo de acções deve ser tomado de forma a estabilizar os mercados financeiros em situações de crise (alô BCE?), mas não é expectável que consiga promover o crescimento económico de forma sustentável por si só. Sobretudo quando lida com um sistema financeiro complexo, especulativo e disfuncional. Prova disso é o crescimento exponencial dos produtos derivados nos mercados de matérias-primas que fizeram disparar os preços destas.

Nestas escolhas existe uma clara dimensão de poder económico. A política orçamental expansionista virada para a criação de emprego, sem falar do necessário elemento de progressividade fiscal, contribui para um reequilíbrio de forças favorável aos trabalhadores. Como, aliás, se viu durante a grande depressão dos anos 30. A política monetária activista não tem os mesmos efeitos, porque os seus canais de transmissão são mais distorcidos. Com a economia a contrair do lado orçamental, não é expectável que uma política de baixos juros e injecção de liquidez tenha grandes efeitos sobre a taxa de inflação, verdadeira inimiga dos interesses financeiros, já que a capacidade produtiva utilizada está longe do seu potencial. Em vez de inflação temos bolhas especulativas nos mercados financeiros, beneficiando os responsáveis por esta crise.

Em suma, não basta reivindicar uma política monetária expansionista para a recuperação económica. Esta terá sempre de ser associada a dois outros eixos de intervenção que, reconheço, são politicamente difíceis de defender no actual contexto: 1- Recusa liminar da austeridade orçamental, ou seja, a austeridade não deve ser combatida só pelos seus evidentes efeitos socialmente regressivos. O objectivo da redução do défice deve ser, pura e simplesmente, recusado, devido aos seus efeitos recessivos qualquer que seja a modalidade política proposta (mais ou menos socialmente justa). Tal princípio não impede obviamente a defesa da racionalização dos gastos públicos, mas não a sua redução no actual contexto; 2- Refundação do sistema financeiro com a introdução de controlos de capitais, redução da oferta de produtos, e robusto controlo democrático da banca (que pode tomar várias modalidades, entre elas a nacionalização), por forma a conseguirmos ter um sistema financeiro que cumpra o seu papel primário, a afectação eficiente de capital na economia. Só assim poderemos caminhar para uma recuperação económica nos moldes da que foi encetada pelos países fortemente endividados no pós-Segunda Guerra Mundial. Economias dinamizadas por uma forte política orçamental e industrial a que se aliou uma repressão financeira e uma taxa de inflação que foram erodindo o peso da brutal dívida destes países num razoável curto espaço de tempo.

Notas sobre os motins no Reino Unido - II


(continuação) A sociedade inglesa passou por algumas transformações muito profundas no contexto do neoliberalismo das últimas décadas, incluindo um processo fortíssimo de desindustrialização, a ascenção concomitante da importância e poder do sector financeiro e a pulverização dos trabalhadores enquanto classe organizada e com poder negocial. Isso esteve associado a um aumento gigantesco da desigualdade de rendimento, à dissolução do proletariado industrial ‘clássico’ e à sua substituição pela combinação de um proletariado pulverizado empregado no sector dos serviços com uma ‘underclass’ que sobrevive à conta de empregos precários e expedientes diversos - um processo que foi particularmente intenso nos anos ’80 (quando se registaram as últimas grandes vagas de motins antes destes) e teve consequências especialmente visiveis no norte da Grã-Bretanha (como retratado em inúmeros filmes na linha do realismo social britânico). Em resultado da falta de oportunidades económicas e de ascenção social, e tal como também é amplamente retratado nesses filmes, os jovens das áreas onde se concentra esta ‘underclass’ (entre a qual as comunidades de origem imigrante estão sobre-representadas mas estão muito longe de estar sozinhas) têm vindo a ser socializados num contexto propício a um processo de desidentificação face a uma sociedade de abundância a cujos frutos não podem aceder e que com eles se relaciona principalmente através da repressão policial. Surge assim a adesão e participação em gangues que permitem mecanismos de identificação e pertença grupal através da partilha de valores assentes no território, na violência e no consumo – os quais proporcionam os elementos de valorização pessoal e compensação emocional face à alienação imposta pelas circunstâncias estruturais.

As causas próximas são por isso contingentes. Tem havido outras mortes mal explicadas às mãos da polícia no passado que não deram origem a motins semelhantes. Simplesmente, tudo isto ocorre agora num período em que, em virtude da contracção económica, do aumento do desemprego e dos cortes alargados nos serviços públicos (que aliás têm afectado desproporcionalmente os grupos e áreas geográficas mais pobres), o ambiente geral de desespero sentido pelos grupos mais vulneráveis da sociedade tem vindo a acentuar-se. Isso aprofunda a alienação e sentimento de revolta junto da população em geral, ‘legitimando’ a acção directa dos grupos de jovens de acordo com as suas próprias lógicas (violentas e consumistas). E a partir do momento em que se verifica o alastramento inicial, o sentimento generalizado por parte dos participantes nas pilhagens, jovens organizados ou transeuntes fortuitos, é de “também queremos o nosso quinhão”.

São reacções que não são politizadas, mas são políticas. Assentam em valores violentos e consumistas que decorrem da alienação face a uma sociedade que sobre-valoriza o consumo e permite desigualdades brutais e crescentes, deixando grupos alargados na miséria económica e social. Não são a revolta emancipatória que advogamos na esquerda mas sim uma reacção oportunista desesperada, “armas dos fracos” contra uma sociedade que, pela sua própria lógica político-económica, os alienou. E são reacções que, na trajectória que levamos, só tenderão a repetir-se e agravar-se, no Reino Unido e noutros contextos. Dado que os níveis de desigualdade em Portugal são semelhantes aos do Reino Unido e que temos vindo a optar pelo mesmo rumo de compressão dos direitos laborais e sociais, redução dos serviços públicos, fomento do desespero e destruição do tecido social, faremos bem em reflectir sobre isto.

Notas sobre os motins no Reino Unido - I


Estamos já na terceira noite de motins e pilhagens em Londres, que entretanto alastraram a outras cidades: Birmingham, Bristol, Liverpool. Tudo começou na sequência de uma marcha pacífica contra a morte, às mãos da polícia e ainda mal explicada, de um homem em Tottenham. Mas isso foi apenas a faísca que detonou um potencial pré-existente. Os comentadores dos diversos quadrantes começaram já a esgrimir argumentos acerca da correcta interpretação dos acontecimentos. Em particular, têm surgido quatro interpretações principais, eventualmente combinadas em diferentes proporções: os motins como criminalidade gratuita e sem explicação, atribuível apenas à estrutura moral deficiente dos participantes (“thugs”); como protesto politizado contra a repressão policial e as opções em matéria de política social e económica; como resultado da criação de quintas colunas dentro da sociedade inglesa em resultado do excesso de imigração e da falência do multiculturalismo; e como produto das condições sociais nas áreas mais pobres e degradadas dos grandes centros urbanos. Seguem-se algumas notas soltas como contribuição para a intepretação e reflexão em torno destes acontecimentos.

Primeiro, os factos. De uma forma geral, os motins e pilhagens têm tido dois alvos principais: a polícia e estabelecimentos comerciais, sendo que no caso destes últimos os alvos têm consistido sobretudo em lojas de diferentes cadeias de bens de consumo. Praticamente não tem havido destruição de habitações ou ataques a indivíduos isolados, sendo que os casos em que isso aconteceu se devem em geral ao alastramento de incêndios ou a criminalidade que poderia ter sucedido mesmo na ausência dos motins. Por outro lado, os ataques contra a polícia e a invasão das lojas têm sido em geral levados a cabo por grupos de jovens, em números consideráveis, aos quais, no decurso das pilhagens, se têm juntado outras pessoas que estão pelas redondezas. Têm alastrado rapidamente por toda a cidade e para outras cidades, de uma forma imprevisível e que sugere coordenação ao nível dos grupos individuais que atacam em cada local, mas não de uma forma mais geral.

