sexta-feira, 29 de setembro de 2017

RBI: Cheques para todos?


Para quem não teve oportunidade de ver, encontra-se aqui (a partir do minuto 34), o «Choque de Ideias» da passada segunda-feira. Ricardo Paes Mamede e Ricardo Arroja discutiram o Rendimento Básico Incondicional (RBI), conseguindo o feito de expor com grande clareza, em apenas 16 minutos, os pontos críticos e os principais argumentos em confronto.

Traduzindo uma ideia simples e sedutora (a atribuição de uma prestação individual e incondicional a todos os cidadãos, num montante que permita uma vida com dignidade), o RBI coloca porém duas questões de vulto à esquerda. Por um lado, uma ambivalência política no mínimo perigosa e, por outro, um problema de concretização dificilmente resolúvel (para não dizer insanável).

Estas questões ficaram claras no debate entre os dois Ricardos. Para Arroja, o RBI tem a vantagem de «defender a liberdade individual», permitindo operar «uma rutura na forma como tradicionalmente pensamos no Estado Social». Ou seja, deixa de se assegurar o financiamento (e funcionamento) dos sistemas de provisão pública de saúde, educação e proteção social, entregando-se o respetivo envelope financeiro às pessoas, que passam a escolher, no mercado, a entidade prestadora do serviço. Para Paes Mamede, que fez as contas, além desta «desestruturação do Estado Social», o RBI assumiria um impacto orçamental muito relevante no nosso país: 24 mil M€ por ano para um valor mensal de 200€ por pessoa (toda a despesa pública em saúde, educação e proteção social), ou 55 mil M€ (acima de toda a despesa corrente do Estado), se o montante rondasse os 400€ mensais.

Deve sublinhar-se contudo, e o Ricardo Paes Mamede refere igualmente esse aspeto, que não estaria apenas em causa a existência de per se dos sistemas de provisão social pública (com os seus equipamentos, recursos humanos e respostas). Com o fim ou o enfraquecimento desses sistemas, era também a sua própria intencionalidade e matriz de princípios (da cobertura territorial à garantia da universalidade e equidade no acesso) que desapareceria. A dualização e estratificação social da oferta e da procura, que agravaria as desigualdades e limitaria a mobilidade social e a igualdade de oportunidades, seria também uma consequência inevitável da reconfiguração do Estado Social com a implementação do RBI. O caso do cheque-ensino e da «liberdade de escolha» na educação (que não por acaso é o exemplo escolhido por Arroja), é bastante elucidativo a este respeito.

Percebe-se pois como o Rendimento Básico Incondicional tem todos os condimentos para se converter numa autêntica passadeira vermelha do projeto neoliberal da direita, associado à erosão e desmantelamento do Estado e das políticas sociais públicas e à criação de mercados (financiados pelo próprio Estado), que potenciam e aprofundam as desigualdades sociais. E não adianta, convenhamos, defender que a implementação do RBI pode passar, à esquerda, pelo reforço de prestações pecuniárias específicas (como o Abono de Família). Se é isso que se pretende (reforçar essas prestações) é isso que deve ser defendido (o reforço dessas prestações). Em contrário, está-se apenas a tentar forjar, desnecessariamente, novas designações para o que já existe (trazendo à memória o «vrrrnhiec» dos Gato Fedorento), ao mesmo tempo que se abrem ingenuamente as portas a uma ideia perigosa.

11 comentários:

Anónimo disse...

E porque é que o RBI não pode ser um aumento e extensão do RMI sem que se altere o Serviço Nacional de Saúde e a escola pública e o modo como a eles se acede? Não percebo por que o Nuno Serra presume que o RMI automaticamente entra em conflito com o Estado Social como o conhecemos. Concordo que alguma direita pode ver o RMI como uma oportunidade para destruir o que resta do Estado Social, mas isso não significa que, paradoxalmente, o RMI não possa ser uma oportunidade para estender o Estado Social.

Gil disse...

Concordando com o Anónimo que publicou às 10:18, acrescento: o problema é que quando debatemos o RBI, estamos sempre condicionados ao modelo defendido pela direita. Mas disso é a esquerda que tem a culpa. A menos que a médio prazo defendamos condicionamentos à entrada da tecnologia na produção, o RBI é uma inevitabilidade. Não o fazer, é deixar os trabalhadores condenados à chantagem de aceitarem qualquer ordenado, ou verem fechar o seu posto de trabalho. Por isso, a esquerda que puxe pela imaginação.

