A economia portuguesa é um caso singular no contexto europeu: foi das economias que mais cresceu na década e meia que precedeu a entrada em vigor do euro (a terceira, a seguir à Irlanda e ao Luxemburgo) e uma das economias que menos cresceu na década e meia seguinte (a par com a Itália). Na verdade, como já aqui mostrei, se usarmos indicadores apropriados para medir a variação da riqueza nacional concluímos que Portugal é hoje um país mais pobre do que era na viragem do século.
Nenhum país registou um contraste tão grande entre os períodos pré e pós-euro no que toca ao crescimento do PIB. Mais, contrariamente a outros países em crise – como a Grécia, a Irlanda ou a Espanha – o fraco desempenho da economia portuguesa não é um fenómeno pós-'crise do subprime’, sendo observável desde o início dos anos 2000.
Dada a coincidência temporal, a pergunta impõe-se: a culpa da crise portuguesa é da moeda única europeia?
Tal como argumentei aqui há já algum tempo, o factor distintivo dos países em crise na periferia da zona euro é a sua elevada dívida externa. Assim, podemos reformular a questão acima e perguntar: o aumento do endividamento externo resultou da adesão de Portugal ao euro?
(*)
A resposta não é simples – e o gráfico abaixo ajuda a perceber porquê. Este gráfico mostra a evolução anual das contas externas portuguesas, em percentagem do PIB.
O endividamento da economia portuguesa face ao exterior resulta da acumulação, ao longo dos anos, de evoluções negativas do saldo conjunto das balanças corrente e de capital. [Eu sei, eu sei, isto agora começou a soar demasiado economês; mas não desistam: com um bocadinho de esforço, consegue-se perceber a ideia.]
A balança corrente (barras azuis no gráfico) é composta pela balança de bens e serviços (ou seja, as exportações menos as importações), pela balança de rendimentos (fluxos de juros, lucros, etc.) e pelas transferências correntes (remessas de emigrantes para Portugal menos remessas de imigrantes para o estrangeiro, e outras transferências unilaterais). A balança de capital (barras claras), por sua vez, corresponde fundamentalmente às transferências de fundos estruturais para Portugal.
Sendo Portugal um beneficiário líquido de fundos europeus, o saldo da balança de capital (barras claras) é positivo desde meados da década de 1980 (i.e., da adesão à CEE). Cresceu desde então até meados da década seguinte, estabilizando até 2000. Depois disso, o seu peso no PIB diminuiu, reflectindo o desvio relativo de fundos para os novos Estados Membros da UE.
Com isto, a posição externa da economia portuguesa piorou um pouco. Mas esta é apenas uma pequena parte da história do endividamento português.
Mais importante, o saldo da balança corrente (barras azuis), que foi quase sempre negativo, começou a agravar-se na segunda metade da década de 1990, mantendo-se ao longo dos anos 2000 a níveis sistematicamente mais negativos do que na década precedente. Como se pode ver no gráfico, há dois factores que contribuem para deterioração da balança corrente em Portugal no período referido:
(i) a redução das transferências correntes (linha côr-de-laranja no gráfico), a qual foi essencialmente determinada pela diminuição das remessas de emigrantes e de algumas transferências da UE; e
(ii) a deterioração da balança de rendimentos (linha vermelha no gráfico), fundamentalmente determinada pelo crescente peso dos juros pagos ao exterior, dado o elevado endividamento privado e público em Portugal, cujo maior crescimento se verificou ainda antes de 2000.
Há um terceira componente da balança corrente que ainda não foi referida – e que, analisando o gráfico, não aparenta ter contribuído para o aumento do endividamento externo após 2000 – a balança de bens e serviços (linha verde no gráfico). De facto, embora sendo muito negativo, o saldo da balança de bens e serviços na década de 2000 não foi pior do que na década precedente.
Ou seja, diz-se, por vezes, que a crise da economia portuguesa se deve ao facto de termos passado a viver com uma moeda demasiado forte, que expõe os produtores portugueses à concorrência externa, fazendo diminuir as exportações e aumentar as importações (o que se traduziria na degradação das contas externas). No entanto, não parece ter havido um agravamento do défice da balança de bens e serviços após a entrada no euro.
Pelo contrário, os factores que parecem estar na base do maior endividamento externo – redução das transferências da UE, redução das remessas de emigrantes e aumento do pagamento de juros – têm, à primeira vista, pouco a ver com o euro.
Assim, a pergunta que se impõe é outra: andarão equivocados aqueles que apontam o euro como a origem dos nossos problemas?
[Continua…]
(*) Esta é uma questão que o economista Ricardo Cabral analisou em detalhe aqui, num texto indispensável que está na base da discussão que aqui desenvolvo.
terça-feira, 18 de novembro de 2014
segunda-feira, 17 de novembro de 2014
Agora sabemos
Em tempos de crise, a reeleição à primeira volta de um chefe de Estado que já efectuou dois mandatos não acontece muitas vezes. A de Evo Morales, com 61% dos votos, deveria, em consequência, ter sido mais sublinhada. Até porque a sua façanha eleitoral acontece num país, a Bolívia, que viu sucederem-se cinco presidentes entre 2001 e 2005. E porque ela coroa uma redução de 25% da pobreza, um aumento de 87% do salário mínimo real, a diminuição da idade da reforma e um crescimento superior a 5% ao ano, tudo isto desde 2006. Se, como nos dizem, importa reencantar a política, por que não fazer com que sejam conhecidas estas boas notícias? Será porque a sua explicação se prende com reformas progressistas e tem como actores regimes de esquerda?
(...)
Desde que abriu às multinacionais o sector da energia que Peña Nieto é adulado pela imprensa económica. A França atribuiu-lhe a grande cruz da Legião de Honra. Irão algum dia os seus admiradores interpelá-lo sobre a quase impunidade de que beneficiam no seu país as forças policiais e os corruptos representantes eleitos? Talvez os grandes jornais ocidentais, os intelectuais mediáticos, Washington, Madrid e Paris não saibam que questões colocar ao presidente mexicano. Imaginem então as perguntas que espontaneamente teriam surgido nos seus cérebros se o massacre dos [43] estudantes tivesse acontecido no Equador, em Cuba ou na Venezuela. Ou nessa Bolívia sobre a qual se diz baixinho que acaba justamente de reeleger o presidente Morales.
Serge Halimi, Sabia que na Bolívia...?, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Novembro de 2014.
(...)
Desde que abriu às multinacionais o sector da energia que Peña Nieto é adulado pela imprensa económica. A França atribuiu-lhe a grande cruz da Legião de Honra. Irão algum dia os seus admiradores interpelá-lo sobre a quase impunidade de que beneficiam no seu país as forças policiais e os corruptos representantes eleitos? Talvez os grandes jornais ocidentais, os intelectuais mediáticos, Washington, Madrid e Paris não saibam que questões colocar ao presidente mexicano. Imaginem então as perguntas que espontaneamente teriam surgido nos seus cérebros se o massacre dos [43] estudantes tivesse acontecido no Equador, em Cuba ou na Venezuela. Ou nessa Bolívia sobre a qual se diz baixinho que acaba justamente de reeleger o presidente Morales.
Serge Halimi, Sabia que na Bolívia...?, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Novembro de 2014.
A reforma da reforma do IRC
Esteve bem António Costa ao anunciar que iria
colocar em causa o acordo a que chegou o PS de António José Seguro com a
Maioria sobre a reforma do IRC. Mas esteve mal ao argumentar que o faria porque
“as condições do acordo não foram
cumpridas (...) nomeadamente em matéria de uma avaliação séria do impacto [da
descida do IRC em 2014] e sobre a necessidade de novos passos serem
acompanhados por evoluções em outras impostos, designadamente IRS e IVA”.

A prova de como a lei foi, desde a sua criação
em 1988, desvirtuando o quadro inicial do imposto revela-se na
evolução verificada nas duas últimas décadas. Como decorre dos
valores da própria administração fiscal, foi crescendo nesse
período o hiato
entre os resultados positivos e a matéria colectável, mercê de deduções,
isenções, benefícios fiscais, etc. que retiraram à matéria colectável
parte considerável dos lucros das empresas que deixaram de ser
tributados.
Veja-se o gráfico acima.
Desde 1993 a 2012, esse hiato passou de 27%
dos resultados para cerca de metade dos resultados, atingindo 70% em 2010 (ver gráfico ao lado)
Esta questão é fundamental para perceber que,
mais do que discutir uma descida de taxas de IRC, conviria primeiro discutir o
que determina a sua Matéria Colectável. Porque à medida que sobe o hiato
entre resultados e matéria colectável, a taxa efectiva de IRC (IRC Liquidado /
resultados positivos) tende a reduzir-se. E foi o que se passou (ver gráfico em baixo).
Bem
pode António Lobo Xavier, presidente da comissão de reforma, lembrar
que as empresas pagam mais taxas além da taxa de IRS propriamente dita.
Porque, na realidade, o que se passa é que há uma parcela de lucros que
não é tributada e, por isso, o Estado vai criando mais taxas para obviar
uma situação que parece não querer encarar.
E
estamos a falar apenas de resultados positivos, já não mencionando os
prejuízos cujos montantes podem ser abatidos aos lucros dos
exercícios futuros. E esta reforma do IRC alargou consideravelmente o
período de reporte de prejuízos.
Outra questão essencial – antes de aprovar
descidas de taxas de IRC - seria discutir um plano de combate à elevada evasão
fiscal em IRC e que faz com que o IRC liquidado seja pago sobretudo por grandes
empresas e que faz com que a reforma aprovada com o acordo do PS tenha
favorecido sobretudo essas grandes empresas.
Portanto, mais do que pôr em causa a reforma do IRC por desequilíbrio face ao IRS e IVA (o que é justo) seria,
antes de mais, de repensar os impostos sobre o rendimento que, cada vez mais,
estão aquém das intenções iniciais da reforma de 1988 que os criou.
domingo, 16 de novembro de 2014
Parasitas pequeninos
Por que é que os abrigos fiscais são geralmente países pequenos?
Pequenos, grandes ou médios, todos os estados precisam de receitas fiscais. Mas os estados de países pequenos podem obter receitas descomunais, relativamente às suas despesas, se reduzindo a taxa de imposto sobre as empresas quase a zero conseguirem convencer muitas empresas a instalar a sua sede fiscal no seu pequeno território. Taxa pequena sobre muitas e grandes empresas equivale a receitas fabulosas para estados de países pequenos.
Já os estados dos países grandes não podem fazer o mesmo. Se descerem a taxa sobre todas as empresas conseguirão atrair algumas, mas a receitas do pequeno imposto pago pelas empresas atraídas não compensaria a perda de colecta de todas as outras que já lá estão sediadas.
Mudando de poiso as empresas deixam praticamente de pagar impostos, e os estados, à excepção dos parasitas, passam a não conseguir colecta-los. Qual é a consequência? Os estados, à excepção dos parasitas, voltam-se cada vez mais para os rendimentos do trabalho e das pensões como fonte de receita.
Nada disto faz sentido, mas na União Europeia é assim. A União Europeia que fixa em tratados os montantes dos défices e das dívidas e retira aos parlamentos a prerrogativa de deliberar sobre os Orçamentos do Estado é não só incapaz de se desparasitar, como promove a presidente o chefe de um governo parasita.
Caro Sr. Juncker vamos lá ver como é: nós ficamos com os estragos do grupo Espírito Santo, o seu pequeno (mas muito amigo) país fica com os impostos?
sexta-feira, 14 de novembro de 2014
Let's take a look at this chart, Mr. Subir Lall
Em entrevista recente ao Jornal de Negócios, Subir Lall não se limitou a criticar o irrealismo do governo em relação às previsões de crescimento económico e do défice para 2015. Incrédulo, o chefe de missão do FMI em Portugal afirmou igualmente «que ninguém ainda percebeu muito bem como é que a taxa de desemprego está a baixar», acrescentando ser necessário «perceber o que está a acontecer para que possamos tirar lições» (uma perplexidade que traz facilmente à memória o contorcionismo do líder parlamentar do PSD, Luís Montenegro, que declarou, em Fevereiro deste ano, que «a vida das pessoas não está melhor, mas o país está muito melhor»).