Ora, o que tudo isto reflecte, acima de tudo, é a alienação de segmentos consideráveis da população jovem em relação à sociedade a que pertencem. Essa alienação tem duas dimensões principais: hostilidade face ao poder policial e um desejo reprimido de participação na sociedade de consumo em termos semelhantes aos dos grupos dominantes. Os protestos começaram por ser organizados e politizados, mas rapidamente deixaram de o ser. Porém, isso não quer dizer que não sejam políticos – pelo contrário, pois essa alienação tem causas que são claramente políticas. (continua aqui)

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Nada está fechado

O recomendável editorial do Público tem uma formulação que se pode prestar a equívocos – “falhanço das políticas dos estímulos fiscais”. Se estamos a falar do ponto de vista político, de poder, é verdade, já que essa via foi desgraçadamente abandonada. Se estamos a falar do ponto de vista da validade de um elemento necessário numa estratégia mais vasta de combate à crise, então discordo: as políticas orçamentais deliberadas, dada a escala e a duração que tiveram e que não foram, longe disso, proporcionais à intensidade da crise, produziram os efeitos desejáveis esperados pela boa teoria keynesiana. De resto, algumas das causas estruturais dos problemas do capitalismo contemporâneo são muito bem identificadas com a ajuda da economia política crítica: “O economista Richard Wolff, da Universidade do Massachusets [em Amherst, um raro departamento de economia que nunca se rendeu às ficções liberais], dá-nos uma ajuda, através do site do Guardian. A dívida norte-americana resulta de três factores: as guerras no Iraque e no Afeganistão, os gigantescos bailouts pagos para evitar o descalabro do sistema financeiro após a falência do Lehmann Brothers e o facto de as maiores empresas norte-americanas pagarem cada vez menos impostos desde os anos 70. O capitalismo financeiro criou a crise que os Estados têm de pagar, impondo políticas de austeridade que os seus cidadãos não vão aceitar indefinidamente. E a austeridade torna impossível o crescimento que resolveria tudo mas está reduzido a uma palavra mágica sem sentido. A conclusão da história é que a desregulação da economia que começou há três décadas conduziu-nos a um beco sem saída. Um apocalipse que se serve frio e castiga a cegueira dos que acreditaram que um sistema insustentável podia aguentar-se indefinidamente. Mas são outros os que vão pagar. No curto e no longo prazo.” Depende dos “outros”, da sua capacidade para a mobilização social, contrariar tão pessimista conclusão.

Conversa

À conversa com João Ramos de Almeida no Público. O lançamento do livro Portugal e a Europa em Crise - para acabar com a economia de austeridade, co-organizado com José Reis, foi o pretexto para falarmos sobre a crise e as alternativas.

Declínio

Recupero o editorial de sexta-feira do Negócios onde Helena Garrido rompe com alguns dos dogmas da economia de austeridade que está a destruir as economias e os seus mecanismos de coordenação: “A Economia devia ser uma ciência social pensada em liberdade intelectual para resolver os problemas dos cidadãos. Mas não é. Os senhores que dirigem o euro estão contaminados por preconceitos e preferências que nos condenam ao declínio e a esta crise que parece eterna. (…) O combate sem tréguas à inflação e ao défice público deixa de ser racional e transforma-se em preconceito e incompetência. E é uma sentença para o declínio.” Estas ideias também têm tradução nacional, claro. Declínio com muita pilhagem à mistura é a linha do governo. Até quando?

sábado, 6 de agosto de 2011

Manual de instruções

«As árvores grandes precisam ser cortadas em etapas. (...) A abertura da "boca" é um corte horizontal no tronco (...) até atingir cerca de um terço do diâmetro da árvore. (...) Em seguida, faz-se um outro corte, em diagonal, até atingir a linha de corte horizontal, formando com esta um ângulo de 45 graus. (...) Por último, é feito o corte de abate de forma horizontal, no lado oposto à "boca"».

A técnica para desmantelar serviços públicos e a capacidade estratégica do Estado é muito semelhante ao corte de uma árvore de tamanho razoável. A incisão inicial deve ser discreta, de modo a transmitir o mais possível a ideia de que não só não se vai cortar coisa nenhuma como, pelo contrário, se trata de fortalecer «a árvore».

É assim, por exemplo, com a introdução de taxas moderadoras na saúde (que se dizia pretenderem apenas racionalizar e desincentivar o recurso excessivo e desnecessário aos serviços), de propinas no ensino superior (cujas verbas teriam exclusivamente em vista a promoção da qualidade do ensino), ou da redução do número mínimo de alunos para manter aberto um estabelecimento de ensino do primeiro ciclo (invocando os malefícios, para a socialização das crianças, decorrentes da inexistência de um limiar mínimo de «densidade»). Ou, ainda, o caso da criação da figura jurídica das golden shares, que prometiam salvaguardar a prevalência dos interesses estratégicos do Estado em processos de privatização.

O mais difícil é, de facto, «quebrar o gelo» e - para o conseguir de modo eficaz - é desejável que se apresentem argumentos aparentemente sensatos, razoáveis, com os quais seja difícil discordar. Argumentos que transportem consigo essa noção de que - afinal - se estão a melhorar os sistemas, a tratar de os aperfeiçoar de modo a garantir a sua robustez, justiça e «sustentabilidade futura» (um conceito extremamente poderoso). Uma vez aberta a primeira fenda, que explora justamente alguns dos pontos frágeis do sistema (não é por acaso que os fundamentos para o fazer parecem - e são-no em alguns casos - razoáveis), basta prosseguir.

Deve então avançar-se com o gradualismo que se impuser em cada momento e em cada situação, seguindo um outro princípio muito importante: a imperceptibilidade. Quando dermos por nós, as taxas moderadoras já têm assumidamente em vista o reforço objectivo da comparticipação dos encargos com o SNS; as propinas já se tornaram imprescindíveis para suportar os custos de funcionamento das instituições de ensino superior; e o número mínimo de alunos para manter em funcionamento uma unidade de ensino do primeiro ciclo é já determinado pela dimensão dos cortes nas dotações orçamentais atribuídas. As golden shares, por seu turno, passam a ser encaradas como distorção institucional e ilegítima das regras de funcionamento do mercado, devendo por conseguinte ser eliminadas.

Uma última nota: se os ventos estiverem de feição (cuidando-se por exemplo de instalar previamente a crença moralista e expiatória na austeridade inevitável), nem é preciso ter grande preocupação com o princípio da imperceptibilidade dos cortes. Nesses casos, os golpes vigorosos e implacáveis correm até sério risco de serem enaltecidos pela coragem e ousadia que revelam.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Exit?

A crise europeia intensifica-se, até porque as politicas de austeridade não foram abandonadas. A discussão sobre a reconfiguração europeia tem, por isso, de avançar sem deixar de incluir os cenários de “fim” da moeda única para os quais temos de estar preparados, na linha do que Lapavitsas, Pires e Teles defenderam no ano passado, como alternativa ao fracasso da outra solução consistente e até certo ponto preferível – a federalização democrática da Europa:

“A segunda alternativa para os países periféricos é o abandono da zona euro, que resultaria na desvalorização das moedas nacionais, reestruturação da dívida denominada em moeda estrangeira e imposição de controlos de capitais. Para proteger a economia, a banca teria de ser nacionalizada e o controlo público alargado aos sectores estratégicos.”