Jose disse...

Extensão é sempre melhor!
Extenda-se até que encolha por acção das leis da Física.

Agora quanto ao RBI, a Direita que o apoia só pode ser estúpida ou vive noutro planeta.
O coitadinho bebe e come o RBI e apresenta-se no hospital ou leva o puto à escola; imediatamente entra em marcha a luta pela extenção porque, coitadinho, bebeu e comeu, talvez até tenha bebido de mais, mas já o bisavô - que foi perseguido pelo Salazar - também bebia, o que faz dele uma vítima do fascismo - extenda-se!

Anónimo disse...

E lá continuamos nós na senda da transformação do Estado numa espécie de Comissão de Gestão e Canalização dos Fundos Públicos Para o Bolso dos Privados.
A sacrossanta "liberdade de escolha" (num país com um universo monstruoso de 10 milhões de "consumidores, note-se) é a negaça com que se engana os parvos, parvos esses que se julgam riquíssimos e cheios de poder de compra e pulam de contentamento com a possibilidade de pagarem saúde, educação e habitação com o autêntico prémio do Euromilhões que será o RBI. Entretanto, os privados vão afiando as suas facas no aprontar dos seus esquemas mafiosos que venderão serviços de terceira categoria a preços de serviços de luxo, pois para quem é petinga rançosa basta...paga a preços de caviar, claro. Convenhamos que não há melhor e mais conveniente explorado do que aquele que rejubila com a perspetiva da sua própria exploração.

Anónimo disse...

Visionado o frente a frente entre Ricardo Arroja e Ricardo Paes Mamede, parece-me que ambos tomam a nuvem por Juno. Aliás, «intentionally caricaturing a person's argument with the aim of attacking the caricature rather than the actual argument is what is meant by 'putting up a straw men'. Misrepresenting, misquoting, misconstruing and oversimplifying are all means by which one commits this fallacy»...
Já nem me apetece perder tempo com argumentações em torno da insustentabilidade epistemológica deste tipo de argumentos, nem com a erosão dos pressupostos do paradigma da escassez. Como disse Einstein, "we cannot solve our problems with the same thinking we used when we created them." André Gorz e outros também perceberam isto. Transcrevo o que escrevi noutra ocasião, com acertos:
«...parece-me muito oportuna a crítica a qualquer proposta de RBI que implique empobrecimento, tanto ao nível dos salários como das prestações sociais – nisso estou inteiramente de acordo. Mas seria bom esclarecer, contudo, que entre os adeptos do RBI impera a diversidade, tal como naturalmente sucede nas forças políticas que comportam no seu seio correntes, sensibilidades, tendências, etc. Compreendo, pois, que o olhar dos detractores do RBI tenda para uma crítica uniformizante que elide o que a mim me parece essencial, perdendo assim o bébé com a água do banho.Sou da opinião que o RBI nunca poderá ser um instrumento para diminuir benefícios sociais e, muito menos, para mercadorizar a protecção social, mas exactamente o contrário: o RBI deve redistribuir riqueza em bases humanizadoras que combatam e anulem os efeitos gravosos da dilatação da esfera da mercadoria para os domínios da vida humana mais apetecíveis para os predadores. Se entre os adeptos do RBI há quem pense o contrário, lamento-o. O RBI só pode ter como objectivo aumentar a protecção social de quem não a tem e dela precisa – um número cada vez maior de pessoas, infelizmente, à medida que a robotização do mundo avança, alavancada pela rede digital global (faz agora um ano que o World Economic Forum anunciava em Davos a perda de 5 milhões de empregos em 5 anos num conjunto de 15 países ditos “desenvolvidos”). Por isso mesmo, Yannis Varoufakis, que não sofre dos mesmos frémitos reaccionários da nossa esquerda sempre que se fala no RBI, defende que «todos os cidadãos devem ter garantidos direitos de propriedade sobre parte da riqueza que as máquinas produzem. Nós precisamos de instituir um rendimento básico universal, que seja financiado pelo retorno do capital, não pelos impostos».
E aqui chegamos à questão central, que é o que salta aos olhos de todos os detractores do RBI: de onde vem o dinheiro para pagar a despesa? A resposta a este problema não é simples e eu vejo-a viciada à partida pelos pressupostos implícitos na pergunta, de modo idêntico àquele que verificamos, por exemplo, quando alguém se queixa da “despesa” com a construção de escolas e a contratação de professores, esquecendo-se porém de quantificar o enriquecimento proporcionado no longo prazo pelos imensos benefícios decorrentes da educação, largamente superiores à despesa da iliteracia. E o mesmo é válido para a esfera da saúde. Ver apenas custos é um sintoma das habituais vistas curtas de quem não consegue abandonar o “horror económico” (Viviane Forrester). O RBI é um interessantíssimo passo em frente rumo a um paradigma outro que não o da escassez organizada e da soteriologia do “crescimento”. Por isso, torna-se cada vez mais doloroso assistir ao espectáculo da degenerescência da direita e dos estados capturados pelos mercados, bem como de uma esquerda que já não é capaz de exigir mais do que o direito à generalização da exploração, com o ênfase serôdio e escravocrata no trabalhismo e a perniciosa fantasia do pleno emprego como instrumentos privilegiados da continuidade do actual regime de acumulação de capital.»
Cumprimentos
Francisco Oneto