Tentemos pois perceber o que está a acontecer, interpretando o fenómeno do desemprego para lá do seu significado oficial mais estrito (que a Taxa de Desemprego traduz), dependente dos critérios de contagem do número de desempregados e do volume de população activa, e que aponta para uma descida em oito décimas entre o segundo e o terceiro trimestre (isto é, de 13,9% para 13,1%, o que significa cerca de 40 mil desempregados a menos, em Setembro de 2014).
Por outras palavras, e na linha de um exercício feito anteriormente, consideremos que uma avaliação realista do desemprego obriga a considerar um leque de situações mais vasto, que os números oficiais não reconhecem enquanto tal, e que agrega: os «desempregados ocupados» (em acções de formação e em programas de emprego do IEFP); os «inactivos desencorajados» (que estando ou não disponíveis para trabalhar, se encontram efectivamente desempregados); e os «activos expatriados» (designação que procura reflectir a sangria migratória compulsiva de população activa, acumulada ao longo dos últimos anos).
Se contabilizarmos todas estas situações (ver gráfico), não só deixamos de obter valores de desemprego na ordem dos 13% como passamos a registar uma tendência para a sua estabilização, que em bom rigor revela uma ligeira subida (de 0,1 pontos percentuais) entre Junho e Setembro do corrente ano. Isto é, o desemprego real aproxima-se dos 26,5% em Setembro de 2014, que apenas se distanciam quatro décimas do valor alcançado em Março de 2013, o «pico» registado no período da troika e do suposto «pós-troika» (e que, na restritiva contabilidade oficial, se circunscreve a um patamar de 17,5%).
A componente de «desemprego camuflado» tem pois, de forma paulatina, vindo a ganhar terreno:
● Se em Junho de 2011 os «desempregados ocupados» representavam cerca de 3% no desemprego real, em Setembro de 2014 passam a significar cerca de 11%;
● Por sua vez, os «inactivos desencorajados» passam a representar 23% do desemprego real em Setembro de 2014 (quando significavam, em Junho de 2011, cerca de 20%);
● E quanto aos «activos expatriados» (cuja estimativa acumulada se calcula por defeito, partindo do princípio - pouco realista - de que a emigração em 2014 assumirá um volume equivalente ao registado em 2013), passam a significar cerca de 20% do desemprego real, quando em Junho de 2011 o seu peso relativo era de apenas 3%.
Pode pois dizer-se que globalmente, em Setembro de 2014, a maior parcela do desemprego corresponde a «desemprego estatisticamente camuflado» (cerca de 53% do desemprego real), dando os números oficiais conta dos restantes 47%. Em Junho de 2011, quando a actual maioria tomou posse, esta proporção era manifestamente distinta, com as formas de «desemprego camuflado» a representar cerca de 26% do desemprego real e os «desemprego oficial» cerca de 74% desse universo.
Aliás, se o senhor Subir Lall quiser realmente perceber o que se passa, de modo a dissipar as suas dúvidas e a sua incredulidade, pode começar por analisar a evolução recente do número de «desempregados ocupados», uma variável particularmente ilustrativa das engenharias estatísticas utilizadas, nos últimos três anos, para esconder desempregados. E poderá então concluir que uma descida da Taxa de Desemprego não significa de facto, necessariamente, que o desemprego esteja a diminuir.
Tentemos pois perceber o que está a acontecer, interpretando o fenómeno do desemprego para lá do seu significado oficial mais estrito (que a Taxa de Desemprego traduz), dependente dos critérios de contagem do número de desempregados e do volume de população activa, e que aponta para uma descida em oito décimas entre o segundo e o terceiro trimestre (isto é, de 13,9% para 13,1%, o que significa cerca de 40 mil desempregados a menos, em Setembro de 2014).
Por outras palavras, e na linha de um exercício feito anteriormente, consideremos que uma avaliação realista do desemprego obriga a considerar um leque de situações mais vasto, que os números oficiais não reconhecem enquanto tal, e que agrega: os «desempregados ocupados» (em acções de formação e em programas de emprego do IEFP); os «inactivos desencorajados» (que estando ou não disponíveis para trabalhar, se encontram efectivamente desempregados); e os «activos expatriados» (designação que procura reflectir a sangria migratória compulsiva de população activa, acumulada ao longo dos últimos anos).
Se contabilizarmos todas estas situações (ver gráfico), não só deixamos de obter valores de desemprego na ordem dos 13% como passamos a registar uma tendência para a sua estabilização, que em bom rigor revela uma ligeira subida (de 0,1 pontos percentuais) entre Junho e Setembro do corrente ano. Isto é, o desemprego real aproxima-se dos 26,5% em Setembro de 2014, que apenas se distanciam quatro décimas do valor alcançado em Março de 2013, o «pico» registado no período da troika e do suposto «pós-troika» (e que, na restritiva contabilidade oficial, se circunscreve a um patamar de 17,5%).
A componente de «desemprego camuflado» tem pois, de forma paulatina, vindo a ganhar terreno:
● Se em Junho de 2011 os «desempregados ocupados» representavam cerca de 3% no desemprego real, em Setembro de 2014 passam a significar cerca de 11%;
● Por sua vez, os «inactivos desencorajados» passam a representar 23% do desemprego real em Setembro de 2014 (quando significavam, em Junho de 2011, cerca de 20%);
● E quanto aos «activos expatriados» (cuja estimativa acumulada se calcula por defeito, partindo do princípio - pouco realista - de que a emigração em 2014 assumirá um volume equivalente ao registado em 2013), passam a significar cerca de 20% do desemprego real, quando em Junho de 2011 o seu peso relativo era de apenas 3%.
Pode pois dizer-se que globalmente, em Setembro de 2014, a maior parcela do desemprego corresponde a «desemprego estatisticamente camuflado» (cerca de 53% do desemprego real), dando os números oficiais conta dos restantes 47%. Em Junho de 2011, quando a actual maioria tomou posse, esta proporção era manifestamente distinta, com as formas de «desemprego camuflado» a representar cerca de 26% do desemprego real e os «desemprego oficial» cerca de 74% desse universo.
Aliás, se o senhor Subir Lall quiser realmente perceber o que se passa, de modo a dissipar as suas dúvidas e a sua incredulidade, pode começar por analisar a evolução recente do número de «desempregados ocupados», uma variável particularmente ilustrativa das engenharias estatísticas utilizadas, nos últimos três anos, para esconder desempregados. E poderá então concluir que uma descida da Taxa de Desemprego não significa de facto, necessariamente, que o desemprego esteja a diminuir.
quinta-feira, 13 de novembro de 2014
Teoria económica da idade das trevas
Num artigo no "Público" (Copérnico, Galileu, o PS e a reposição de salários na função pública, 2 Novembro), Paulo Trigo Pereira (PTP) apresenta uma crítica à nova liderança do PS com um preâmbulo que sugere grande profundidade analítica. Para a generalidade dos leitores, provavelmente passará por boa fundamentação, mas não para os economistas que são críticos do paradigma da teoria económica dominante no meio académico. Sobre a falta de pluralismo, reduzida capacidade explicativa e escassa relevância social da economia que se ensina nas universidades, o essencial foi dito por Alexandre Abreu no Expresso-diário (Keynes e os seus herdeiros, 5 Novembro).
PTP procura fazer passar as suas opções teóricas e ideológicas por análise científica, conhecimento testado pelo confronto com a realidade e imune às ideologias. Estas serão "importantes e úteis para enquadrar as políticas económicas", mas estão excluídas da análise económica. Errado! A análise económica trabalha sempre com pressupostos impregnados de escolhas valorativas. Por exemplo, a racionalidade calculatória e optimizadora, um dos pilares do paradigma dominante, assume um indivíduo desvinculado de instituições, um átomo autocentrado, ou seja, uma ficção do liberalismo que a psicologia moderna rejeita. Outro exemplo, o equilíbrio do sistema solar, a que se refere o artigo de PTP para invocar uma realidade que se nos impõe, inspiraram Leon Walras e o seu modelo de equilíbrio geral, um dogma dos economistas que ainda permanecem ancorados no século xix.
Dito de outra maneira, é na ideologia do liberalismo que se enterram os pilares da teoria económica de PTP: individualismo metodológico, o todo como soma das partes, causalidade linear, modelos a-históricos, ausência de incerteza radical. Por isso, a sua análise dos actores políticos e dos eleitores é a da corrente da "escolha pública", uma manifestação colonizadora da ciência política pelo pensamento económico dominante. PTP argumenta que António Costa faz mal em repor os salários da função pública na totalidade porque "os eventuais ganhos de apoio político dos trabalhadores do público seriam anulados pela perda de apoio dos trabalhadores do privado, que sentiriam, e bem, a ameaça de novas medidas despesistas". Este princípio, o das expectativas racionais da moderna microeconomia, também sustenta a ideia de que a política orçamental não tem eficácia, e é até contraproducente. Outras teorias, apoiadas na realidade, há muito desmentiram este pensamento dos novos clássicos e estão disponíveis para o grande público no conhecido blogue do economista Lars Syll (exemplo: What to do to make economics a relevant and realist science). Assim, quando PTP nos exorta a "aceitar a realidade como ela é", está de facto a propor-nos a sua visão da realidade, a da sua escola de pensamento.
PTP sugere também que a "consolidação orçamental" (eufemismo de opção política de redução do Estado social) é uma inevitabilidade, uma realidade que acabará por se impor ao PS quando estiver no governo. Trata-se de uma concepção das finanças públicas que esconde a natureza endógena do saldo do Orçamento do Estado, como se a despesa pública e os impostos não tivessem consequências no volume e na composição da actividade económica e, em retroacção, esta não tivesse consequências sobre o saldo orçamental. Invocando o contributo do economista Abba Lerner, nos anos 40 do século passado, os pós-keynesianos que PTP ignora defendem que o orçamento é um instrumento ao serviço de uma política económica que se propõe alcançar o pleno emprego, ao contrário dos novos clássicos que fazem do equilíbrio orçamental um dogma. Como é evidente, está fora do horizonte analítico de PTP que Portugal algum dia venha a recuperar a soberania monetária e orçamental para promover o emprego e viabilizar um Estado social robusto. Imagina-se num qualquer fim da história em que já nem Fukuyama acredita. De facto, contra o que nos quer fazer crer, a teoria económica de PTP é pré-keynesiana, "da idade das trevas", na expressão de Krugman. É tudo menos neutra e deve ser contraditada.
(O meu artigo no jornal i)
PTP procura fazer passar as suas opções teóricas e ideológicas por análise científica, conhecimento testado pelo confronto com a realidade e imune às ideologias. Estas serão "importantes e úteis para enquadrar as políticas económicas", mas estão excluídas da análise económica. Errado! A análise económica trabalha sempre com pressupostos impregnados de escolhas valorativas. Por exemplo, a racionalidade calculatória e optimizadora, um dos pilares do paradigma dominante, assume um indivíduo desvinculado de instituições, um átomo autocentrado, ou seja, uma ficção do liberalismo que a psicologia moderna rejeita. Outro exemplo, o equilíbrio do sistema solar, a que se refere o artigo de PTP para invocar uma realidade que se nos impõe, inspiraram Leon Walras e o seu modelo de equilíbrio geral, um dogma dos economistas que ainda permanecem ancorados no século xix.
Dito de outra maneira, é na ideologia do liberalismo que se enterram os pilares da teoria económica de PTP: individualismo metodológico, o todo como soma das partes, causalidade linear, modelos a-históricos, ausência de incerteza radical. Por isso, a sua análise dos actores políticos e dos eleitores é a da corrente da "escolha pública", uma manifestação colonizadora da ciência política pelo pensamento económico dominante. PTP argumenta que António Costa faz mal em repor os salários da função pública na totalidade porque "os eventuais ganhos de apoio político dos trabalhadores do público seriam anulados pela perda de apoio dos trabalhadores do privado, que sentiriam, e bem, a ameaça de novas medidas despesistas". Este princípio, o das expectativas racionais da moderna microeconomia, também sustenta a ideia de que a política orçamental não tem eficácia, e é até contraproducente. Outras teorias, apoiadas na realidade, há muito desmentiram este pensamento dos novos clássicos e estão disponíveis para o grande público no conhecido blogue do economista Lars Syll (exemplo: What to do to make economics a relevant and realist science). Assim, quando PTP nos exorta a "aceitar a realidade como ela é", está de facto a propor-nos a sua visão da realidade, a da sua escola de pensamento.