Dou três exemplos de argumentos que não servem para fechar este debate necessário. Em primeiro lugar, não serve assustar as pessoas com a questão do aumento da sua dívida denominada em euros, já que esta teria de passar para a nova moeda em caso de abandono do euro. Em segundo lugar, não serve usar a Argentina para antecipar o desastroso futuro português. Como o Alexandre Abreu já aqui indicou, se alguma lição a Argentina nos dá, e temos de ter todos os cuidados com transposições apressadas, é a das virtudes da desvalorização cambial, parte de uma política de reconstrução progressista depois da catástrofe neoliberal causada em parte pela rigidez da ancoragem ao dólar. Finalmente, não serve assinalar-se a quebra de poder de compra dos salários, que resultaria da necessária desvalorização cambial, esquecendo que o processo em curso de deflação salarial, em que se apostou num contexto de uma moeda única sem mecanismos de correcção dos desequilíbrios nas balanças correntes dos Estados que a compõem, será bem mais lento e socioeconomicamente violento porque, entre outras coisas, exige mudanças iníquas e de díficil reversão, por exemplo, nas regras laborais e na desmontagem do Estado social. Haverá algo pior do que ficar num euro essencialmente por reformar, com austeridade, neoliberalização e crise permanentes, partindo da hipótese heróica de que tal arranjo pode aguentar-se a prazo?

Para que o debate avance entre nós, recomenda-se a leitura e tradução desta compilação de textos, alguns deles já referidos neste blogue, onde vários economistas de esquerda debatem abertamente as virtudes e os defeitos dos vários cenários e o estudo de Jacques Sapir, o mais completo que li até agora sobre como organizar uma saída do euro capaz de favorecer a reconstrução de uma economia viável, ou não estivéssemos na presença de um dos mais interessantes economistas franceses, num país onde o debate é intenso, como a intervenção do economista Jacques Nikonoff também ilustra. Um governo com consciência dos interesses da maioria, com vontade e capacidade de negociar e de superar este capitalismo de pilhagem, terá também de estar preparado para a eventual saída do euro, quer como consequência de uma outra postura negocial, que terá de envolver essa ameaça credível, quer como consequência do desmembramento, que se seguirá à incapacidade europeia em intervir conscientemente na acção inconsciente das forças de mercado. Esta atitude e preparação podem, paradoxalmente, fazer maravilhas por uma construção europeia pela qual só vale a pena lutar se se superarem os dogmas que minam as economias desde Maastricht e que já foram assinalados, entre outros, por João Ferreira do Amaral.

A economia irrelevante

A zona euro parece estar a entrar em colapso e um economista diz: “as autoridades, bancos centrais e governos, podem fazer alguma coisa, mas não muito”. Ou, por outras palavras, “deixem-se estar de férias”.

Isto é que é coerência. Os “mercados” estão loucos? Deixem trabalhar os “mercados”.

Mas o que pensaria o economista se alguém com a mesma impecável lógica liberal lhe dissesse - “o economista pode fazer alguma coisa, mas não muito” - e lhe recomendasse ir de férias (prolongadas)?

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Quem é soberano?

Em artigo no Financial Times, o economista Paul De Grauwe assinala o óbvio: só o BCE, graças à sua capacidade de emitir moeda, pode ajudar a superar a contagiosa crise sistémica do euro, resultado da redução institucional dos Estados a famílias, agindo como seu credor de última instância, financiando-os, tal como faz com os bancos. Relembro o que escrevi no i no ano passado:

A zona euro não tinha de se esfarelar assim. Atentem no Japão: um país com uma dívida pública sem precedentes, que representa 227% do seu PIB, consequência da oscilação, que dura há mais de uma década, entre recessão e estagnação, depois do rebentamento de uma bolha imobiliária causada pela liberalização do sistema financeiro. Apesar dessa dívida, o Japão não tem problemas de financiamento, porque tem um banco central que faz o que é tão necessário como escandalosamente simples: detém metade da dívida pública do país, imprimindo moeda para a adquirir e devolvendo os juros ao governo. Os países verdadeiramente soberanos podem fazer coisas semelhantes: do Canadá ao Reino Unido, passando pelos EUA.

O horror da inflação! Já ouço os gritos dos economistas que vivem numa bolha académica feita de agentes omniscientes e de mercados auto-regulados. Onde está a inflação no Japão? Onde? Na Europa ou no Japão, aliás, o problema é a deflação e os seus efeitos perversos: aumento do fardo real da dívida e destruição da capacidade produtiva. As transferências financeiras para os Estados europeus com problemas, por outro lado, são escandalosamente pequenas para uma região que partilha a mesma moeda. A tragédia da zona euro é que, graças aos tratados bizarros, inspirados nos ainda mais bizarros modelos económicos, o BCE só pode salvar o euro se agir na linha do teórico protofascista alemão Carl Schmitt: soberano é aquele que define a excepção à regra.

Sem poderem imprimir moeda e sem o mecanismo de desvalorização cambial, numa União que parece um FMI na América Latina, resta às periferias europeias usarem uma das armas dos fracos…

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Um livro raro vai deixar de o ser


Escrevi já lá vão uns anitos (23 de Fevereiro 1998), no tempo em que tinha no Público um espaço onde punha notas sobre livros que ia lendo, o seguinte:

O que é o debate actual senão a reposição do velho dilema de Polanyi? A sociedade, de diversos quadrantes, apela ao político para se defender do mercado. O político procura, em declarações de intenção, transmitir confiança, mas na verdade vai recuando perante o mercado. De desregulação em desregulação, sem saber para onde está a ser levado; sabendo só que não pode “desorganizar a vida industrial” nem por em causa a competitividade…

Vale a pena por isso voltar à “Grande Transformação”. É um livro raro, e não só por ser difícil de encontrar nas livrarias.
Soube há tempos que ia deixar de ser raro.

Houve de facto uma editora portuguesa (as Edições 70) que depois de muitos apelos (um, dois, três, quatro) decidiu traduzir e publicar o livro. A tradução, entregue ao Miguel Serras Pereira, não podia ter ficado em melhores mãos.

Sai em Setembro ao que me disse o tradutor.

Famílias

Na véspera da aprovação de um orçamento rectificativo que confirma a decisão política de se vir a garantir e capitalizar os bancos portugueses, sem quaisquer contrapartidas de incremento do controlo público directo deste sector tão crucial quanto potencialmente disfuncional, na proporção da rédea solta que tem, ficámos a saber que os níveis de insolvência atingiram valores sem precedentes no nosso país. Embora continue a usar o termo “ajuda” para se referir à intervenção externa, a jornalista Ana Rita Faria assinala o essencial quando afirma que isto reflecte “o impacto do desemprego elevado e dos sucessivos pacotes de austeridade, que estão a consumir o rendimento disponível das famílias”.

A conclusão é clara e tem de ser repetida. O Estado não se pode comportar como se fosse uma família em crise, embora tudo nos arranjos do euro conspire para fazer com que isto aconteça, sem sobrecarregar as famílias realmente existentes: serviços públicos enfraquecidos e crescentemente assistencialistas, quando sabemos que é a universalidade que os protege e torna eficazes, desemprego galopante, quebras de rendimentos e logo da poupança, e, finalmente, a tragédia da insolvência num país onde o sector bancário sempre pôde contar com devedores cumpridores, apesar do discurso moralista sobre as famílias irresponsáveis. Agora que, graças à austeridade intrinsecamente recessiva, isto está a deixar de acontecer, a banca por reformar e por taxar pode contar com os aliados políticos de sempre. E ainda há economistas que fingem que a economia não é política…

Queda livre


O afundamento da Espanha e da Itália no turbilhão dos mercados até não era difícil de prever. Deixados de fora do redil onde se queria confinar a Grécia, a Irlanda e Portugal, sem fundos no Fundo para eventuais emergências, estes dois grandes países tornaram-se mais apetecíveis para os predadores.

