quinta-feira, 29 de outubro de 2015

O «empreendedorismo» é só para disfarçar o vazio

Não por acaso, um dos domínios em que o paradigma do «empreendedorismo» se começou a instalar de modo relevante entre nós, há mais de uma década, foi o das políticas de combate à pobreza e à exclusão social urbana. Aclamado como sinal da emergência de uma nova cultura de intervenção social e de um novo quadro de políticas públicas, o empreendedorismo foi anunciado como uma abordagem inovadora, capaz de superar as limitações do assistencialismo (caridade) e do providencialismo estatal (direitos sociais), sublinhando-se o seu potencial no «empoderamento» dos indivíduos, na activação das suas «competências» e na sua «capacitação». Ou seja, meio caminho andado para desinvestir no combate à exclusão e responsabilizar subrepticiamente os pobres pela sua própria situação e condição, desprezando o peso das trajectórias de vida, a natureza cíclica da reprodução social da pobreza ou a adversidade dos contextos sócio-espaciais. Bastava de pieguices. Era chegado o momento de caber aos próprios pobres, e às comunidades a que pertenciam, safar-se. Era chegado o tempo de pôr cobro aos apoios e prestações sociais (como o RSI), à «subsidiodependência» (imaginária) e à suposta «rigidez e ineficiência» das políticas públicas de combate à pobreza.

Como todas as narrativas fraudulentas, a ideologia neoliberal do «empreende» dispôs de condições propícias para vingar na opinião pública. Bastou amplificar conversetas de café e dar corda à ideia de que os portugueses são incapazes «de ir à luta», de «criar o seu próprio posto de trabalho» e de «produzir riqueza», antes preferindo «esperar que alguém (...) lhes arranje emprego» e assim viver «à sombra de direitos adquiridos (...), enfronhados numa atitude resignada e fatalista» (para recuperar aqui a fina ironia de João Pinto e Castro, num dos mais eloquentes e certeiros textos de crítica ao empreendedorismo como política pública). Contudo, à semelhança da falsa ideia de senso comum sobre os «preguiçosos do sul», também neste caso os números desmentem a tese de um suposto «défice empreendedor» português: em 2013, segundo dados da OCDE, Portugal encontrava-se entre os países com maior taxa de emprego por conta própria (22%), cinco pontos percentuais acima da média europeia (17%) e a par de países como a Grécia, a Itália, a Irlanda ou a Espanha.


Nos últimos quatro anos, contudo, a proclamada «mudança estrutural da economia» elegeu o empreendedorismo como política oficial de emprego e solução mágica para o crescimento da economia - concomitante com a elevação da «sopa» ao estatuto de política social, num regresso ao passado que nunca imaginámos poder vir a acontecer. Os resultados desta aposta empreendedora estão hoje à vista: «a maioria do empreendedorismo em Portugal é de necessidade, gera turbulência no tecido empresarial e contribui para o crescimento "anémico" da economia», conclui Gonçalo Brás, da Faculdade de Economia de Coimbra. Para acrescentar que um dos «traços preocupantes do empreendedorismo em Portugal» é este ser alimentado pelo Governo, assumindo-se o desemprego como «condição 'sine qua non' para haver apoio». Ou seja, em que o desemprego leva a que as pessoas, através de um empreendedorismo compulsivo, sejam «empurradas para o mercado, muitas vezes impreparadas, o que pode resultar no seu endividamento».



Não se trata aqui de pôr em causa o empreendedorismo como uma estratégia, entre outras - e com as limitações que lhe são inerentes - de combate à pobreza e exclusão. Nem da sua importância, muito relativa, na criação apoiada de emprego e de oportunidades de negócio, sempre que tal faça sentido (como sucede nos bons exemplos de microcrédito). Do que se trata é de denunciar a tentativa de camuflar, com o romance do «empreender», o esvaziamento deliberado do papel do Estado e das políticas públicas, tanto no âmbito das estratégias integradas de desenvolvimento (através do investimento em educação e ciência ou de estratégias públicas à escala regional e local), como ao nível das políticas de emprego e de combate à pobreza e exclusão. Do que se trata é de desmascarar o logro e as ficções ideológicas nesta matéria, assinalando as consequências que advém da conversão do empreendedorismo em «política oficial de emprego», em grande medida assente na tese de que «o Estado asfixia a economia privada» e que se comprovou, nos últimos quatro anos, ser falsa. Aliás, talvez tenha chegado o momento de proceder a uma avaliação exaustiva dos resultados concretos que se obtiveram depois de tantas iniciativas, estímulos, workshops, financiamentos e programas, destinados ao fomento do «empreender».

9 comentários:

Anónimo disse...

excelente texto!

RF disse...

O IEFP serviu como uma das plataformas das políticas do empreendedorismo mal-amanhado. Não só tem havido cursos de empreendedorismo como se verificam acções de formação sobre o empreendedorismo de carácter obrigatório. Não só se culpabiliza o desempregado pela sua situação como se força o mesmo a submeter-se a uma evangelização forçada. Execrável.

José Guinote disse...