PTP sugere também que a "consolidação orçamental" (eufemismo de opção política de redução do Estado social) é uma inevitabilidade, uma realidade que acabará por se impor ao PS quando estiver no governo. Trata-se de uma concepção das finanças públicas que esconde a natureza endógena do saldo do Orçamento do Estado, como se a despesa pública e os impostos não tivessem consequências no volume e na composição da actividade económica e, em retroacção, esta não tivesse consequências sobre o saldo orçamental. Invocando o contributo do economista Abba Lerner, nos anos 40 do século passado, os pós-keynesianos que PTP ignora defendem que o orçamento é um instrumento ao serviço de uma política económica que se propõe alcançar o pleno emprego, ao contrário dos novos clássicos que fazem do equilíbrio orçamental um dogma. Como é evidente, está fora do horizonte analítico de PTP que Portugal algum dia venha a recuperar a soberania monetária e orçamental para promover o emprego e viabilizar um Estado social robusto. Imagina-se num qualquer fim da história em que já nem Fukuyama acredita. De facto, contra o que nos quer fazer crer, a teoria económica de PTP é pré-keynesiana, "da idade das trevas", na expressão de Krugman. É tudo menos neutra e deve ser contraditada.
(O meu artigo no jornal i)
terça-feira, 11 de novembro de 2014
Mais uma década?
A agenda para a década de António Costa arrisca-se a colocar mais uma década perdida na agenda. Por que é que sou tão pessimista?
Em primeiro lugar, pelas palavras que não estão lá: renegociação e reestruturação da dívida, respectivamente como processo e como resultado da iniciativa corajosa de um governo que defenda os que por aqui vivem. A pirueta de Ferro Rodrigues na semana passada percebe-se melhor agora: o que está lá é uma conversa vaga e que alimenta todas as ilusões sobre a política possível no quadro de constrangimentos europeus de matriz retintamente regressiva e que serão, no fundo, aceites. Os “pilares” e as “acções-chave” da agenda tendem a esboroar-se e a deixar de abrir quaisquer portas. Algumas boas intenções e propostas e alguns princípios válidos não são suficientes neste contexto.
Em segundo lugar, porque no fundo o documento revela como o PS continua dominado por um social-liberalismo que teve na fracassada agenda de Lisboa uma das suas expressões. Na realidade, a palavra reestruturação aparece na agenda por duas vezes: a propósito da “modernização” da administração pública, previsivelmente na continuidade da promoção da “nova gestão pública” da era Sócrates, aproximando a lógica do público de uma lógica idealizada de empresa privada, e a propósito da reorientação da economia para as exportações, na senda da desvalorização da procura interna; a palavra procura aparece associada à escala, ou seja, à ilusão, europeia. Associando isso à conversa da promoção da concorrência, por exemplo na energia, à não reversão de grande parte da herança institucional da troika e ao compromisso com o Estado social, temos o esforço de sempre, em versão cada vez mais recuada dado contexto, ou seja, o esforço de Guterres a Sócrates para combinar neoliberalização na “economia”, temperada por uma economia da oferta progressiva apostada na formação, com a protecção e o investimento possíveis no “social” para corrigir os efeitos mais perniciosos de uma economia cada vez mais neoliberal.
O problema é que o modelo em que esta combinação assentou sempre foi precário e o contexto que permitiu a sua sustentação nos anos noventa e, com cada vez menos fôlego, no novo milénio desapareceu no meio do endividamento externo, do euro, da austeridade permanente inscrita em regras europeias cada vez mais rigidas e de um desemprego de massas sem paralelo histórico. A direita que, em certa medida, gerou este modelo no cavaquismo (entre privatizações, liberalização financeira e um certo tipo de Estado social) aposta no que é mais óbvio: aceitar e reforçar as estruturas desta economia que mata, fazendo com que as variáveis de ajustamento sejam o Estado social e o salário direto e indirecto que lhe está associado, sabendo que é isso que a europeização impõe e que esta separação entre o “económico” e o “social” seria sempre artificial em última instância.
O que fazer? O contrário, ou seja, manter e expandir o Estado social, colocando a economia ao seu serviço, reconfigurando-a através da recuperação de instrumentos de política económica - orçamental, monetária, cambial, comercial e industrial - eliminados pela neoliberalização sob tutela europeia. Sem instrumentos, as intuições desenvolvimentistas que assomam aquil e ali não passam de intenções, o necessário pleno emprego de uma miragem e o Estado social de uma herança permamentemente erodida no quadro de uma democracia esvaziada. Aqui, chegamos a uma das formulações mais espantosas do documento de Costa:
“[H]á quem, também em Portugal, explore politicamente a percepção de que a Europa não esteve à altura das suas responsabilidades. Contudo, a tentação de virar as costas à Europa seria um erro grave. Não podemos perder de vista que a criação do euro também devia servir para proteger os países face aos perigos da globalização financeira – e ter presente que esses perigos aumentaram ao longo dos últimos vinte anos.”
Está aqui muito: o truque que faz equivaler euro, UE e “Europa” e a inacreditável ideia de que o euro “devia servir” para nos proteger da “globalização financeira”, quando, como aliás implicitamente se reconhece no documento, o euro foi um dos principais mecanismos, nas suas intenções e nos seus efeitos, da mais perniciosa globalização financeira, a que gerou um endividamento externo recorde. Está aqui o resto: o medo da “exploração” da “percepção” (bem real) de que a UEM foi um fracasso colossal e irremediável.
É melhor “explorar percepções” reais ou continuar a “explorar percepções” ilusórias? Esta é a pregunta que se impõe. A minha resposta é que a esquerda socialista deve explorar politicamente as primeiras. Face à ascensão de Costa, face à percepção fundada de mais uma década de pouco mais do que o que tivemos nestes anos de euro, face ao que isto implica para uma sociedade como a nossa, tem de haver espaço para uma aliança política que recupere o espírito do povo unido. Essa aliança terá de confrontar o status quo com as suas opções em nome de opções alternativas radicalmente distintas, forçando uma mudança da relação de forças, garantindo que o campo eurocéptico em ampliação fica ancorado à esquerda. Exploremos então as percepções.
Nota de rodapé: o indisfarçado entusiasmo do jornal Público desde sexta-feira é a expressão do seu investimento histórico no social-liberalismo e na bipolarização política que o gerou, mesmo depois das condições materiais para esta ideologia terem desaparecido. Este desfasamento é muito comum em tempos de crise, em tempos em que “o velho já morreu e o novo ainda não nasceu”...
Em primeiro lugar, pelas palavras que não estão lá: renegociação e reestruturação da dívida, respectivamente como processo e como resultado da iniciativa corajosa de um governo que defenda os que por aqui vivem. A pirueta de Ferro Rodrigues na semana passada percebe-se melhor agora: o que está lá é uma conversa vaga e que alimenta todas as ilusões sobre a política possível no quadro de constrangimentos europeus de matriz retintamente regressiva e que serão, no fundo, aceites. Os “pilares” e as “acções-chave” da agenda tendem a esboroar-se e a deixar de abrir quaisquer portas. Algumas boas intenções e propostas e alguns princípios válidos não são suficientes neste contexto.
Em segundo lugar, porque no fundo o documento revela como o PS continua dominado por um social-liberalismo que teve na fracassada agenda de Lisboa uma das suas expressões. Na realidade, a palavra reestruturação aparece na agenda por duas vezes: a propósito da “modernização” da administração pública, previsivelmente na continuidade da promoção da “nova gestão pública” da era Sócrates, aproximando a lógica do público de uma lógica idealizada de empresa privada, e a propósito da reorientação da economia para as exportações, na senda da desvalorização da procura interna; a palavra procura aparece associada à escala, ou seja, à ilusão, europeia. Associando isso à conversa da promoção da concorrência, por exemplo na energia, à não reversão de grande parte da herança institucional da troika e ao compromisso com o Estado social, temos o esforço de sempre, em versão cada vez mais recuada dado contexto, ou seja, o esforço de Guterres a Sócrates para combinar neoliberalização na “economia”, temperada por uma economia da oferta progressiva apostada na formação, com a protecção e o investimento possíveis no “social” para corrigir os efeitos mais perniciosos de uma economia cada vez mais neoliberal.
O problema é que o modelo em que esta combinação assentou sempre foi precário e o contexto que permitiu a sua sustentação nos anos noventa e, com cada vez menos fôlego, no novo milénio desapareceu no meio do endividamento externo, do euro, da austeridade permanente inscrita em regras europeias cada vez mais rigidas e de um desemprego de massas sem paralelo histórico. A direita que, em certa medida, gerou este modelo no cavaquismo (entre privatizações, liberalização financeira e um certo tipo de Estado social) aposta no que é mais óbvio: aceitar e reforçar as estruturas desta economia que mata, fazendo com que as variáveis de ajustamento sejam o Estado social e o salário direto e indirecto que lhe está associado, sabendo que é isso que a europeização impõe e que esta separação entre o “económico” e o “social” seria sempre artificial em última instância.
O que fazer? O contrário, ou seja, manter e expandir o Estado social, colocando a economia ao seu serviço, reconfigurando-a através da recuperação de instrumentos de política económica - orçamental, monetária, cambial, comercial e industrial - eliminados pela neoliberalização sob tutela europeia. Sem instrumentos, as intuições desenvolvimentistas que assomam aquil e ali não passam de intenções, o necessário pleno emprego de uma miragem e o Estado social de uma herança permamentemente erodida no quadro de uma democracia esvaziada. Aqui, chegamos a uma das formulações mais espantosas do documento de Costa:
“[H]á quem, também em Portugal, explore politicamente a percepção de que a Europa não esteve à altura das suas responsabilidades. Contudo, a tentação de virar as costas à Europa seria um erro grave. Não podemos perder de vista que a criação do euro também devia servir para proteger os países face aos perigos da globalização financeira – e ter presente que esses perigos aumentaram ao longo dos últimos vinte anos.”
Está aqui muito: o truque que faz equivaler euro, UE e “Europa” e a inacreditável ideia de que o euro “devia servir” para nos proteger da “globalização financeira”, quando, como aliás implicitamente se reconhece no documento, o euro foi um dos principais mecanismos, nas suas intenções e nos seus efeitos, da mais perniciosa globalização financeira, a que gerou um endividamento externo recorde. Está aqui o resto: o medo da “exploração” da “percepção” (bem real) de que a UEM foi um fracasso colossal e irremediável.
É melhor “explorar percepções” reais ou continuar a “explorar percepções” ilusórias? Esta é a pregunta que se impõe. A minha resposta é que a esquerda socialista deve explorar politicamente as primeiras. Face à ascensão de Costa, face à percepção fundada de mais uma década de pouco mais do que o que tivemos nestes anos de euro, face ao que isto implica para uma sociedade como a nossa, tem de haver espaço para uma aliança política que recupere o espírito do povo unido. Essa aliança terá de confrontar o status quo com as suas opções em nome de opções alternativas radicalmente distintas, forçando uma mudança da relação de forças, garantindo que o campo eurocéptico em ampliação fica ancorado à esquerda. Exploremos então as percepções.
Nota de rodapé: o indisfarçado entusiasmo do jornal Público desde sexta-feira é a expressão do seu investimento histórico no social-liberalismo e na bipolarização política que o gerou, mesmo depois das condições materiais para esta ideologia terem desaparecido. Este desfasamento é muito comum em tempos de crise, em tempos em que “o velho já morreu e o novo ainda não nasceu”...
O século XXI português tem sido ainda pior do que se julga
É habitual olhar-se para o Produto Interno Bruto (PIB) de um país para analisar o nível de riqueza produzida em cada ano. Com base neste indicador constatamos que é preciso recuar a 2000 para encontrar um ano em que se tenha gerado tão pouca riqueza em Portugal como em 2013. Por outras palavras, até aqui o século XXI significou a estagnação da economia portuguesa.