Agora a Europa está assustada outra vez. No último susto, deu alguns tiros, mas fracos e pouco certeiros. Agora ainda dispõe de munições mas ninguém sabe se está de férias e onde, e mesmo que não esteja se alguma vez será capaz de se por de acordo para fazer o que todos sabem ser preciso.

A única coisa que lhes ocorre é a preguiçosa consolidação orçamental em passo de corrida. O que precisávamos era do contrário: de investimento e de criação de emprego. E o investimento neste momento só pode ser público. Até os “mercados” neste momento parecem ter percebido isto e desconfiam ainda mais de cada vez que é anunciado um novo pacote de austeridade.

A maior parte de nós ainda acredita que há alguém “a tomar conta disto”. A minha sensação, pelo contrário, é a de que estamos a entrar em queda livre. A tripulação está em pânico. Devíamos substitui-la.

O mundo não é uma caixa de legos

Em «Uma boa medida da Troika» João Miranda também se congratula com o aumento dos transportes públicos em 15%. Mas, ao contrário de José Manuel Fernandes (que avalia a justeza dos aumentos a partir da relação moderada que a sua pessoa mantém com os transportes públicos), João Miranda recorre a argumentos com maior sofisticação e, digamos assim, «robustez científica».

As coisas são muito simples. Como ele nos explica, com os aumentos «os utentes passam a ter incentivo para seleccionarem melhor o local onde vivem e a localização do emprego que têm» (sobretudo se esta medida for complementada «com medidas que liberalizem o mercado de arrendamento»). Paralelamente, «as empresas passam a ter um incentivo para se localizarem nas cidades satélite, (...) reduzindo os movimentos pendulares» e fomentando «um diferencial de salários», favorável à periferia. Acaba-se com o subsídio do Estado «à suburbanização dos grandes centros urbanos», as «empresas públicas de transportes deixam de destruir tanto valor» (como sabem, é essencialmente esse o seu objectivo, «destruir valor») e a «desertificação dos centros históricos começa a acabar».

No «mundo-lego» de João Miranda, povoado por seres economicamente racionais e constituído por peças que basta «destacar» de um lado para o outro, tudo é simples, lógico e perfeito. Aliás, fica demonstrado que a persistente incapacidade para inverter os desequilíbrios regionais em Portugal apenas resulta do facto de a descoberta destes 15% ter sido tão tardia (tivesse o actual governo tivesse entrado em funções há um ano atrás e já encontraríamos, provavelmente, um país muito diferente nos Censos da População acabados de realizar).

O único problema deste «mundo-lego» é apenas, de facto, o de não existir. Ou de existir na cabeça de João Miranda do mesmo modo que a guerra - como ela é - existe na cabeça de uma criança a partir de um jogo de playstation. A realidade é todavia outra coisa, e é sobre essa outra coisa que as questões relevantes se jogam. Ou acham os João Miranda deste mundo que, por exemplo, uma cidade sobrevive sem os trabalhadores por conta de outrem da restauração, dos serviços de limpeza ou do comércio em geral? Que eles próprios sobreviveriam sem esse pessoal supostamente menos qualificado e dependente dos transportes públicos que - tudo indica - gostariam de acantonar lá longe, nas cidades satélite?

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Sorrir

Segundo o Negócios, os créditos de risco do BPN ficam para o Estado. Assim se confirma a essência do Estado predador de que temos falado, a tradução nacional de um capitalismo de pilhagem internacional que ganha cada vez mais espaço com as políticas de austeridade desigual: trata-se de promover a nacionalização dos prejuízos, sobrecarregando a maioria dos cidadãos, e a privatização dos lucros, tudo no valor de muitos mil milhões, fazendo as alegrias de investidores estrangeiros, dos seus testas de ferro portugueses e de grupos rentistas nacionais, que esperam ainda arrebanhar algumas infra-estruturas públicas. Por exemplo, o grupo Mello, o das lucrativas auto-estradas privatizadas e das parcerias público-privadas na saúde, anda a ver se consegue uns aeroportos a preço de saldo. Por sua vez, a pergunta que São José Almeida fez há quase um ano – “Houve uma coisa que saltou aos olhos e provocou uma clara sensação de mal estar: por que razão sorria Mira Amaral?” – tem agora novas respostas. A sordidez desta economia política, o tal sorriso dos Donos de Portugal, é proporcional à passividade de cidadãos subalternizados.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Não se esqueçam que é preciso acalmar os mercados...

A duplicidade do FMI em acção: para o Reino Unido, onde as consequências da austeridade conservadora também já se vêem nos indicadores económicos medíocres, o Fundo recomenda estímulos económicos, segundo o Negócios. É claro que o Reino Unido pode desvalorizar a sua moeda, que já perdeu 25% do seu valor face às principais moedas, assim incentivando as exportações, e o seu Banco Central pode financiar os défices. Outro mundo? Como assinala Paul De Grauwe, um dos mais influentes especialistas na economia da zona euro, um economista que sensatamente abandonou a crença na eficiência dos mercados financeiros, a verdade é que o Reino Unido, apesar de ter uma dívida pública superior em percentagem do PIB, financia-se a taxas de juro mais baixas do que o Estado espanhol, por exemplo. Razão? A tal soberania monetária, a emissão de dívida numa moeda que se controla: “os países membros de uma união monetária são reduzidos ao estatuto de uma economia emergente” porque precisamente se financiam numa moeda que não controlam, estando muito mais dependentes dos voláteis sentimentos dos agentes que operam em mercados irresponsavelmente liberalizados, expostos à necessidade de incumprimentos e a ajustamentos estruturais que só agravam os problemas. Conclusão que se repisa pela enéssima vez: uma união monetária sem finanças comuns, sem dívida pública comum, sem um Banco Central que financie os Estados em dificuldades, é intrinsecamente instável. Agora é a vez da Itália e da Espanha. PIIGS. E que acrónimo inventar para incluir o Chipre?

Novo Plano Marshall ou falta de sentido do ridículo?

O presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, anunciou uma proposta de alteração aos regulamentos dos fundos estruturais europeus, tendo em vista diminuir a comparticipação nacional que é exigida aos Estados-Membros como contrapartida dos fundos.

O tom do anúncio não podia ser mais exaltado: trata-se de "uma resposta excepcional a circunstâncias excepcionais", a qual contribui "para uma espécie de Plano Marshall para a recuperação económica".

Saberá Durão Barroso o que foi o Plano Marshall? Saberá que as verbas aprovadas em 1948 representavam 5% do PIB americano?

Nem que a totalidade dos fundos europeus previstos para o período 2007-2013 fossem agora disponibilizados se atingiria um valor equivalente a 0,5% do PIB da UE. Na verdade, o que está em causa com a proposta agora anunciada não vai muito além de 0,02% do PIB - ou seja, duzentas vezes menos (para ser optimista) do que esteve em causa com o Plano Marshall.

Num período em que as instituições da UE se revelam incapazes de lidar com a crise das dívidas soberanas (como antes se revelaram incapazes de evitar a crise financeira que esteve na origem daquelas), qualquer medida que vise estimular as economias europeias é útil (assumindo que os Estados usarão os recursos disponibilizados para esse fim). Mas a tentativa de transformar este modestíssimo passo num momento histórico é próprio de quem não tem o sentido do ridículo.

domingo, 31 de julho de 2011

Leituras


O Expresso desta semana tem três artigos de economia política que vale a pena ler com toda a atenção.

