Esta conversa não é nada de agora.
Tem uns três anos e suponho que terá acontecido quando foi divulgado o filme Nostalgia da Luz, de Patrício Guzmán. Mas como acontece com muitos jornalistas - que julgam que o que é novidade para eles deve ser novidade para todos - façam de conta que aconteceu agora.
É uma conversa com o realizador muito solta e muito lenta, como devem ser as conversas. E nessa conversa, ao minuto 21, Guzmán começa a contar as suas desventuras financeiras. A sua mulher, formada em letras e psicanalista, cansada de mal viver, decide tornar-se produtora. Ao minuto 22, Guzmán questiona-se sobre o que se passa nas nossas televisões. Fala sobre os poquitos que as televisões lhe foram dando para realizar este filme. Sobre os magros pedacitos que não lhe permitiram receber alguma remuneração pelo seu trabalho (nem a mulher nem a produtora no Chile), sobre os dois amigos a emprestar-lhe dinheiro - "passa-me um palelito para que os meus filhos saibam que me deves dinheiro..." - sem direito a férias. E foi assim que o filme foi aos festivais e foi aplaudido e recebeu inúmeros prémios (minuto 23).
- Que pása con los tios da television que están tan equibocados?! - e a sua voz começa a alterar-se!) - É um escândalo! Têm salário, têm prémios, têm férias pagas, têm tudo! E que tipo de trabalho fazem?! É indignante! É motivo para outra manifestação... - E ri-se. (...) Somos franco-atiradores e desde a batalha do Chile, ou seja, há 40 anos. Somos franco-atiradores e não somente eu, mas um grupo extenso de criadores de documentários de autor na Europa, na Austrália, em África, na América Latina. Somos mil, mil e quinhentos, não mais. (...) Somos uma minoria escassíssima. E nem o grande capital nem o médio nos dão bola, quando poderíamos fazer uma explêndida casa de distribuição mundial de excelentres películas que deveriam estar nos liceus, nos institutos, nas faculdades. E não estão! Como é possível que não estejam?! São estupendas! (...) Há uma desconexão mundial. E dizem que há boom documentário... É mentira! Estamos muito mal. (...) Estamos na marginalidade. O que é magnífico porque neste mundo idiota não há nada melhor do que estar na marginalidade. A inteligência. Mas dói! (...) Estamos fartos que nos contem histórias. Que nos digam nas televisões: isto é que o que gosta às pessoas e isto é do que não gostam. De onde sabem isso? Quem é que lhes ensinou isso? (...) São mandarins da cultura! Estamos no século 21. As pessoas querem outras coisas. Variedade. (...) Há pessoas que nas televisões são magníficas, mas sempre ganhou o sector que quer mais audiência. Apenas mercantil.
E conta o caso do canal ARTE em que um senhor chegou e quis subir a audiência e conseguiu que a audiência tivesse ficado na mesma, mas no final com pior qualidade...
Talvez fosse motivo, sim, para um outro documentário. Sobre para que servem as televisões numa sociedade em que supostamente os cidadãos votam, mas não decidem. Trata-se de um instrumento cultural, mas fruto do facto de ser o veículo por excelência de venda de publidade (embrulhado em cultura e informação), acaba por ser um objecto aculturizante, de manipulação, de perservação do que existe.
O seu objectivo - em muitos traços largos... - não é mudar, mas manter. Enfim, nada de novo. Apenas novo para quem pensa nisso pela primeira vez. Nostálgicos da Luz, do iluminismo.
4 comentários:
A memória...sempre instrumental para quem quer impôr o marginal à norma.
Muito bom o texto e concordo com Patrício Guzman, autor de outro brilhante trabalho, com o título «O Botão de Nacar».
Tenho sempre esta ideia em mente que cada vez que algo de muito forte, como uma revolução ou golpe militar, acontece na América do Sul, pouco tempo depois dá-se um contragolpe numa das sociedades europeias. Por exemplo, ao suceder o golpe militar no Chile (em Setembro de 1973), sucede a revolução dos cravos em Portugal (em Abril de 1974).
Noutro caso, Madrid escolheu uma presidente da câmara fascista e logo a seguir, Santiago do Chile escolheu uma presidente da câmara comunista.
É pena não estarmos mais atentos ao que se passa na América do Sul e, por exemplo, ver e ouvir mais o canal Telesur. Só esta tarde, ouvi uma brilhante análise sobre aquilo que representam as direitas em todo o mundo (esta análise foi talvez a melhor resposta à lamentável frase «queixinhas» que li hoje na capa do jornal «i» vinda de um dito filósofo político da nossa praça.
Muito bem visto. A viragem neoliberal trouxe-nos várias formas de barbárie, geralmente em nome da liberdade. Nesse processo os meios de comunicação social, sobretudo a tv, assumiram um papel sobretudo de meios de dominação social; passaram a ser instrumentos de um regime cada vez menos democrático e mais plutocrático. Não é de esperar que fomentem um espírito crítico que ponha em causa esse regime.
Caro José,
Chama-se a isso cultura. Mas ele há pessoas que preferem sacar da pistola quando ouvem essa palavra (obviamente nunca será o seu caso...)
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