Na verdade, desde há vários anos que o PIB vem sendo criticado enquanto indicador de bem-estar dos países, nomeadamente pelo facto de não considerar aspectos como o tempo de lazer, a distribuição do rendimento, as condições sociais ou os impactos do crescimento económico no ambiente.
Isto levou, por exemplo, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento a publicar anualmente, desde 1990, o seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), um indicador alternativo ao PIB que procura ter em conta não apenas os rendimentos gerados, mas também a evolução das condições de saúde e educação em cada país. Além disso, desde 2010 que o IDH tem em conta não o PIB mas antes o Produto Nacional Bruto (PNB). A diferença entre o PIB e o PNB assenta no facto de nem toda a riqueza gerada num território permanecer nesse território, já que parte dos rendimentos gerados ficam na posse de agentes económicos não-nacionais (por exemplo, os lucros e os juros auferidos por empresas estrangeiras no território nacional contam para o PIB, mas não para o PNB).
Mais recentemente, um famoso relatório coordenado por Joseph Stiglitz, Amartya Sen e Jean-Paul Fitoussi, sobre a medição do desempenho económico e do progresso social, avança com várias propostas para melhorar a aferição do bem-estar gerado por cada economia. Uma das sugestões que podemos encontrar no relatório tem a ver com a avaliação do produto em termos líquidos e não em termos brutos (como faz o PIB). A diferença entre um e outro prende-se com o facto de os bens de capital (as máquinas, os equipamentos, etc.) irem perdendo valor à medida que os anos passam. Como é difícil calcular o ritmo de depreciação do capital, os economistas habituaram-se a utilizar o PIB em vez do Produto Interno Líquido (PIL). Tal significa,porém, ignorar que parte da riqueza gerada tem de ser posta de parte para ir substituindo o capital que está a ser utilizado. Na verdade, desde que a taxa de depreciação do capital não se altere ao longo dos anos, é indiferente qual dos dois indicadores é utilizado, se o objectivo é medir a evolução da riqueza produzida. Acontece, porém, que há motivos para acreditar que o tempo de vida útil dos bens de capital tem vindo a diminuir. Por exemplo, os computadores e o software desactualizam-se muito mais rapidamente do que os fornos utilizados nas siderurgias. Logo, se usarmos o PIB em vez do PIL estaremos a sobrevalorizar a riqueza efectivamente produzida em cada país.
O gráfico abaixo mostra a evolução do PIB, do PNB e do PIL em Portugal desde 2000. Sem surpresas, o valor do PNB em 2013 face a 2000 é inferior ao valor do PIB, enquanto o do PIL é inferior ao de ambos. Assim, se seguíssemos aquilo para que apontam as boas práticas internacionais, usaríamos valores nacionais (e não internos) e líquidos (e não brutos) – isto é, olharíamos para o Produto Nacional Líquido (PNL) e não para o PIB. Se o fizermos, concluímos que a riqueza gerada pela economia portuguesa caiu 4% entre 2000 e 2013.
Quanto mais irá a economia portuguesa cair até percebermos que algo de fundamentalmente errado se passa?
Na verdade, desde há vários anos que o PIB vem sendo criticado enquanto indicador de bem-estar dos países, nomeadamente pelo facto de não considerar aspectos como o tempo de lazer, a distribuição do rendimento, as condições sociais ou os impactos do crescimento económico no ambiente.
Isto levou, por exemplo, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento a publicar anualmente, desde 1990, o seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), um indicador alternativo ao PIB que procura ter em conta não apenas os rendimentos gerados, mas também a evolução das condições de saúde e educação em cada país. Além disso, desde 2010 que o IDH tem em conta não o PIB mas antes o Produto Nacional Bruto (PNB). A diferença entre o PIB e o PNB assenta no facto de nem toda a riqueza gerada num território permanecer nesse território, já que parte dos rendimentos gerados ficam na posse de agentes económicos não-nacionais (por exemplo, os lucros e os juros auferidos por empresas estrangeiras no território nacional contam para o PIB, mas não para o PNB).
Mais recentemente, um famoso relatório coordenado por Joseph Stiglitz, Amartya Sen e Jean-Paul Fitoussi, sobre a medição do desempenho económico e do progresso social, avança com várias propostas para melhorar a aferição do bem-estar gerado por cada economia. Uma das sugestões que podemos encontrar no relatório tem a ver com a avaliação do produto em termos líquidos e não em termos brutos (como faz o PIB). A diferença entre um e outro prende-se com o facto de os bens de capital (as máquinas, os equipamentos, etc.) irem perdendo valor à medida que os anos passam. Como é difícil calcular o ritmo de depreciação do capital, os economistas habituaram-se a utilizar o PIB em vez do Produto Interno Líquido (PIL). Tal significa,porém, ignorar que parte da riqueza gerada tem de ser posta de parte para ir substituindo o capital que está a ser utilizado. Na verdade, desde que a taxa de depreciação do capital não se altere ao longo dos anos, é indiferente qual dos dois indicadores é utilizado, se o objectivo é medir a evolução da riqueza produzida. Acontece, porém, que há motivos para acreditar que o tempo de vida útil dos bens de capital tem vindo a diminuir. Por exemplo, os computadores e o software desactualizam-se muito mais rapidamente do que os fornos utilizados nas siderurgias. Logo, se usarmos o PIB em vez do PIL estaremos a sobrevalorizar a riqueza efectivamente produzida em cada país.
O gráfico abaixo mostra a evolução do PIB, do PNB e do PIL em Portugal desde 2000. Sem surpresas, o valor do PNB em 2013 face a 2000 é inferior ao valor do PIB, enquanto o do PIL é inferior ao de ambos. Assim, se seguíssemos aquilo para que apontam as boas práticas internacionais, usaríamos valores nacionais (e não internos) e líquidos (e não brutos) – isto é, olharíamos para o Produto Nacional Líquido (PNL) e não para o PIB. Se o fizermos, concluímos que a riqueza gerada pela economia portuguesa caiu 4% entre 2000 e 2013.
Quanto mais irá a economia portuguesa cair até percebermos que algo de fundamentalmente errado se passa?
«74-14 | O SAAL e a Arquitectura»
Por ocasião do 40º aniversário do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), o Centro de Estudos Sociais e o Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra promovem, entre 14 e 16 de Novembro, o Colóquio Internacional 74-14 | O SAAL e a Arquitectura, em parceria com a Fundação de Serralves, o Centro de Documentação 25 de Abril e o Docomomo Internacional.
Com este colóquio, pretende-se debater o SAAL «enquanto modelo histórico, à luz da circunstância contemporânea», assumindo-se que este programa singular de política pública de alojamento serve, «ainda hoje, para questionar e debater os temas e desafios que nos põem a questão da habitação, bem como a sua relação de proximidade com a arquitetura». Vigente entre 1974-76, o SAAL surgiu de facto como «um serviço descentralizado e desburocratizado, inserindo-se nos processos complexos da relação tripartida entre o Estado, os moradores pobres e os arquitetos». Além de gerar soluções inovadoras de promoção habitacional e de, nesses termos, «produzir arquitectura», o SAAL constitui ainda um processo de «reflexão séria e consciente sobre a cidade e os seus processos de planeamento».
O programa do colóquio internacional, que pode ser consultado aqui, contempla quatro perspectivas sobre o SAAL: a do seu enquadramento na arquitectura portuguesa; a da sua autonomia e relação com as instâncias de poder e a própria sociedade; a do seu significado enquanto processo de inclusão social e de materialização do direito à cidade; e a do diálogo interdisciplinar e entre formas distintas de conhecimento que permitiu. Ainda no âmbito do colóquio, está patente na Fundação de Serralves, até Fevereiro de 2015, a exposição «O Processo SAAL: Arquitectura e Participação, 1974-1976».
segunda-feira, 10 de novembro de 2014
A ineficácia das velhas ideias
No passado dia 5, o primeiro-ministro declarou que o descida do desemprego e a criação do emprego, verificadas desde o início deste ano, se deviam às alterações laborais introduzidas pelo seu Governo.
Não é nova esta ideia de que o desemprego baixa por se tornar o trabalho e o despedimento mais baratos. Faz parte de todo um programa político importado das instâncias internacionais e abraçado pela direcção do PSD como seu ideário. E, por isso, fez parte dos pontos de vistas de Passos Coelho, explanados antes de ser dirigente do PSD, desde que preparou as eleições de 2011 e quando se tornou primeiro-ministro. No início de 2012 defendeu que "se a legislação laboral durante anos provocou tanto desemprego, tem de mudar, e os sindicatos têm de aceitar".
Após as alterações introduzidas em 2012, o Ministério de Economia chegou mesmo a apresentar projecções sobre os efeitos. Os custos de trabalho iriam descer 5,23% e, com isso, aumentar o aumentar o emprego no curto prazo em 2,5% e em 10,5% no longo prazo.
Só passados mais de dois anos, os números do emprego deram sinais de estancar a queda, apresentando um crescimento médio nos 3 trimestres de 2014 de 0,7% em termos homólogos. E os empregos criados nada têm a ver com a ideia que o Governo tinha de como iria evoluir a competitividade externa nacional - mais de metade da subida deu-se no comércio, na administração pública, saúde e educação. Se calhar, estes números mostram, sim, que o Governo terá mudado de política, à beira de eleições.
A falta de aderência à realidade desta tese é tanto mais visível quando se observa o gráfico em cima, com os dados do INE, do Inquérito ao Emprego.
As primeiras grandes alterações laborais ocorreram em 2003, pela mão de mais um governo desta Maioria de direita, se bem que um pouco menos acriançada do que esta. Após as alterações legais, o emprego mal cresceu. Dir-se-á: "Ah, é porque foram insuficientes". Talvez. Mas em 2004/5, o Governo socialista de Sócrates mexeu novamente na legislação, aliás no mesmo sentido. O emprego mal pestanejou. E o desemprego continuou a subir como subia desde o início da década.
Foi esse o cenário encontrado por Passos Coelho quando chegou ao Governo. Novamente se alterou a lei laboral e, de forma profunda: sem nunca cortar directamente nos salários, cortou-se nas remunerações suplementares laborais e transformou-se tempos de lazer em tempo de produção, naquela que considerada a maior transferência de rendimento do trabalho para o capital. Tudo a par de um enorme aumento de impostos. O emprego não despontou.
Apenas este ano subiu ligeiramente. E Governo exulta de satisfação, mesmo que não se cumpram as previsões que inicialmente fez e sem qualquer explicação para esse facto.
Todas as mexidas na lei, desde 2003 a 2012, foram apresentadas como necessárias à competitividade nacional - se bem que esteja sobejamente provado que a redução de custos salariais pouca influência tem na competitividade. Aliás, foi isso mesmo que, por exemplo, o economista José Silva Lopes foi dizer ao Parlamento em 2002 e que o mal da economia portuguesa estava, sim, no seu endividamento externo... O que fez então a Maioria PSD/CDS sobre isso?
E agora, face à "resiliência" do emprego que teima em não exorbitar, volta-se - Comissão Europeia e FMI inclusivé - a insistir em novas mexidas na legislação laboral.
Bem sei que é possível encontrar uma correlação improvável entre duas variáveis que nada têm a ver uma com a outra. Mas se assim é, e se já se provou que as medidas laborais pouca ou nada mexem no emprego, talvez seja de olhar para outro lado.
Não sendo um economista profissional, proponho a que está no gráfico ao lado, construída com dados do INE para as contas nacionais trimestrais. Se o emprego surge do investimento, então talvez o investimento seja possível pelo aumento da procura, interna e externa. E que o investimento cai - e com ele o emprego - sempre que a procura cai. Por isso, cortar na procura pode ser uma má ideia.
Uma das implicações das alterações legais de 2012 foi, contudo, "dizer" às entidades patronais que o Governo está com elas e que "agora vale tudo". Fale-se com advogados de direito laboral e ouça-os contar casos cada vez mais violentos, próprios de quem não tem mais forma de reagir.