O primeiro artigo é de Nicolau Santos – “Privatizações: quem os trava?” – e assinala a tremenda irresponsabilidade de se prescindir do controlo público de serviços públicos de rede cruciais, da rede de electricidade aos correios, condicionando as gerações futuras “em matéria de empregos qualificados, inovação, investigação e (...) segurança”. Santos parece ter alguma esperança que isto possa de alguma forma correr bem, chamando a atenção para o perigo de não se poder corrigir o que correr mal. Para corrigir o que correr mal, que vai ser tudo, um futuro governo de esquerda a sério terá de renacionalizar, como é óbvio. É por estas e por outras que desde o início deste blogue temos defendido um sector público robusto: Quem diz que as empresas públicas são ineficientes e desnecessárias não anda a ler jornais, porque devemos ter um sector público, a utilidade do see ou vender a república, por exemplo.

O segundo artigo é de Manuel Pinho – “Uns anjinhos ou muito pior”. Algo auto-congrulatório, mas severamente critico dos compromissos troikistas em matéria de privatizações do sector da energia, Pinho mostra algo de crucial através do exemplo da Dinamarca de Poul Thomson do FMI: como os países mais desenvolvidos ainda mantêm sectores estratégicos sob controlo público, ao contrário do que prescrevem as instituições internacionais para as periferias que se encontram sujeitas aos seus programas de desenvolvimento do subdesenvolvimento, através da pilhagem a que as elites locais chamam “ajuda”. A maior empresa de energia dinamarquesa é controlado pelo Estado em 77%, paga uma taxa de imposto de 40%, o seu CEO aufere menos do que Mexia e paga uma taxa de IRS de 60% e os trabalhadores elegem 1/3 do conselho administração, informa-nos Pinho. Outro mundo.

Do nosso mundo, o mundo do choque neoliberal, fala Alfredo Barroso – “Super-Álvaro e as doses de Caval(l)o”. É o mundo de países desfeitos pelas utopias de mercado, caso da Argentina. O economista argentino Domingo Cavallo, que agora dá conselhos sob a forma de artigos às periferias europeias, esteve por detrás de grande parte das decisões que geraram a catástrofe socioeconómica argentina. Álvaro Santos Pereira, que apresenta a história económica argentina de pernas para o ar no seu último livro, gosta das doses intelectuais de Cavallo. O país pagará um preço elevado pela transformação destas preferências intelectuais em políticas públicas.

The Durutti Column: D minor

sábado, 30 de julho de 2011

Um consumidor moderado

Em artigo de opinião no Público de ontem, José Manuel Fernandes congratula-se com o aumento do preço dos transportes públicos. E para que não se diga que a sua concordância resulta do facto de a medida não o afectar, esclarece que é um «consumidor (moderado) de transportes públicos». Ou seja, deve ser assim como eu em relação a bebidas espirituosas ou cinema, que consumo ocasionalmente.

O que José Manuel Fernandes não percebe – ou finge não perceber – é que os transportes públicos não são uma coisa frugal (como as «pipocas» de João Duque) para um elevado número de trabalhadores portugueses, sobretudo para os que vivem com o salário mínimo (485€) ou menos, e que passam a desembolsar acréscimos que podem atingir (no caso da Carris, por exemplo) 12€ mensais, para poderem deslocar-se diariamente entre a casa e o trabalho.

Mas a insensibilidade social, deliberada ou apenas ignorante, de JMF, fica ratificada num outro ponto do artigo, em que o jornalista faz o favor de nos esclarecer tecnicamente que este é um corte efectuado no lado da despesa e não no lado da receita (em virtude de o aumento das tarifas cobradas pelas empresas transportadoras exigir menores indemnizações compensatórias por parte do Estado). De facto, para os cidadãos verdadeiramente afectados por estes aumentos esse preciosismo técnico faz toda, mas mesmo toda a diferença. Ui, é que sabendo disso já não custa mesmo nada.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Luta de classes (II)


«O milionário Warren Buffett, o terceiro homem mais rico do mundo de 2011 segundo a revista «Forbes», comentou um dia as reduções multimilionárias aos impostos dos mais ricos dos EUA, fazendo notar que a sua empregada doméstica tinha uma taxa de imposto maior que ele. Para Buffett era claro que se vive uma guerra de classes e que, diz ainda, a classe dele «está a ganhar esta guerra». Quando ouvimos que a crise toca a todos e que é uma espécie de peste negra que une a pátria esbaforida em uníssono, devemos perceber que no barco não estamos todos».

(Do artigo de Nuno Ramos de Almeida no «i», A crise é um negócio)

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Luta de classes (I)


«Os 25 mais ricos de Portugal aumentaram fortunas para 17,4 mil milhões». Num país em que a população em risco de pobreza era de 18% em 2009 (valor que ascenderia a 43,4% caso o rendimento das familias e dos cidadãos deixasse de contar com o impacto atenuante das transferências sociais, de acordo com o mais recente inquérito às Condições de Vida e Rendimento, do INE). Num país em que os sacrifícios austeritários recaem esmagadoramente sobre o factor trabalho.

Isto não vai acabar bem!


Da minha crónica no jornal i:

Muita gente entendeu a decisão de alargar o âmbito de intervenção do Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF) como um passo na direcção de um Fundo Monetário Europeu, na senda de uma Europa federal. Acontece que, com esta decisão, os cidadãos alemães, austríacos, holandeses e finlandeses alargam consideravelmente a sua responsabilidade fiscal pelos encargos que o FEEF no futuro assumirá enquanto prestador de garantias nos empréstimos à Grécia (dois), à Irlanda, a Portugal e aos bancos europeus que entretanto terão de ser recapitalizados. Daqui a algum tempo, quando a Espanha e a Itália acabarem por bater à porta do FEEF, soarão campainhas nas cabeças dos cidadãos da Europa rica. Aceitarão eles que os seus governos (sem os ouvir) assumam a responsabilização total e colectiva por uma dívida imensa através da emissão de obrigações europeias, os "eurobonds", garantidas por tributação federal? Isto não vai acabar bem!

Oi! Europa, está aí alguém?

Olhem a Itália e a Espanha atirados às feras ou deixados de fora de um Fundo sem fundos.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Austeridade rima com insolvência


Título do Negócios: Roubini diz que Irlanda e Portugal estão insolventes

Nouriel Roubini, economista que previu a crise financeira de 2008 e que é conhecido pelas projecções catastróficas, avisa que "dentro de alguns anos o actual programa de ajuda a Portugal vai cair por terra, tal como acontecerá na Irlanda."

Nada que já não soubéssemos em Janeiro (ver aqui).

Junte-se o ataque crescente dos especuladores à Espanha e à Itália e em breve chegará a hora da verdade para a zona euro. Não serão precisos vários anos como diz Roubini.

Alternativa política, precisa-se.

A revolta dos banqueiros



Nos últimos dias assistimos ao impensável: o esboço de um conflito entre o Banco de Portugal e a troika, por um lado, e o clube de banqueiros, por outro, com o governo algures no meio. A linguagem ‘subversiva’ utilizada pelos banqueiros era no mínimo inabitual. O que está a acontecer?

É difícil ler nas entrelinhas do discurso dos banqueiros, mas o artigo de Pedro Guerreiro no Jornal de Negócios ajuda um pouco. O essencial é o seguinte: a) os donos dos bancos não querem participar na sua capitalização – não tanto porque não possam, mas porque hoje em dia há investimentos muito mais atractivos do que a banca; b) os donos dos bancos não querem que o estado participe na capitalização com os meios postos à disposição pela troika, (mesmo que temporariamente), tornando-se accionista; c) os donos dos bancos receiam auditorias ao crédito concedido que possam expor as suas fragilidades e tornar inevitável a participação pública.