Anónimo disse...

Ou seja, o pleno emprego é uma ilusão e um instrumento de continuidade de acumulação de capital, logo temos de nos conformar com uma cada vez maior fatia da população em desemprego permanente e vivendo - faustosamente, claro está - com a propina de um sumptuoso RBI. E a coisa é, certamente, uma bem desenhada estratégia para assegurar o futuro do país: quem pagará tudo isso será uma classe média que se verá, até ao seu desaparecimento final, cada vez mais empobrecida e erodida, enquanto a tal acumulação de capital continuará com os grandes grupos económicos a serem o recipiente dos cheques da populaça nos seus negócios da saúde e da educação, enquanto colocam as suas parcas poupanças num paraíso fiscal qualquer. Como cereja no topo do suculento bolo, ver-se-á a nossa clarividente e muitíssimo patriota classe empresarial de mãos completamente livres para definitivamente transformar os seus "colaboradores" em sazonais putas que prestam servicinhos quando a necessidade aperta e são varridas como lixo quando ela foi saciada. Chegaremos, certamente, ao desejável ponto em que 99% da população viverá de esmolas estatais enquanto espera por um emprego a haver e que nunca virá, gozando o restante 1% de privilegiados do seu Rendimento Máximo Garantido perpetuamente facilitado pelo Estado. Genial! Diria até mais: genial forma de baralhar e voltar a dar as costumeiras cartas viciadas da roleta russa do neoliberalismo sociopata em que vivemos, o tal que, querendo alforriar a sua principescamente paga mão de obra, abomina "o ênfase serôdio e escravocrata no trabalhismo".
É, para sintetizar a coisa, a velha conversa do "não sou de esquerda nem de direita" e o que pretendo, muito tecnocraticamente, é a mudança de paradigma, sendo que essa "mudança" é a mais segura forma de tudo continuar na mesma. E o continuar na mesma é continuar, de brilhantíssima nova ideia em brilhantíssima nova ideia, a levar a água ao moinho do reinante neoliberalismo e, concomitantemente, continuar a trilhar o desastroso caminho que nos levará à calamidade social final.

Anónimo disse...

( ah...delirante este jose com o bisavô e Salazar.
Só faltam mesmo as extensões das suas comezainas da Legião onde se comia e bebia à fartazana.
Extenda-se Jose, extenda-se.)

Anónimo disse...

Para aprofundarem a reflexão sobre o assunto sugiro a todos que leiam o indispensável artigo do Varoufakis sobre este tema publicado no site "projet syndicate" com o título "The Universal Right to Capital Income".

AFonseca disse...

Se os Ricardos tivessem participado no Congresso sobre RBI que decorreu entre os dias 25 e 27 Set em Lisboa, talvez não tivessem tirado conclusões precipitadas sobre o que o RBI pode vir a ser. Teriam constatado que a maioria dos defensores do RBI presentes no congresso (académicos ou activistas) defendem um RBI progressista que não pode ser co-optado pelos políticos neoliberais para manter o sistema económico dependente do consumo ligado à máquina. Sugiro que leiam o recente livro do actual vice-presidente e fundador do BIEN Guy Standing - Basic Income: A Guide for the Open-Minded - antes de fazerem leituras (e contas) apressadas.
Saudações,
Álvaro Fonseca (Lisboa)

NeWave disse...