Cada vez mais se conclui - à custa de milhares de vidas - que a alteração da legislação laboral não é uma variável de ajuste económico; é mais um sinal de incapacidade de encontrar soluções para o problema bicudo que a política monetária europeia criou e que a intervenção da troika acentuou. Mas que esta Maioria cavalgou como o seu cavalo de batalha ideológica que visa também - como "plus" politico - acabar com os sindicatos como elementos activos de intervenção política. Mais uma velha ideia.
Não é nova esta ideia de que o desemprego baixa por se tornar o trabalho e o despedimento mais baratos. Faz parte de todo um programa político importado das instâncias internacionais e abraçado pela direcção do PSD como seu ideário. E, por isso, fez parte dos pontos de vistas de Passos Coelho, explanados antes de ser dirigente do PSD, desde que preparou as eleições de 2011 e quando se tornou primeiro-ministro. No início de 2012 defendeu que "se a legislação laboral durante anos provocou tanto desemprego, tem de mudar, e os sindicatos têm de aceitar".

Só passados mais de dois anos, os números do emprego deram sinais de estancar a queda, apresentando um crescimento médio nos 3 trimestres de 2014 de 0,7% em termos homólogos. E os empregos criados nada têm a ver com a ideia que o Governo tinha de como iria evoluir a competitividade externa nacional - mais de metade da subida deu-se no comércio, na administração pública, saúde e educação. Se calhar, estes números mostram, sim, que o Governo terá mudado de política, à beira de eleições.
A falta de aderência à realidade desta tese é tanto mais visível quando se observa o gráfico em cima, com os dados do INE, do Inquérito ao Emprego.
As primeiras grandes alterações laborais ocorreram em 2003, pela mão de mais um governo desta Maioria de direita, se bem que um pouco menos acriançada do que esta. Após as alterações legais, o emprego mal cresceu. Dir-se-á: "Ah, é porque foram insuficientes". Talvez. Mas em 2004/5, o Governo socialista de Sócrates mexeu novamente na legislação, aliás no mesmo sentido. O emprego mal pestanejou. E o desemprego continuou a subir como subia desde o início da década.
Foi esse o cenário encontrado por Passos Coelho quando chegou ao Governo. Novamente se alterou a lei laboral e, de forma profunda: sem nunca cortar directamente nos salários, cortou-se nas remunerações suplementares laborais e transformou-se tempos de lazer em tempo de produção, naquela que considerada a maior transferência de rendimento do trabalho para o capital. Tudo a par de um enorme aumento de impostos. O emprego não despontou.
Apenas este ano subiu ligeiramente. E Governo exulta de satisfação, mesmo que não se cumpram as previsões que inicialmente fez e sem qualquer explicação para esse facto.
Todas as mexidas na lei, desde 2003 a 2012, foram apresentadas como necessárias à competitividade nacional - se bem que esteja sobejamente provado que a redução de custos salariais pouca influência tem na competitividade. Aliás, foi isso mesmo que, por exemplo, o economista José Silva Lopes foi dizer ao Parlamento em 2002 e que o mal da economia portuguesa estava, sim, no seu endividamento externo... O que fez então a Maioria PSD/CDS sobre isso?
E agora, face à "resiliência" do emprego que teima em não exorbitar, volta-se - Comissão Europeia e FMI inclusivé - a insistir em novas mexidas na legislação laboral.
Bem sei que é possível encontrar uma correlação improvável entre duas variáveis que nada têm a ver uma com a outra. Mas se assim é, e se já se provou que as medidas laborais pouca ou nada mexem no emprego, talvez seja de olhar para outro lado.
Não sendo um economista profissional, proponho a que está no gráfico ao lado, construída com dados do INE para as contas nacionais trimestrais. Se o emprego surge do investimento, então talvez o investimento seja possível pelo aumento da procura, interna e externa. E que o investimento cai - e com ele o emprego - sempre que a procura cai. Por isso, cortar na procura pode ser uma má ideia.
Uma das implicações das alterações legais de 2012 foi, contudo, "dizer" às entidades patronais que o Governo está com elas e que "agora vale tudo". Fale-se com advogados de direito laboral e ouça-os contar casos cada vez mais violentos, próprios de quem não tem mais forma de reagir.
Cada vez mais se conclui - à custa de milhares de vidas - que a alteração da legislação laboral não é uma variável de ajuste económico; é mais um sinal de incapacidade de encontrar soluções para o problema bicudo que a política monetária europeia criou e que a intervenção da troika acentuou. Mas que esta Maioria cavalgou como o seu cavalo de batalha ideológica que visa também - como "plus" politico - acabar com os sindicatos como elementos activos de intervenção política. Mais uma velha ideia.
Keynes e os seus herdeiros
No que toca à Macroeconomia, muitos dos contributos mais relevantes para compreender o mundo contemporâneo têm sido produzidos por alguns dos herdeiros menos reconhecidos de Keynes.
John M. Keynes (1883-1946) é com certeza um dos economistas mais conhecidos do público em geral, se não mesmo o mais conhecido. É sintomático o facto de ter dado o nome não só a uma corrente (ou conjunto de correntes) do pensamento económico, como a algo ainda mais geral: um entendimento das economias modernas como sendo afectadas por crises e recessões que podem ser mitigadas ou ultrapassadas através da actuação das políticas públicas. Para qualquer leigo minimamente informado, "keynesianismo" significa, basicamente, activismo estatal em matéria de política económica.
Keynes adquiriu este carácter "metonímico", passando a designar algo de tão amplo, em parte devido ao seu brilhantismo e inovação teóricos, mas sobretudo devido a ter sido o homem certo na altura certa. Por outras palavras, devido ao seu pensamento ter permitido exprimir, entender e agir sobre a realidade social de um determinado tempo. Esse tempo foi a Grande Depressão dos anos '30.
O contributo de Keynes deu expressão teórica a uma evidência: que, ao contrário do que defendia a macroeconomia clássica, os mercados não estão necessariamente em equilíbrio e o desemprego generalizado existe. Avançou um mecanismo explicativo para esse facto: em economias com moeda e crédito, a procura não depende apenas da oferta, mas também da antecipação das decisões de consumo e investimento. E apontou as políticas públicas que permitem solucionar o problema identificado: a expansão da oferta de moeda e/ou do consumo e investimento públicos, conforme as circunstâncias.
domingo, 9 de novembro de 2014
Obrigado FMI
“A economia portuguesa continua a recuperar de uma grave crise de endividamento”, diz o FMI na primeira linha da declaração que emitiu depois da sua recente visita a Lisboa.
A crise agora é de endividamento, não da “dívida soberana”. Sempre o foi, como muitas vezes aqui (e aqui), por exemplo, dissemos. Mas, ao FMI convinha mais falar em “dívida soberana”, já que desta forma era mais fácil justificar cortes nos salários e pensões e aumentos de impostos.
Continua logo de seguida o FMI a cantar loas aos resultados do ajustamento: recuperação do produto, recuo do desemprego, correção do défice externo, contenção do endividamento privado, consolidação orçamental “substancial”, acesso restabelecido aos mercados de dívida soberana…
Seguem-se 11 parágrafos de “but”s e uma sentença final. Tentarei resumi-los:
- O crescimento é fraco, o desemprego alto e o sub-investimento está a erodir o stock de capital. É pouco provável que o crescimento do emprego continue, o que se pode traduzir em emigração continuada de numerosos trabalhadores qualificados;
- O “ajustamento orçamental” está a parar quando devia prosseguir para que a dívida pública fosse sustentável;
- Portugal precisa de aumentar a competitividade externa, mas isso é muito difícil tanto mais que: “a baixa inflação nos principais parceiros comerciais torna o necessário ajustamento de preços relativos ainda mais difícil”. “Sem instrumentos que permitam a desvalorização [cambial], as reformas estruturais são a única via…”.
- Para aumentar a competitividade externa Portugal deve aproveitar o seu potencial (boas infraestruturas públicas, sistemas de saúde e de educação de alta qualidade, forte capacidade de inovação e investigação e relativa facilidade de iniciar novos negócios). Deve também ultrapassar constrangimentos: administração pública ineficiente, justiça lenta, regulações laborais restritivas e falta de concorrência nos mercados de produtos locais.
- A dívida excessiva das empresas impede o investimento e o crescimento da produtividade. Deve ser reestruturada. Os bancos devem evitar assumir riscos excessivos
- A sentença final: Portugal não se pode desviar dos seus comprometimentos orçamentais. Mas, “o orçamento de 2015 não está em linha com os comprometimentos assumidos no atual quadro orçamental de médio-longo prazo”.
Vamos lá ver seu eu entendi bem. A coisa poderia ser dita de outra forma:
"Vocês foram bem-mandados. Fizeram tudo o que nós dissemos e obtiveram alguns dos resultados que nós esperávamos. Mas agora estão metidos num grande sarilho. A dívida parou de crescer mas agora vocês estão mais pobres e com menos capacidade para recuperar e até pagar a dívida. As empresas continuam sobre endividadas e os bancos frágeis.
O que temos para vos propor é mais ajustamento orçamental e mais reformas estruturais para recuperar a competitividade externa.
Nós sabemos que recuperar a competitividade externa é muito difícil em contexto de deflação e fraco crescimento na Europa. É certo que podiam tirar proveito do que têm de bom, mas com mais consolidação orçamental é difícil não darem cabo da boa educação, saúde, infraestruturas públicas e capacidade de investigação e desenvolvimento. Resta-vos portanto continuar a acabar com a legislação do trabalho para desvalorizar salários, com a justiça (lenta), com a administração pública (ineficiente), e com misteriosas rendas que ninguém vos vai dizer onde estão.
Resta-vos, portanto, continuar a fazer o que vos meteu neste sarilho. Não temos outra coisa para propor. Desculpem qualquer coisinha.
Na verdade estamos desorientados. Quisemos resolver uma crise de endividamento, sacrificando tudo e todos, sem beliscar um cabelo que fosse da hirsuta cabeleira dos credores. Como resultado estamos a colher uma ventania em quem nem os credores ficam livres de ficar sem a peruca que lhes escondia a careca."
sexta-feira, 7 de novembro de 2014
Juncker é que era...
Perante o incompreensível entusiasmo em relação a Jean-Claude Juncker entre os eternos euro-iludidos, não deixámos aqui de assinalar que o Presidente da Comissão Europeia tinha sido apoiante da austeridade em vigor e governante de um pequeno inferno fiscal. Isto está agora ainda mais à vista, graças ao bom jornalismo de investigação: centenas de multinacionais beneficiadas e muitos interesses públicos nacionais prejudicados em muitos milhares de milhões de euros por toda uma teia de acordos secretos activamente tecida pelas autoridades luxemburguesas ao longo dos anos. Não sendo o Luxemburgo caso único de certeza, lembrem-se, apesar disso, por onde andou o Espírito Santo e as razões dessas andanças luxemburguesas. Isto está tudo de alguma forma ligado e é por isso que se fala de sistema em economia política, sendo preciso muito treino numa certa economia, daquela que não tem política (supostamente), nem história, nem sociedade, nem nada, para deixar de ver.
A verdade é que as chamadas térmitas fiscais foram sendo criadas por todo o lado nas últimas décadas: desde a abolição dos controlos de capitais até aos grandes interesses que comandam reformas fiscais cada vez mais amigas de um certo capital (descidas sucessivas no IRC, com os resultados conhecidos...), passando pelos infernos fiscais europeus que alastram, graças a diabruras políticas várias. É todo um contexto institucional progressivamente coerente e também gerado por uma europeização que foi a expressão concreta que a globalização neoliberal assumiu no continente. A opacidade e a injustiça estão inscritas num sistema multi-escalar em que o dinheiro manda com freios e contra-pesos assim cada vez mais carcomidos, que as térmitas são selectivas em termos de classe: as coisas são como são feitas e desfeitas, os tais sistemas. É tudo muito claro para quem tenha vontade de olhar para os sórdidos mecanismos reais para lá das fantasias de mercado.
A senhora Merkel, a Europa e Heinrich von Thünen
As recentes afirmações de Angela Merkel, para quem Portugal e Espanha têm um excesso de licenciados, são apenas mais um exemplo da visão preconceituosa, distorcida e desinformada sobre as economias da periferia europeia, que se soma a considerações na mesma linha (como as relativas à preguiça e indolência dos povos do Sul ou ao défice de produtividade da economia portuguesa, resultante de um suposto excesso de feriados).