Os grupos financeiros portugueses sempre foram incapazes de resistir pelos próprios meios a ofensivas externas e sobreviveram como entidades relativamente autónomas apenas sob a protecção do Estado português. Neste momento, com o Banco de Portugal transformado em agência do BCE e o ministério das finanças em comissão executiva da troika, podemos estar a viver o momento em que o Estado português deixou de ter capacidade para desempenhar esse papel. Nestas circunstâncias a participação temporária de dinheiro público (obtido com o financiamento da troika) na capitalização dos bancos portugueses pode ser a antecâmara da transferência da propriedade dos bancos portugueses para grupos financeiros de dimensão europeia. É isto que os donos da banca portuguesa receiam e podem ter boas razões para recear.

Não deixa de ser verdade que neste momento quem manda é a banca, mas a banca que manda já não é a portuguesa. Os “donos de Portugal” estão a perder o pé contra donos de coisas maiores.

Devemos aliar-nos num fervor patriótico aos nossos donos menores na sua luta contra os donos maiores e os seus infiltrados? Não me parece. É importante que a banca em Portugal tenha margem de autonomia relativamente a estratégias que nos são alheias, mas talvez estejamos a chegar ao ponto em que isso só poderia ser garantido com a nacionalização dos bancos. Bem sei que isso fere a sensibilidade de donos menores e de donos maiores e, de tão radical que parece ser, a de muitas outras pessoas. A mim parece-me simplesmente que é verdade.

Esperteza saloia

«Cavaco preocupado com quem fica fora do novo imposto».

Com um título assim, acalentamos por momentos a esperança de que o Presidente da República decide – num acto da mais elementar justiça – não deixar passar em claro a iniquidade social do imposto extraordinário (que recai exclusivamente sobre os rendimentos dos salários, deixando incólumes os lucros empresariais, rendimentos de capital e demais ganhos financeiros).

Mas depressa nos desenganamos: aqueles que Cavaco lamenta não se encontrarem em condições de poder contribuir para este grande desígnio nacional «são muitos dos desempregados, são muitos daqueles que se encontram em situação de exclusão social, são doentes crónicos, são famílias de muitos baixos rendimentos». Não são a banca, nem as empresas, nem os investidores financeiros. O «truque» de Aníbal é óbvio: não se queixe (nem seja mesquinho) quem vai pagar o imposto (lembrem-se dos desempregados, dos excluídos, dos doentes crónicos e das famílias pobres). Quanto aos outros, não interessam para o caso.

Foi há pouco mais de um mês, mas pode hoje dizer-se que longe vai o tempo em que o presidente dizia (numa crítica implícita ao anterior governo), que a «justiça na repartição de sacrifícios» teria que ser uma marca da governação do novo executivo. Em mais um gesto de esperteza saloia, mostrando uma preocupação meramente instrumental para com os desfavorecidos, Cavaco comporta-se como um caçador que – para desviar as atenções da caça grossa – lamenta que as crias de perdiz, pelo seu insuficiente tamanho, não possam ser abatidas.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Consciência

Na semana passada, duas figuras relevantes do mundo católico português deram voz a perspectivas diametralmente opostas sobre a crise. No Prós e Contras, João César das Neves assume a narrativa da remissão dos pecados pela travessia do fogo da austeridade, segundo a qual os países que caíram na malandragem devem penar e purificar-se: «quem tem dívidas tem que as pagar, tem que apertar o cinto». Isto é, as disfuncionalidades da governação económica da UE não contam, a crise e os movimentos especulativos do capital financeiro não interessam, o impacto diferencial da abertura dos mercados europeus aos bens transaccionáveis é despiciente, a iniquidade na distribuição dos sacrifícios não é relevante e o ciclo vicioso da austeridade é uma minudência. É tudo muito simples: trata-se de culpa colectiva indiferenciada e de expiação necessária. A vida quotidiana, sobretudo dos mais afectados pela injustiça da austeridade, não é um dado do problema.

Para César das Neves, a economia de mercado constitui uma espécie de força da natureza (com leis que funcionam tanto melhor quanto menos o Estado e as políticas públicas nela se intrometerem), a que todos se devem adaptar e submeter, sem desculpas nem justificações. À escala comunitária, o professor da Universidade Católica advoga que os países em risco de incumprimento (como Portugal e a Grécia) devem resolver sozinhos os seus problemas (invocando para este efeito o exemplo da Califórnia, cuja situação de falência teria supostamente que ser ultrapassada sem ajudas federais de nenhuma espécie). À escala nacional, César das Neves recorre ao mantra do Estado preguiçoso e gastador, sentenciando que «temos um sistema de saúde pior que os outros e que gasta mais que os outros per capita» (não cuidando contudo de explicar como diabo teremos conseguido - entre outros méritos - que a taxa de mortalidade infantil passasse de 77,5‰ em 1960 para 2,4‰ em 2010, uma das mais baixas do mundo). (*)

Perante a frieza estratosférica do raciocínio de César das Neves, vale a pena ouvir a entrevista de Januário Torgal Ferreira à RTPN. Quando a jornalista Sandra Felgueiras lhe pergunta se o país está a viver um clima de medo e de fome, a resposta é lapidar: «claro que está... e de fome em muitíssimas situações», acrescentando a importância de serem criadas «soluções que não podem ser de forma alguma de caridade, neste sentido de assistencialismo». Sobre o impacto desigual da austeridade, o Bispo das Forças Armadas não hesita: «eu não vou aqui silenciar o que penso, nunca... (...) eu não posso compreender como é que instâncias altamente rentáveis e, neste pais, com dinheiro, que não haja um sentido de justiça».

(*) No próprio programa Prós e Contras, Ricardo Paes Mamede e João Ferreira do Amaral encarregaram-se de repor a verdade relativamente ao exemplo da Califórnia, lembrando os dispositivos federais de apoio social e os investimentos militares. No Jugular, Mariana Vieira da Silva demonstra a circunstância de Portugal se encontrar, na realidade, abaixo da média da OCDE em despesas de saúde per capita.

domingo, 24 de julho de 2011

Uma imagem da economia política africana

Por detrás desta imagem, escondem-se várias histórias. A fotografia, que tem poucos dias, mostra uma fila de camiões numa das avenidas principais de Bissau. Os camiões estão carregados de castanha de caju e fazem fila durante alguns dias para transferirem a sua carga para os navios que se encontram no porto de Bissau e que depois a transportarão, maioritariamente, para a Índia.

Uma das histórias que se esconde por detrás da imagem é a da monocultura, característica que a Guiné-Bissau partilha com numerosos países africanos. Ao longo dos últimos dez anos, a castanha de caju tem representado consistentemente 80% a 95% do valor total das exportações deste país, no contexto de uma tendência de longo prazo para a diminuição do preço internacional deste produto.

Outra das histórias que aqui se esconde tem a ver com o fim gradual do campesinato de “subsistência” e a penetração da vida rural africana por parte da lógica da mercadorização: juntamente com as plantações de caju, disseminou-se também na Guiné-Bissau a partir da década de 1980 uma tendência inexorável para a mediação mercantil entre a produção e o consumo, com a expansão da produção de caju a surgir a par da redução, ao longo das últimas décadas, da produção local de arroz (base da dieta local). Nalgumas regiões, a expansão da área cultivada com cajueiros teve já como consequência o esgotamento da “fronteira natural”, sendo de prever que isso venha em breve a estar na origem de uma pressão, também ela inexorável, no sentido da mercadorização futura da própria terra (que em geral não é ainda transaccionada). Acumulação primitiva, como se diz em certos contextos.