O empreendedorismo que aqui se refere parece ser referente a um período temporal que não ultrapassa a última década. Não conheço a tese mas parece-me ser este o período objecto da análise. Existe neste caso esta relação entre o desemprego e a "pulsão" empreendedora. Um bocado aquela ideia de que alguém tem que ser empreendedor à força, quer queira quer não queira que atingiu o seu esplendor com Relvas e o seu guru para o efeito, um tipo cujo nome não recordo.
Mas, noutras décadas também existiram dinâmicas relevantes de criação de empresas - micro e pequenas e médias, por esta ordem - sem que o local de partida fosse o desemprego. Na maioria delas, no entanto, o local de chegada foi o desemprego. Desemprego não remunerado, apesar da propaganda deste último Governo. Sobretudo em sectores de prestação de serviços, com forte componente técnica, em que a desregulamentação e a corrupção - a ordem é arbitrária - alteraram radicalmente as condições de concorrência. Nestas áreas, envolvendo o Estado e as Autarquias, o mercado nunca passou de um sítio no qual o tráfico de influências e a corrupção tinham condições óptimas para prosperar. Estes mecanismos foram muito melhorados ao longo dos últimos dez anos. O Código da Contratação Pública, com os valores fixados em 2008 para os ajustes directos na aquisição de serviços, é a Bíblia da corrupção nas relações do Estado com as empresas e os prestadores de serviços. Só prestam serviços aqueles que são "escolhidos". Ser "escolhido" é uma bênção, fruto de grandes "qualidades".: Esses prosperam muito para além das suas capacidades e dos projectos empresariais que construíram. Os outros passam à história, emigram ou aceitam trabalhar a preço de custo para os outros, os "escolhidos". O último quadro comunitário de apoio permitiu optimizar este procedimento. Há hoje um enorme know-how ns mãos dos beneficiados. O próximo quadro permitirá grandes ganhos de eficiência. Nada foi alterado para corrigir esta situação. Uma política pública de um Governo de esquerda tinha que impor uma suspensão imediata da possibilidade de contratar recorrendo aos ajustes directos com reflexo imediato na contratação associada ao próximo quadro comunitário. A consequência seria mais empresas, mais emprego qualificado e bem remunerado, aquisição de melhores serviços a preços mais competitivos, uma economia a funcionar melhor e uma facada enorme no centro da corrupção. Improvável, diria eu. Estas prácticas corruptas estiveram generalizadas no território, não foram um exclusivo do poder central. Mas, é o poder central que pode alterar esta terrível situação.

meirelesportuense disse...

Aqueles que estariam mais habilitados a aderir ao "empreendedorismo" -porque mais habilitados literáriamente- são precisamente os que abandonam o País com maior rapidez. E vão à procura de empregos seguros e bem pagos no Estrangeiro. Aliás, o mesmo sucede com todos os que emigraram para os Países mais evoluídos da Europa. Um Português "verdadeiramente luso-empreendedor" emigra para África para montar em Marrocos uma taberna On-Line ou um armazém de géneros alimentícios em Angola. Compram em Portugal a preços menores e armazenam em Angola à espera de rentabilizar o investimento...Em Portugal vão saltando de Comerciantes de Hotelaria, Sapatos, para vendedores de KiWis, ou simplesmente Feirantes. Sempre a mesma filosofia. Para criar uma Empresa Verdadeira é preciso Capital, conhecimentos do ramo, coragem, paciência, e alguma visão antecipada do futuro.
Ou ter Génio.

Anónimo disse...

Sem tirar nem pôr.

Jose disse...

Não percebi se 'é tempo de fazer uma avaliação' ou se a avaliação está já feita.

Também não percebi se a polírica devaa priveligiar o apelo à responsabilidade e iniciativa individual ou se deve destacat em vez de 'desprezando o peso das trajectórias de vida, a natureza cíclica da reprodução social da pobreza ou a adversidade dos contextos sócio-espaciais'.

O que claramente percebi é que é preciso criar emprego público para estimular o emprego privado!!!

L. Rodrigues disse...

"O que claramente percebi é que é preciso criar emprego público para estimular o emprego privado!!!"
Vá lá.
Mas é apenas um dos caminhos.

Jose disse...

Meirelesportuense tem razão!
A cultura abrilesca promove a aptência para a exploração capitalista na condição de explorado!
Esquece-se no entenato de clarificar que isso é tão só uma opção secundária, só em uso quando a Mama geral do Estado não atinge o nível desejado.
E esclarecer este facto, é grave ofensa ao verdadeiro espírito de Abril, tão reforçado no Março seguinte.

Anónimo disse...

Ficou patente no governo de C.Silva que o empreendorísmo apos desmantelamento e alienação da indústria portuguesa foi um fracasso. Milhares de trabalhadores qualificados e sem qualificação, depois de receberem as indemnizações por troca do seu posto de trabalho, enveredaram por derreter essas mesmas no ramo da restauração e ate em micro empresas prás quais não estavam vocacionados nem estavam munidos do saber suficiente.
Primeiro vieram as falências depois os suicídios e famílias destruídas. O governo incitava ao descalabro social.
Os trabalhadores nunca mais viriam a recuperar
O “Bom Aluno” só o foi, por levar a cabo os execráveis esquemas Tatcheriano e Reganeano (neoliberalismo).
De Adelino Silva