Em matéria de diplomados, basta a percepção de senso comum para contrariar a chanceler alemã, tratando os dados oficiais de confirmar os factos. De acordo com o Eurostat, em 2013 apenas 17,6% da população portuguesa em idade activa tinha completado estudos superiores, enquanto na Alemanha esse valor rondava os 25,1% (em consonância com a média europeia, de 25,3%). E, nem de propósito, as declarações de Angela Merkel surgiram apenas um dia depois de se saber - a partir de um estudo recente da OIT - que mais de metade (52,3%) dos trabalhadores portugueses têm qualificações a menos face às funções que exercem (40,1% no caso da população jovem), situação que certamente em nada é favorecida pela estimativa de que a emigração possa ter levado nos últimos anos, para fora do país, cerca de um quinto da sua força de trabalho mais qualificada.
As afirmações da chanceler alemã inscrevem-se contudo numa dimensão com contornos mais amplos: a de um certo imaginário da Europa, que é simultaneamente uma perspectiva sobre o que existe e a antevisão do projecto que se pretende para o seu futuro. De forma simples (porque ele próprio é muito simples), esse imaginário prospectivo realça os contrastes entre o espaço do centro e o da periferia europeia. Como se se tratasse de fazer cumprir, relativamente a um e a outro, uma espécie de «vocação natural» de desenvolvimento desigual. Isto é, se aos países do centro europeu correspondem os desígnios de uma economia moderna e avançada, dos países da periferia não deve esperar-se nada que vá além dos patamares inerentes a uma economia tradicional e subdesenvolvida. Ou seja, como se a Europa não fosse mais que a réplica - em grande escala - de uma cidade e do campo que a envolve, como sugere o modelo dos círculos concêntricos que Heinrich von Thünen formulou em 1826, a propósito da organização dos espaços de economia agrícola em redor de uma área urbana.
Nada neste imaginário, que as palavras da senhora Merkel sugerem, é propriamente novo ou surpreendente. É ou não isto que se pretende com o «ajustamento», o «empobrecimento» e a «mudança estrutural» da economia portuguesa? É ou não disto que se trata quando a aposta na competitividade do país assenta no fomento dos baixos salários, no estilhaçar da legislação laboral, nas transferências de recursos do trabalho para o capital e na criação de todas as «zonas de conforto» possíveis para uma iniciativa privada medíocre e sem visão estratégica? É ou não disto que se trata quando o desinvestimento deliberado na educação, no ensino superior e na ciência, tecnologia e inovação atingiu os níveis que conhecemos nos últimos anos? Para que precisa uma economia assim de qualificar a sua mão-de-obra? E como não ajustar os níveis de bem-estar e os serviços públicos de saúde, educação e protecção social aos patamares mínimos que correspondem a esse modelo de subdesenvolvimento económico e social que se pretende estabelecer e consolidar?
quinta-feira, 6 de novembro de 2014
De esquerda e com orgulho
Parte de uma sugestão de leitura:
Hoje, a narrativa dominante é a do fundamentalismo
do mercado, largamente conhecido na Europa como neoliberalismo. A estória que
conta é a de que o mercado pode resolver quase todos os problemas sociais,
económicos e políticos. Quanto menos o Estado nos regulamentar e taxar, melhor
ficaremos. Os serviços públicos deviam ser privatizados, a despesa pública
devia ser cortada e os negócios deviam ser libertados do controlo social. Nos
países como o Reino Unido e os EUA, desde há 35 anos que esta estória formatou
as normas e os valores: desde que Thatcher e Reagan chegaram ao poder. Está a
colonizar rapidamente o resto do mundo. (...)
No centro desta estória está a noção de mérito. A competição desenfreada
recompensa as pessoas que têm talento, que trabalham com afinco e que inovam.
Derruba as hierarquias e cria um mundo de oportunidades e mobilidade. A
realidade é um bocado diferente. Mesmo no início do processo, quando os
mercados ainda não estão regulados, não se começa com oportunidades iguais.
Muita gente está bem para trás quando se dá o tiro de partida. Foi assim que os
oligarcas russos conseguiram alcançar essa riqueza no momento em que a URSS se
decompôs. No seu conjunto, não eram as pessoas mais talentosas, esforçadas ou
inovadoras, apenas as que tinham menos escrúpulos, os maiores bandidos com os
melhores contactos, frequentemente no KGB.
Mesmo quando o talento e esforço justificam o que se adquiriu, isso não
se mantém por muito tempo. Uma vez enriquecida a primeira geração de
empresários com iniciativa, a meritocracia inicial é substituída por uma nova
elite que protege os seus filhos da concorrência através da herança e da melhor
educação que o dinheiro pode pagar. Onde o fundamentalismo do mercado foi
aplicado mais ferozmente – em países como o Reino Unido e os EUA – a mobilidade
social reduziu-se imenso.
Se o neoliberalismo não fosse mais que um conservadorismo egoísta, cujos
gurus e centros de difusão desse pensamento foram financiados desde o início
por algumas das pessoas mais ricas do planeta (os magnatas americanos Coors, Olin, Scaife, Pew e outros), os seus apóstolos teriam reivindicado, como
pré-condição para uma sociedade baseada no mérito, que ninguém deveria iniciar
a sua vida com a vantagem desleal da riqueza herdada e de uma educação determinada
por recursos económicos. Mas eles nunca acreditaram na sua própria doutrina. Em
consequência, a iniciativa empresarial rapidamente deu lugar às rendas. (...)
quarta-feira, 5 de novembro de 2014
Conversar e desconversar
A recente polémica em torno da censura do número da Análise Social pelo director do Instituto de Ciências Sociais é um bom retrato de uma certa academia em tempos de crise. O caso é claro, o proprietário da revista decidiu passar por cima do seu director e do conselho editorial e anular a publicação da revista em causa por causa de uma foto, parte de um ensaio visual, onde figurava a palavra “caralho”, mais concretamente “sacrifícios, o caralho” com nomes como Ricardo Salgado ou Soares dos Santos a acompanhar o graffiti. Não vou discutir o bom gosto, embora o gosto se discuta, claro (nos órgãos próprios, neste caso o conselho editorial). O que interessa aqui é, de facto, a ilegitimidade do proprietário da revista (e não da sua direcção) em cancelar o número, no que é claramente um acto de censura. Se alguém se serve da sua posição de poder, a propriedade, para ultrapassar quem de direito decide sobre os conteúdos de uma publicação, então parece-me clara a censura e claro o ataque a instituições de ciência consagradas.
O justificado escândalo ficaria por aqui não fosse a defesa montada pelo director do ICS e seus acompanhantes ter começado a desconversar, uma técnica conhecida. E aqui as coisas começaram a ficar mais interessantes. Primeiro, o comunicado do director do ICS assinala que o tal ensaio visual não tinha passado pelo habitual processo de revisão pelos pares das publicações científicas. Uma argumentação recuperada pela investigadora do ICS, Marina Costa Lobo no Facebook. Mas, então e os anteriores ensaios visuais publicados na Análise Social sem revisão pelos pares, o que aliás está previsto que aconteça? Os anteriores números também devem ser destruídos? E se no processo de revisão pelos pares o tal “caralho” tivesse passado (como na verdade passou na legitima decisão do director e do conselho editorial da revista)? Já não havia problema? Pois. Argumento fraquinho.
Mas eis que senão temos um novo argumento, desta vez do investigador do ICS, Pedro Lains, em post no seu blogue. Diz Pedro Lains que a direcção cessante da Análise Social tinha “uma agenda”. Confesso que a minha primeira reacção foi esperar bem que sim! Convém à direcção de uma publicação ter uma agenda científica para esta. Mas acho que não era a isso que Pedro Lains se referia. Marina Costa Lobo pode ajudar a perceber que agenda é esta: “desde a sua fundação [da revista] foi feito um árduo caminho com sucesso: o de separar investigação científica da política activa”. Ah, então a agenda é a da política activa que a publicação de fotos de graffiti supostamente consubstancia e que aparentemente o processo de revisão de pares anula. Enfim, o que começa a parecer mais claro é que o problema com os graffiti não é, nem o “caralho”, nem a ausência de revisão de pares. O enredo torna-se mais tortuoso.
E aqui, voltamos a Pedro Lains e a uma consideração final no seu texto sobre a relação entre o ICS e uma fundação: “Falta uma coisa. Qualquer fundação que ande por esse país e que não seja uma das consagradas depende mais do Instituto que publica a Análise Social do que o mesmo Instituto depende de qualquer uma dessas fundações. Certo, sabido, e facilmente reconhecido.” Como o graffiti tinha o nome de Soares dos Santos e sabendo do envolvimento de vários investigadores do ICS com a fundação do pingo doce, previsto aliás num protocolo entre as duas instituições, que deve ser lido, dados os seus termos, vou, perdoem-me a liberdade, considerar que, se calhar, o problema não é o “caralho”, nem a revisão pelos pares, nem a “política activa”, mas sim chatear quem não se deve. Diz Pedro Lains algures no seu texto “Portugal é livre, em todo o lado.” Aqui estão uma posição e uma agenda políticas que merecem o mais atento escrutínio científico…
O justificado escândalo ficaria por aqui não fosse a defesa montada pelo director do ICS e seus acompanhantes ter começado a desconversar, uma técnica conhecida. E aqui as coisas começaram a ficar mais interessantes. Primeiro, o comunicado do director do ICS assinala que o tal ensaio visual não tinha passado pelo habitual processo de revisão pelos pares das publicações científicas. Uma argumentação recuperada pela investigadora do ICS, Marina Costa Lobo no Facebook. Mas, então e os anteriores ensaios visuais publicados na Análise Social sem revisão pelos pares, o que aliás está previsto que aconteça? Os anteriores números também devem ser destruídos? E se no processo de revisão pelos pares o tal “caralho” tivesse passado (como na verdade passou na legitima decisão do director e do conselho editorial da revista)? Já não havia problema? Pois. Argumento fraquinho.
Mas eis que senão temos um novo argumento, desta vez do investigador do ICS, Pedro Lains, em post no seu blogue. Diz Pedro Lains que a direcção cessante da Análise Social tinha “uma agenda”. Confesso que a minha primeira reacção foi esperar bem que sim! Convém à direcção de uma publicação ter uma agenda científica para esta. Mas acho que não era a isso que Pedro Lains se referia. Marina Costa Lobo pode ajudar a perceber que agenda é esta: “desde a sua fundação [da revista] foi feito um árduo caminho com sucesso: o de separar investigação científica da política activa”. Ah, então a agenda é a da política activa que a publicação de fotos de graffiti supostamente consubstancia e que aparentemente o processo de revisão de pares anula. Enfim, o que começa a parecer mais claro é que o problema com os graffiti não é, nem o “caralho”, nem a ausência de revisão de pares. O enredo torna-se mais tortuoso.
E aqui, voltamos a Pedro Lains e a uma consideração final no seu texto sobre a relação entre o ICS e uma fundação: “Falta uma coisa. Qualquer fundação que ande por esse país e que não seja uma das consagradas depende mais do Instituto que publica a Análise Social do que o mesmo Instituto depende de qualquer uma dessas fundações. Certo, sabido, e facilmente reconhecido.” Como o graffiti tinha o nome de Soares dos Santos e sabendo do envolvimento de vários investigadores do ICS com a fundação do pingo doce, previsto aliás num protocolo entre as duas instituições, que deve ser lido, dados os seus termos, vou, perdoem-me a liberdade, considerar que, se calhar, o problema não é o “caralho”, nem a revisão pelos pares, nem a “política activa”, mas sim chatear quem não se deve. Diz Pedro Lains algures no seu texto “Portugal é livre, em todo o lado.” Aqui estão uma posição e uma agenda políticas que merecem o mais atento escrutínio científico…
Estado e comércio explicam maioria do emprego criado

Apesar dessa melhoria, convirá analisar esses números - os diversos números - mais aprofundadamente para se perceber o que se passa no terreno.