Outra história ainda é a dos constrangimentos infraestruturais à produção no contexto de muitos países em desenvolvimento. Os camiões estão à espera devido à capacidade relativamente limitada do porto de Bissau. Analogamente, poder-se-ia falar dos constrangimentos decorrentes da rede viária limitada, da inexistência de instalações de armazenamento e conservação (especialmente nas áreas rurais) ou da impossibilidade de acesso ao crédito por parte dos produtores locais.

E a última história tem a ver com a estrutura oligopsonística das cadeias de valor da maior parte das mercadorias de exportação africanas e a sua relação com a pobreza: essas cadeias de valor são em geral dominadas por um número reduzido de grandes empresas multinacionais de importação e exportação, o que permite a estas últimas comprimir para níveis próximos do limiar de subsistência os preços pagos aos produtores locais (as famílias rurais, em geral pobres, que cultivam e apanham caju nas suas próprias parcelas de terreno).

Dependência monocultural, constrangimentos materiais e sociais à produção, transição agrária, estruturas de poder do comércio internacional. Chama-se a isto economia política – e ajuda a perceber muito melhor o mundo do que modelos bacocos ou correlações espúrias.

O tamanho importa – e o mundo real ainda mais

Neste paper fantasticamente irónico mas irrepreensivelmente rigoroso nos termos da econometria convencional, T. Westling revisita o trabalho de Barro e Mankiw relativamente aos determinantes do crescimento económico, utilizando o mesmo conjunto de dados seccionais relativos a 121 países no período 1960-1985, aos quais acrescenta o tamanho médio do pénis erecto em cada um desses países obtido a partir de uma outra fonte estatística.

Encontra uma correlação negativa robusta: o tamanho médio do pénis explica cerca de 20% da variação do PIB no período em análise (de forma inversa), de forma estatisticamente significativa para α = 0,01 em qualquer uma das especificações do modelo. A correlação permanece elevada e robusta mesmo quando introduzida uma variável dummy relativa a África (de modo a controlar eventuais especificidades dos padrões de desenvolvimento africanos), revelando por outro lado uma associação estatística bastante mais forte e robusta entre o tamanho do pénis e a taxa de crescimento económico do que entre esta última e o tipo de regime político.

Aqui fica a sugestão de leitura, à atenção de econometristas, outros alquimistas e estudantes de economia.

Práticas democráticas

No seminário organizado pelo CES, o sociólogo norte-americano Robert Fishman, que deu ontem uma interessante entrevista ao Público, apresentou uma síntese do seu mais recente artigo académico sobre os efeitos positivos nas práticas políticas e culturais, onde se incluem importantes igualdades substantivas, das origens revolucionárias da democracia portuguesa, por comparação com a transição espanhola: sempre confiante nas práticas democráticas avançadas e na herança de Abril. Questionei Fishman sobre a elevada desigualdade económica em Portugal, algo superior à registada na sociedade espanhola. Respondeu que esta resulta sobretudo do maior atraso na difusão de oportunidades educativas herdado pela democracia no nosso país. Isto está de acordo com o que me parecem ser duas das variáveis mais importantes para a narrativa progressista de Fishman: a educação e a inovação. No entanto, alguma investigação sobre desigualdades económicas tem assinalado padrões que chamam a atenção para outros elementos, nomeadamente as mudanças institucionais, associadas ao conflito social, que podem contrariar as consequências positivas do investimento na educação. De facto, a queda da desigualdade económica aprofunda-se, no nosso país, logo a seguir à revolução, graças às mudanças progressistas ocorridas nos mais variados campos, da legislação laboral e social ao papel dos sindicatos, mas este processo igualitário é interrompido e revertido pela instituição do neoliberalismo, que ganha fôlego com a economia política do cavaquismo. Os governos do PS nunca puseram em causa o modelo económico herdado, e o seu viés liberalizador e privatizador, mas procuraram de alguma forma conter algumas das suas consequências sociais mais danosas, e aí tiveram sempre apoio à sua esquerda, com modestos efeitos positivos em termos de redução das desigualdades económicas, de acordo com os dados disponíveis. Desde algum tempo que estamos precisamente confrontados com o esgotamento desta estratégia social-liberal de aposta na construção simultânea de uma economia cada vez mais mercadorizada, muito impulsionada pela natureza da integração europeia seguida, e de barreiras, relativamente mais frágeis, que impeçam a instituição de uma sociedade de mercado...

Tipos de terrorismo?


Há qualquer coisa de chocante nas condenações de “qualquer tipo de terrorismo” por parte de dirigentes de partidos de direita em todo o mundo (mas também do neo-eleito secretário-geral do PS português). A que propósito “qualquer tipo”? É como se o terrorismo fosse normal quando vem “de fora” e tivesse alguma coisa de estranho quando vem “de dentro”.

sábado, 23 de julho de 2011

Política

É preciso perceber que a política cambial é apenas outro nome para política monetária, e que monetária é apenas um adjectivo para Política.

Custos

Paul Krugman alude a um ponto em que temos insistido desde há alguns anos neste blogue: a obsessão da desunião europeia, partilhada por outras regiões, e que a última reunião dos líderes da zona euro confirmou, com a promoção da competitividade através da compressão dos custos salariais, à boleia da austeridade recessiva por todo o lado. As consequências perversas são óbvias e têm sido assinaladas pela investigação feita por economistas de vários quadrantes: estamos trancados num jogo concorrencial perverso em que o que parece racional para cada país individualmente considerado – promover as suas exportações por via da compressão dos custos relativos do trabalho e seduzir o capital, que desde os anos oitenta pode circular por aí sem grandes entraves, por via fiscal – gera um resultado global tendencialmente depressivo sob a forma de mercados desequilibrados e contraídos por um défice permanente de procura salarial. O aumento do peso dos rendimentos do capital no rendimento nacional de muitos países não se traduz em investimento adicional devido precisamente à medíocre evolução da procura e à pressão por parte de accionistas cada vez mais poderosos para a distribuição incessante de dividendos. Até quando é que os interesses do capital financeiro comandarão o processo económico?

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Que coincidência

Estado quer alemães a controlar EDP.

Uma goma

Graças a Bruno Simões do Negócios, descobri uma foto com os ursos de goma que constavam da mesa do lanche entre Papandreou e Merkel. A “solução que salvou o euro” é como uma goma, artificial e sem grande utilidade para saciar mercados que continuam com rédea solta, abrindo espaço à continuação, a prazo, das pressões especulativas, agora sobre a Espanha ou sobre a Itália, que acabarão por chegar ao centro, como sublinha Yanis Varoufakis, um dos melhores observadores que eu conheço da catástrofe eminente e defensor de alguns dos meios modestos para a evitar. Assim, para quando uma reestruturação a sério das dívidas periféricas, com recapitalização e reforço do controlo público dos bancos, emissão de euro-obrigações, fim da separação entre política monetária e orçamental e adopção de um plano de estímulo com escala europeia, superando em definitivo a austeridade recessiva?

Notas

Algumas notas iniciais sobre a “verdadeira revolução nos mecanismos de ajuda aos países em dificuldades”, para usar a manifestamente exagerada caracterização do Público. Em primeiro lugar, não é ajuda por causa da austeridade recessiva e da fúria privatizadora, que continuam a ser impostas às periferias, embora o centro europeu se tenha contido nos ganhos com as taxas de juro impostas. Em segundo lugar, não é revolução porque estamos na presença de reformas parciais no financiamento que abrem em definitivo a época da reestruturação da dívida, na variante conduzida pelos interesses dos credores, tentando, de forma irrealista, circunscreve-la à Grécia e tentando minimizar perdas que terão de ser provavelmente muito mais substanciais, dada a situação financeira que é agravada pela austeridade. Em terceiro lugar, o fundo de estabilização tem um mandato mais flexível, recomprando dívida, mas a sua armadura financeira não é reforçada, o que incentiva todas as apostas especulativas e todos os efeitos dominó. Não estamos ainda perante a emissão de euro-obrigações, claro. Em quarto lugar, note-se como o memorando que era “para cumprir à risca” já foi alterado, apenas nas condições de financiamento, passados três meses. Imaginem o que aconteceria se os governos das periferias tivessem uma atitude mais activa em matéria negocial, uma consciência mínima dos interesses nacionais. Em quinto lugar, a referência vaga à necessidade de organizar um plano de investimento na Grécia revela a má consciência desta desunião europeia: a estratégia da austeridade fracassou, mas ainda não têm a coragem de a superar. Esta continua a ser a principal linha divisória porque é a austeridade que gera a crise. Até quando?