De facto, e sabendo da existencia de uma plataforma dedicada ao RBI em Portugal com trabalho feito, não se entende a sua ausencia neste debate.
Enfim, os "mistérios" da imprensa tuga.

Anónimo disse...

AH!... Ainda não tinha visto esta belíssima peça de tão gracioso e irónico fogo-de-vista, que agradeço, de qualquer forma. Será desporto de combate? Não resisto e começo pelo fim: ninguém disse não ser de esquerda nem de direita. Se a informação lhe for útil, caro anónimo, sou de esquerda, à esquerda do PS. Isso não me impede, contudo – porque não devo obediências nem enfeudamentos a rebanhos partidários nem a pacotes ideológicos ready-made - de ter postura crítica relativamente a um certo liberalismo desumano da esquerdinha e a uma certa realpolitik da esquerdona. No essencial, partilho das causas da esquerda e exerço o meu direito de voto em conformidade. De resto, penso livremente e sem compromissos com interesses instalados. E já agora, para que não lhe fiquem dúvidas topológicas, fui preso em 16 de Dezembro de 1973 e a minha família foi ameaçada e perseguida pela PIDE. Houve um, até, que sacou de um revólver para cima da mesa lá de casa e disse que era da direcção-geral de “saúde”. Dificilmente me posicionaria noutro ponto que não à esquerda.
Mudar para ficar na mesma? Acusa-me exactamente daquilo que é o óbvio apanágio dos utopistas do pleno emprego, que com tanta real politik não conseguem nem uma sombra de tudo o que transparece nas suas ironias - não como auto-crítica necessária, mas como argumentação espúria: quem se conforma com o desemprego? Penso que são aqueles que sob a bandeira do “crescimento” e similares oxímoros continuam a lutar por aumentos de 25 euros no salário mínimo. Incapazes de ideias novas que atinjam os fundamentos da exploração e da injustiça, não lhes resta mais do que exigir a plenitude do direito à exploração da totalidade do stock de capital humano, louvando assim despudoradamente as virtudes integradoras da exploração das massas sob a forma de cântico à eterna sacralidade do trabalho. Se ficam satisfeitos em reivindicar as migalhas do banquete do Capital, que se há-de fazer? O Vaneigem bem o disse!... E ninguém pretende, como diz, acabar com a classe média. Pretende-se, isso sim, acabar com a insustentabilidade de toda a degradação das condições de vida abaixo da classe média. Acima dela sim, terão de pagar da sua cota-parte de benefícios dos retornos de capital: os abastados e, também, as máquinas que põem ao seu serviço com o objectivo de nos transformar a todos em ‘disposable humans’. Entretanto, os paraísos fiscais continuam de boa saúde e não me parece que as propostas clássicas da esquerda consigam acabar com o roubo. Se não o conseguiram na sequência do saque de 2008, não será agora que conseguem chegar sequer lá perto. Por isso é preciso ir mais longe e abandonar o dogma da escassez organizada. Manter todas as lutas que beneficiem os trabalhadores, os desempregados, os precários, a provisão pública, concerteza que sim, mas exigir outra mudança, mais verdadeira, pedagógica, inclusiva e radicalmente transformadora, sem os vícios ideológicos estafados que tantas das “putas sazonais” de que fala sempre partilham com os seus exploradores, ou não pugnassem todos, amigos da metástase, pelo “crescimento económico”. Esta doutrina soteriológica pode aliviar alguma coisa com as migalhas que num ou noutro ciclo eleitoral consegue distribuir por quem precisa. Mas não chega. O esgotamento do actual paradigma será cada vez mais evidente, a par com a impotência de quem tanto quer mudar mantendo, afinal, tudo na mesma. Na mesma ou pior, pois o que vemos hoje é a míngua da esquerda e o concomitante inchaço da extrema direita. Tentar inverter responsabilidades para sufocar ideias novas, dizendo que o RBI é uma “ideia perigosa”, isso sim, é um favor que se faz à continuidade do processo de acumulação de capital e a todos os defensores da metastização neo-liberal em curso. O RBI neo-liberal não é um RBI, é apenas um RB. A direita nunca aceitará o ‘I’ da Incondicionalidade nem os pressupostos éticos subjacentes, e a esquerda mais esclerosada alinha nisto e faz à direita o favor de continuar a enaltecer a religião do trabalho. Quem leva a água ao moinho de quem?
Abraço
Francisco Oneto