A recuperação do emprego está a fazer-se nos três últimos trimestres, mas o nível geral do emprego está ainda longe dos valores anteriores à crise de 2007/08. O inquérito de emprego teve uma quebra de série em 2011, mas os valores passados - se não comparáveis - dão uma ideia da destruição de postos de trabalho que se verificou nos últimos anos e quão longe ainda estamos de recuperar esse passado.

O gráfico mostra a variação de postos de trabalho, em valores nominais (em milhares), face ao trimestre homólogo do ano anterior. O que se verifica é que o emprego na Agricultura esta em queda. A indústria e construção está a recuperar, mas é o sector dos serviços que explica a maior parte da criação de emprego.
Dos 95 mil postos de criação neste 3º trimestre de 2014 face ao de 2013, cerca de 110 mil foram criados nos serviços, 46 mil na indústria e construção e a Agricultura perdeu 60 mil.
Mas ainda mais interessante é ver que actividades estão a impulsionar a evolução dos serviços.
Dos 110 mil postos de trabalho criados, cerca de dois terços são explicados pelo comércio e pelas actividades que, em geral, são consideradas como actividades públicas: administração pública, educação e saúde.
A existência de um sector privado na educação e na saúde pode confundir a análise. Mas quase não devia. No sector da Saúde por exemplo, segundo o INE (Estatísticas da Saúde, 2012), dos 21.804 médicos, havia 19.254 médicos no sector público, 510 no sector não público e 2040 no sector privado. Quanto a enfermeiros, dos 46.384 existentes, 42.869 estavam no sector público, 446 no sector não oficial e 3069 no privado.
Se considerarmos, por facilidade, que a quase totalidade se trata de actividades do Estado, então cerca de 25% dos novos empregos nos serviços foram criado no comércio e 37% tanto no Estado como no conjunto dos outros serviços. Sem o Estado, a criação de emprego terse-ia ficado por cerca 54 mil postos de trabalho, metade do que surge agora nas estattísticas.
Este dado é tanto mais interessante quando o Governo - e o primeiro-ministro ainda no mais recente debate parlamentar - tem sublinhado a mudança de paradigma na economia que ocorreu nos últimos 3 anos face a um passado em que o país caiu em actividades doentias que permitiam crescer apenas através do endividamento externo, da procura interna e à custa do Estado.
Pois bem, o discurso político deveria ser mais rico e menos preocupado em conseguir conquistar o soundbyte das televisões. E talvez o Governo devesse mais modesto na festa dos números que põem em causa todo o seu discurso sobre a eficácia da austeridade.
Debate, amanhã: «Resgatar a PT»
«A PT é uma empresa estratégica que tem no nome Portugal. É preciso saber como é que a PT pode e deve ser resgatada e exigir dos poderes públicos que por uma vez respeitem "o primado do interesse e da responsabilidade públicas". Permitir a sua alienação a interesses financeiros, ou a estratégias multinacionais, é uma cedência que no futuro se pagará cara. Como consta do Apelo para Resgatar a PT, "o assunto já não é apenas empresarial, mas assume contornos políticos nacionais".»
Promovido pelo Observatório sobre Crises e Alternativas, realiza-se amanhã, 6 de Novembro, no Auditório do CIUL (Centro de Informação Urbana de Lisboa), no Picoas Plaza, Rua do Viriato, a partir das 18h00, o debate «Resgatar a PT, uma emergência», em que participarão, como oradores, Diogo Freitas do Amaral e João Cravinho (com moderação de Manuel Carvalho da Silva).
Foram convidados a participar no debate a Administração da PT Portugal, a Comissão de Trabalhadores da PT e Sindicatos onde estão representados/as trabalhadores/as da empresa. A entrada é livre.
terça-feira, 4 de novembro de 2014
António Costa insiste em não ter razão
Sinceramente, não tenho nenhum prazer em voltar a este tema. Em primeiro lugar, porque a única vez que coloquei uma cruz à frente do símbolo do PS num boletim de voto foi para ajudar a reeleger António Costa à frente da Câmara Municipal de Lisboa. Não estou arrependido (ainda que não tenha qualquer intenção de repetir o gesto nas eleições legislativas de 2015) e não o teria feito se considerasse que a acção política e executiva de António Costa é conduzida por “incompetência ou má-fé”, como recentemente afirmou Poiares Maduro.
Voltar ao tema também não me agrada porque, no que respeita às posições políticas de António Costa, preferiria escrever sobre assuntos bem mais importantes. Quando o futuro líder do PS se pronunciar – o que ainda não fez – sobre a estratégia orçamental que pretende seguir nos próximos anos caso seja eleito primeiro-ministro, ou sobre como pretende lidar com o elevado endividamento público e privado em Portugal, ou ainda sobre como irá actuar face às disfunções da arquitectura da união económica e monetária europeia, que condenam a Europa e Portugal à delapidação do Estado Social – aí sim, valerá a pena debatermos a fundo as opções políticas em causa, seja para delas discordar ou, desejavelmente, para identificar pontos de entendimento que permitam perspectivar uma alteração de rumo para o país.
Dito isto, é impossível deixar de assinalar a forma como António Costa, na última Quadratura do Círculo (SIC Notícias), optou por lidar com a sua badalada gaffe acerca dos fundos do QREN. Costa não só se recusou a admitir o erro anterior, como procurou defender-se com base em duas afirmações pouco avisadas.
Primeiro, apresentou como evidência de má gestão do QREN, por parte do actual governo, o facto de ainda haver uma grande proporção de fundos por executar, sugerindo que aquele programa deveria ter terminado em 2013 e lembrando que o novo ciclo de fundos (2014-2020) já deveria ter tido início. Ora, em nenhum cenário seria de esperar que o QREN (cujo período de vigência formal é, de facto, 2007-2013) já estivesse inteiramente executado. Para perceber isto, basta olhar para o gráfico abaixo, onde se dá conta da execução dos fundos da Política de Coesão da UE entre 2000 e 2010. Como se pode verificar, parte do QCAII (em vigor no período 1994-1999) só foi executada em 2000 e 2001 (quando o QCA III, em vigor em 2000-2006, já estava em curso); e uma parte ainda maior do QCA III só foi executada em 2007, 2008 e 2009 (quando o QREN 2007-2013 já estava, ou deveria estar, em curso).
Ou seja, contrariamente ao que António Costa sugere, não é incomum – pelo contrário, está mesmo previsto nos regulamentos comunitários e acontece sempre em todos os países – que parte dos fundos de um ciclo de programação só seja executada quando o novo ciclo se inicia. Mais, tanto o final do QCA II como o final do QCA III coincidiram com períodos de governação socialista. Logo, a crítica que Costa aponta ao actual governo, se fosse correcta (e não é), aplicar-se-ia da mesma forma (aliás com maior intensidade no caso do QCAIII) aos governos do PS.
Mais adiante, quando Lobo Xavier chamou a atenção do futuro líder socialista para o facto de Portugal apresentar uma das maiores taxas de execução dos fundos entre os países da UE, Costa escudou-se numa metáfora futebolística (‘o Benfica vai à frente no campeonato, mas é indiscutível que perdeu com o Braga’), sugerindo assim que o bom desempenho na execução do QREN não se devia aos últimos anos de governação, sendo algo que vinha de trás. No entanto, a análise da evolução do ritmo de execução dos fundos (próximo gráfico) não sugere que haja uma desaceleração significativa na execução desde 2011.
Na verdade, isto pouco ou nada nos diz sobre os méritos ou desméritos do actual governo na gestão do QREN: seja porque o ritmo de execução após 2010 é em parte explicado por decisões tomadas pelo anterior governo no final do seu mandato; seja porque a execução depende mais das condições financeiras do país do que das decisões governamentais; ou ainda porque, como já aqui referi, é muito menos importante saber quanto foi gasto do que o destino que se deu aos fundos.
Ainda mais relevante, nesta fase, é saber o que se vai fazer com os fundos europeus no período 2014-2020. É que os fundos representam hoje uma parcela fundamental dos recursos disponíveis para políticas de desenvolvimento do país. Até aqui tudo tem estado a ser decidido no segredo de negociações opacas entre o governo e a Comissão Europeia, sem escrutínio nem debate (nem sequer no Parlamento). Seria bem mais interessante ouvir António Costa falar sobre isto. Ou seja, ouvi-lo falar no que é verdadeiramente importante para o nosso futuro colectivo.
[Nota: os gráficos acima e muita outra informação sobre os fundos estão disponíveis aqui].
Voltar ao tema também não me agrada porque, no que respeita às posições políticas de António Costa, preferiria escrever sobre assuntos bem mais importantes. Quando o futuro líder do PS se pronunciar – o que ainda não fez – sobre a estratégia orçamental que pretende seguir nos próximos anos caso seja eleito primeiro-ministro, ou sobre como pretende lidar com o elevado endividamento público e privado em Portugal, ou ainda sobre como irá actuar face às disfunções da arquitectura da união económica e monetária europeia, que condenam a Europa e Portugal à delapidação do Estado Social – aí sim, valerá a pena debatermos a fundo as opções políticas em causa, seja para delas discordar ou, desejavelmente, para identificar pontos de entendimento que permitam perspectivar uma alteração de rumo para o país.
Dito isto, é impossível deixar de assinalar a forma como António Costa, na última Quadratura do Círculo (SIC Notícias), optou por lidar com a sua badalada gaffe acerca dos fundos do QREN. Costa não só se recusou a admitir o erro anterior, como procurou defender-se com base em duas afirmações pouco avisadas.
Primeiro, apresentou como evidência de má gestão do QREN, por parte do actual governo, o facto de ainda haver uma grande proporção de fundos por executar, sugerindo que aquele programa deveria ter terminado em 2013 e lembrando que o novo ciclo de fundos (2014-2020) já deveria ter tido início. Ora, em nenhum cenário seria de esperar que o QREN (cujo período de vigência formal é, de facto, 2007-2013) já estivesse inteiramente executado. Para perceber isto, basta olhar para o gráfico abaixo, onde se dá conta da execução dos fundos da Política de Coesão da UE entre 2000 e 2010. Como se pode verificar, parte do QCAII (em vigor no período 1994-1999) só foi executada em 2000 e 2001 (quando o QCA III, em vigor em 2000-2006, já estava em curso); e uma parte ainda maior do QCA III só foi executada em 2007, 2008 e 2009 (quando o QREN 2007-2013 já estava, ou deveria estar, em curso).
Ou seja, contrariamente ao que António Costa sugere, não é incomum – pelo contrário, está mesmo previsto nos regulamentos comunitários e acontece sempre em todos os países – que parte dos fundos de um ciclo de programação só seja executada quando o novo ciclo se inicia. Mais, tanto o final do QCA II como o final do QCA III coincidiram com períodos de governação socialista. Logo, a crítica que Costa aponta ao actual governo, se fosse correcta (e não é), aplicar-se-ia da mesma forma (aliás com maior intensidade no caso do QCAIII) aos governos do PS.
Mais adiante, quando Lobo Xavier chamou a atenção do futuro líder socialista para o facto de Portugal apresentar uma das maiores taxas de execução dos fundos entre os países da UE, Costa escudou-se numa metáfora futebolística (‘o Benfica vai à frente no campeonato, mas é indiscutível que perdeu com o Braga’), sugerindo assim que o bom desempenho na execução do QREN não se devia aos últimos anos de governação, sendo algo que vinha de trás. No entanto, a análise da evolução do ritmo de execução dos fundos (próximo gráfico) não sugere que haja uma desaceleração significativa na execução desde 2011.
Na verdade, isto pouco ou nada nos diz sobre os méritos ou desméritos do actual governo na gestão do QREN: seja porque o ritmo de execução após 2010 é em parte explicado por decisões tomadas pelo anterior governo no final do seu mandato; seja porque a execução depende mais das condições financeiras do país do que das decisões governamentais; ou ainda porque, como já aqui referi, é muito menos importante saber quanto foi gasto do que o destino que se deu aos fundos.
Ainda mais relevante, nesta fase, é saber o que se vai fazer com os fundos europeus no período 2014-2020. É que os fundos representam hoje uma parcela fundamental dos recursos disponíveis para políticas de desenvolvimento do país. Até aqui tudo tem estado a ser decidido no segredo de negociações opacas entre o governo e a Comissão Europeia, sem escrutínio nem debate (nem sequer no Parlamento). Seria bem mais interessante ouvir António Costa falar sobre isto. Ou seja, ouvi-lo falar no que é verdadeiramente importante para o nosso futuro colectivo.