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Revolucionários?

Só que há aqui uma enorme contradição em termos. Afinal, querem tirar o Estado da economia e da sociedade, querem menos Estado e melhor Estado (como muitos querem). Mas não basta. Querem fazer isso revolucionando a economia e a sociedade a partir do Estado. Será que os "revolucionários" portugueses inventaram o "liberalismo de Estado"? Ou foi apenas um lapso, a corrigir no futuro?

Ao contrário do que sugere Pedro Lains no Negócios de ontem, os “revolucionários” portugueses não inventaram o “liberalismo de Estado” porque não inventaram o neoliberalismo, ou seja, o projecto de reconfiguração do Estado para o usar como instrumento ao serviço do reforço de um certo poder empresarial e da expansão de uma certa forma de mercado, que têm por efeito transferir rendimentos e recursos para o topo da pirâmide social. Como sabemos da ampla literatura de economia política crítica sobre estas matérias, desde pelo menos Karl Polanyi até Jamie Peck, esta engenharia política não pressupõe menos Estado, pressupõe o reforço de um certo estilo de intervenção estatal, menos sujeito ao escrutínio democrático, mais repressivo e penalizador das classes subalternas e das suas formas de acção colectiva...

Quem é pressionado?

Em doze anos, a taxa de desemprego no nosso país triplicou, passando de cerca de 4% para mais de 12%. Nesse período tivemos várias reformas liberais do código do trabalho, que apenas fragilizaram a posição dos trabalhadores, alastrando a precariedade. A legislação laboral tem impactos sobretudo distributivos – poder, rendimentos e outros recursos. A criação de emprego, por sua vez, depende primeiramente da evolução da procura efectiva. E é por causa da sua compressão, obra da austeridade permanente, que teremos a continuação da destruição de emprego, que poderá bem ultrapassar os cem mil postos de trabalho nos próximos dois anos, a previsão do Banco de Portugal, uma instituição especializada em aplicar a lógica da batata ao trabalho. O governo, em linha com o plano da troika, pretende usar o crescente desemprego como instrumento para fragilizar legalmente ainda mais a posição do mundo do trabalho, para instituir em definitivo uma economia sem pressão laboral e salarial, uma economia cada vez mais desigual e medíocre, através, por exemplo, da facilitação do despedimento. A criação de emprego não passa por aqui, claro, mas sim pela reforma da arquitectura do euro, que tem sido a grande responsável pela nossa desgraçada situação, por forma a permitir uma política pública de estímulo à procura e à sua reorientação para sectores ricos em emprego.

Quem é ajudado?

Ajuda à banca pode motivar Orçamento Rectificativo.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Para quem continua a acreditar que nos EUA o governo Federal não apoia os Estados com problemas orçamentais

Federal funds help Minnesota's budget.

As transferências orçamentais a partir de Washington evitam assim cortes drásticos em despesas sociais e abrem perspectivas de uma retoma mais rápida - com benefícios óbvios para a consolidação orçamental. Estão a ver a diferença?

Crise ou declínio?


Ouvimos dizer: “As coisas para melhorarem, devem piorar primeiro”. A austeridade irá acentuar a recessão e o desemprego (agora já ninguém tem duvidas). Mas depois, dizem-nos também, o remédio fará efeito: “Isto é uma crise, não é um naufrágio, vamos ao fundo, mas depois voltamos à tona”.

Qual é a lógica de quem assim pensa e assim pensando nos administra o elixir? A austeridade provoca desemprego. Certo. Mas o desemprego combinado com redução da protecção social obriga as pessoas a aceitarem salários mais baixos. Os salários mais baixos, por sua vez, atraem capital para os sectores exportadores e o investimento aumenta nesses sectores. Resultado: o desemprego desce e as contas externas equilibram-se. Certo?

Não. Errado. A mobilidade que conta não é só a dos capitais. O desemprego e a descida dos salários obrigarão um número crescente de portugueses a emigrar de novo para a Europa do Centro que ainda cresce e para os países emergentes que até falam português (assim como de imigrantes a regressar aos paises de origem). A força de trabalho disponível pode não aumentar e a pressão à descida dos salários pode não se fazer sentir tanto como o esperado. Nesse caso os capitais não afluem e não há retoma do investimento. Entretanto o país despovoa-se, reproduzindo à escala nacional o que vimos acontecer em muitas regiões de Portugal.

O cenário não é de crise, é de declínio. E isto é o que temos de evitar.

Fishman em Portugal

O CES organiza, amanhã, um seminário com o cientista social norte-americano Robert Fishman, um estudioso da economia política do nosso país, sobre "contrastes entre Portugal e Espanha: prática democrática e crises económicas". O seminário terá lugar no CES-Lisboa, no Picoas Plaza, pelas 18h00. Um bom debate em perspectiva. Apareçam.

Fishman ficou conhecido no debate público português depois de ter publicado um artigo sobre Portugal no New York Times, com uma visão algo idealista, mas que sublinhava bem as pressões especulativas sobre o nosso país que antecederam a intervenção externa. Algo idealista porque, como na altura escrevi no Le Monde diplomatique - edição portuguesa, a intervenção externa não foi um simples golpe dos agentes que operam nos mercados financeiros contra a economia política progressista de um país que insiste em manter uma "economia mista" com laivos keynesianos. A pressão externa convergiu com um bloco político-económico interno, liderado por grandes grupos económicos e financeiros rentistas. Um bloco que ganhou com a aventura do euro e com os correspondentes enviesamentos para os sectores dos bens não-transaccionáveis que a sobrevalorização da moeda, o acesso mais fácil aos circuitos financeiros internacionais e uma política industrial insuficiente permitiram. Um bloco que é responsável pelo facto de a economia política nacional só ter conhecido duas palavras nas últimas duas décadas – liberalização e privatização –, hoje incompatíveis com o acervo de direitos sociais e laborais que foi o lastro de um curto período de democracia de alta intensidade no nosso país.

Fishman tinha publicado, em 2010, um artigo académico na revista Studies in Comparative International Development intitulado "Rethinking the Iberian Transformations: How Democratization Scenarios Shaped Labor Market Outcomes". O artigo está acessível através de qualquer universidade, mas um resumo pode ser encontrado aqui. Trata-se de um exercício de economia política comparada. Portugal aparece muito bem na fotografia em termos de capacidade de criação de emprego e de preocupação política com essa variável crucial. O estudo de Fishman refere-se ao período democrático, indicando precisamente que a ruptura revolucionária portuguesa e suas heranças político-ideológicas e institucionais, por comparação com a transição espanhola, explicam parte deste relativo sucesso português. No entanto, Fishman não considera as abissais desigualdades salariais nacionais, por exemplo. E é claro que uma integração mal conduzida, a austeridade, as pressões especulativas e suas sequelas puseram em causa, desde o início do milénio, tal trajectória, como Fishman aliás reconhece, embora o seu artigo não se concentre sobre essa fase mais recente, que viu o desemprego triplicar numa década.