[Nota: os gráficos acima e muita outra informação sobre os fundos estão disponíveis aqui].
segunda-feira, 3 de novembro de 2014
Derrotar o novo imperialismo de comércio livre
Se a intenção é convencer o público de que os acordos internacionais de comércio são uma forma de enriquecer as multinacionais à custa dos cidadãos comuns, eis o que deve ser feito: dar um direito especial às empresas para recorrerem a um tribunal secreto, gerido por advogados extremamente bem pagos pelas empresas, para pedir compensações sempre que um governo aprova uma lei que, por assim dizer, desencoraja o fumo, protege o ambiente ou previne uma catástrofe nuclear.
Excerto de uma The Economist recente, oportunamente recuperado por Paulo Pena no Público de ontem, uma peça sobre o mecanismo de resolução de disputas entre estados e grandes empresas previsto na chamada parceria transatlântica para o comércio e para o investimento, reforçando o que na economia política internacional crítica se chama a constituição internacional do capital. A The Economist foi fundada em 1843, quando o imperialismo de comércio livre britânico estava em ascensão, e manteve-se até aos dias de hoje fiel ao que nunca passou do “proteccionismo dos mais fortes”, segundo os seus mais realistas críticos. No entanto, a The Economist parece uma publicação crítica ao pé dos nossos fundamentalistas de mercado, do antigo responsável no Parlamento Europeu pelo comércio internacional, Vital Moreira, ao inenarrável Bruno Maçães; são os que defendem a tal “parceria” e os seus múltiplos dispositivos de esvaziamento do que resta de soberania democrática, os que até parece que só pensam em termos dos interesses das fracções aparentemente mais transnacionalizadas do capital. Na realidade, a The Economist sabe mais sobre hegemonia, já escreveu sobre globalizações e desglobalizações, e percebe que o tal público pode pôr em causa estes interesses privados.
Como sempre acontece, circulam por aí uns estudos de encomenda, do mesmo tipo dos que nos prometiam grandes ganhos com as anteriores rondas de liberalização comercial e financeira ou com a adesão ao euro, os momentos essenciais da nossa rendição económica. Viu-se e vê-se: é toda uma literatura de economia política do desenvolvimento quando se sai de Coimbra pela Pedrulha, pelo exemplo mais perto de casa, toda uma desgraçada devastação industrial. Ver-se-á um pouco mais ainda se este acordo for para a frente. Portugal tem o pior dos mundos: uma abertura comercial e financeira cada vez mais intensa, construída a golpes políticos com reduzido escrutínio democrático, e regras que impedem a política industrial ou qualquer outra forma de capacitação socioeconómica desta periferia amarrada a uma moeda estruturalmente forte. E, claro, uma elite dominante que se imagina no centro do mundo, agora dada a devaneios geoeconómicos atlânticos de ocasião, racionalizações de decisões entre Bruxelas e Washington; uma elite que nos arrasta para uma posição cada vez mais periférica, devido à sua permanente abdicação política e de instrumentos de política.
Quando os recursos escassos são usados em proveito político
"Temos recursos escassos para afectar aos mais desfavorecidos e, por isso, temos de ser criteriosos".
Este é o argumento do Governo repetido à exaustão, quando se trata de cortar prestações sociais. As palavras citadas são da ministra das Finanças numa recente sessão parlamentar.
Este argumento tem razão de ser, mas não deveria ficar circunscrito apenas para os apoios sociais. Os recursos públicos são escassos e deveria haver uma forma de aferir se apoios concedidos - sejam sociais ou em benefícios fiscais - cumprem esse objectivo.
O primeiro passo da redistribuição do rendimento deveria passar por uma política fiscal eficaz. Mas não é isso que acontece. A política fiscal não taxa mais aos mais ricos; sobretudo taxa mais aos assalariados e aos pensionistas mais ricos, porque o IRS é demasiado poroso à fuga de outros rendimentos. Tributa o património imobiliário, mas não o património mobiliário. E quando às empresas e capitais, taxa por igual empresas e capitais com baixo e elevado nível de rendimento. E isto sem discutirmos a definição da matéria colectável por onde - graças a deduções e benefícios - se esfuma muito do rendimento por tributar pelas empresas.
Vem isto a propósito da reforma de IRS e dos esforços do CDS para aliviar as famílias numerosas em sede de IRS. Nunca é dito a quem esta medida se dirige, nem se apresentam cálculos sobre o impacto dessa medida, apesar do OE 2015 ter - supostamente - integrado uma previsão de perda de receita fiscal.
Os Censos de 2011 poderiam ser uma boa fonte de informação. Mas - pasme-se! - não foi feita qualquer pergunta nos Censos quanto ao rendimento dos agregados familiares. A única forma de lá chegar indirectamente - e com todos os cuidados possíveis - é através dos encargos com alojamento.
Mas veja-se o número de famílias numerosas (mais de 3 pessoas a cargo), quando se "ventila" essa informação tanto por escalões de renda como de encargos nas prestações para compara de habitação própria.
O que se verifica é que a maior parcela das famílias numerosas têm tanto rendas mais elevadas como maiores encargos com a compra de casa. Ou seja, parece que o universo das pessoas a privilegiar por esta medida da Reforma de IRS se centra na classe média. Conclusão que corrobora a informação extraída dos Censos de 2001 e 2011 de que as famílias mais numerosas em crescimento centram-se em agregados de empresários, quadros técnicos e actividades semelhantes e profissionais administrativos e de serviços.
Por outras palavras, o Governo - cedendo ao CDS - não está a efectuar a devida redistribuição dos escassos recursos públicos, mas apenas a aliviar uma classe média saturada de impostos e que, com esta maneira, poderá ser seduzida à última hora para umas eleições que parecem cada vez mais perdidas para a Maioria.
Este é o argumento do Governo repetido à exaustão, quando se trata de cortar prestações sociais. As palavras citadas são da ministra das Finanças numa recente sessão parlamentar.
Este argumento tem razão de ser, mas não deveria ficar circunscrito apenas para os apoios sociais. Os recursos públicos são escassos e deveria haver uma forma de aferir se apoios concedidos - sejam sociais ou em benefícios fiscais - cumprem esse objectivo.
O primeiro passo da redistribuição do rendimento deveria passar por uma política fiscal eficaz. Mas não é isso que acontece. A política fiscal não taxa mais aos mais ricos; sobretudo taxa mais aos assalariados e aos pensionistas mais ricos, porque o IRS é demasiado poroso à fuga de outros rendimentos. Tributa o património imobiliário, mas não o património mobiliário. E quando às empresas e capitais, taxa por igual empresas e capitais com baixo e elevado nível de rendimento. E isto sem discutirmos a definição da matéria colectável por onde - graças a deduções e benefícios - se esfuma muito do rendimento por tributar pelas empresas.
Vem isto a propósito da reforma de IRS e dos esforços do CDS para aliviar as famílias numerosas em sede de IRS. Nunca é dito a quem esta medida se dirige, nem se apresentam cálculos sobre o impacto dessa medida, apesar do OE 2015 ter - supostamente - integrado uma previsão de perda de receita fiscal.
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Rendas das famílias numerosas |
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Encargos com aquisição de habitação das famílias numerosas |
Mas veja-se o número de famílias numerosas (mais de 3 pessoas a cargo), quando se "ventila" essa informação tanto por escalões de renda como de encargos nas prestações para compara de habitação própria.
O que se verifica é que a maior parcela das famílias numerosas têm tanto rendas mais elevadas como maiores encargos com a compra de casa. Ou seja, parece que o universo das pessoas a privilegiar por esta medida da Reforma de IRS se centra na classe média. Conclusão que corrobora a informação extraída dos Censos de 2001 e 2011 de que as famílias mais numerosas em crescimento centram-se em agregados de empresários, quadros técnicos e actividades semelhantes e profissionais administrativos e de serviços.
Por outras palavras, o Governo - cedendo ao CDS - não está a efectuar a devida redistribuição dos escassos recursos públicos, mas apenas a aliviar uma classe média saturada de impostos e que, com esta maneira, poderá ser seduzida à última hora para umas eleições que parecem cada vez mais perdidas para a Maioria.
domingo, 2 de novembro de 2014
Duas defesas de Passos Coelho
1. Passos Coelho tem razões para se sentir exasperado com o seu campo político-ideológico. O seu governo faz cortes sem precedentes na despesa pública, ou seja, nos rendimentos directos e indirectos, reduz a chamada, por manipulação ideológica, rigidez do mercado de trabalho, ou seja, transfere direitos e rendimentos para os patrões (e correspondentes obrigações acrescidas para os trabalhadores) ou privatiza o que ainda há para privatizar com determinação. E ainda se queixam. Nós até percebemos a ideia dos mais estratégicos críticos de direita de Passos: trata-se de puxar as fronteiras do possível, com o argumento de que nada ainda foi feito, de que tudo está por fazer. Mas trata-se também de uma fuga à responsabilidade, já que a violência social, retratada, por exemplo, no último relatório da UNICEF, é parte indissociável do pacote. Passos, Portas, Albuquerque e companhia, realistas, sabem do que se trata na austeridade e na neoliberalização realmente existentes: alterar as regras para transferir rendimentos de baixo para cima, empobrecer amplos segmentos da população para enriquecer segmentos estreitos, a sua gente. Pelo contrário, muitos dos críticos de direita, os que têm sempre o “liberalismo” na ponta da língua, os que acusam este governo de só o ter de “pacotilha”, parecem achar que esta política pode ser um processo de expansão generalizada das liberdades, com cortes nas “gorduras, reformas indolores no “Estado”, outras tantas oportunidades para que todos possam viver felizes para sempre no meio da prosperidade generalizada. Patéticos e preguiçosos, de facto.
2. Passos Coelho é o europeísta mais consequente. Ao declarar que pretende continuar a desafiar a constituição em matéria de reposição de cortes, Passos revela um realista entendimento das implicações das regras europeias em matéria de austeridade. O mesmo se passa noutras esferas. O seu programa é o programa europeu, o programa inscrito nas análises e regras de Bruxelas e de Frankfurt. Neste processo confronta a oposição maioritária com as suas insuficiências e contradicções, com as suas fantasias europeias. Passos sabe que só pode ganhar se mostrar que não há alternativa, seja em matéria de austeridade, seja em matéria da natureza das reformas em curso. E sabem que mais? Pode não haver mesmo. Não me entendam mal: não há alternativa para quem não esteja disposto a fazer rupturas com o europeísmo realmente existente. De Valls a Hollande, a realidade está aí. Esta é a força da política do governo, a força do esvaziamento da soberania democrática. E acreditem: nunca houve força como esta.
sábado, 1 de novembro de 2014
Psicopatologia das organizações
Dito desta forma, este evolucionismo parece vago, especulativo, e até suspeitamente conotado com um darwinismo social que temos boas razões para descartar. Mas o certo é que há tempos, quando li um pequeno artigo sobre psicopatas organizacionais (corporate) e o papel que podem ter desempenhado na criação de condições propícias para a crise financeira, foi de Veblen e do seu evolucionismo que me lembrei.
Psicopatas, explica-nos o autor do artigo, “são pessoas que, talvez devido a fatores físicos relacionados com uma conectividade e química cerebral anormal, especialmente na área da amígdala e córtex frontal orbital/ventrolateral carecem de consciência, têm poucas emoções e exibem incapacidade de experimentar sentimentos, simpatia ou empatia por outras pessoas”. No interior das organizações, os psicopatas – os psicopatas organizacionais , psicopatas executivos, ou sociopatas organizacionais, como também são designados na literatura no campo de investigação em expansão a que pertence este artigo – embora possam aparentar suavidade, encanto e sofisticação e ser bem sucedidos, “ manipulam impiedosamente os outros, sem consciência, para realizar os seus propósitos e objetivos”, podendo a prazo tornar-se letais para as organizações.
O ponto importante deste artigo, e da investigação empírica em que se baseia, é que em organizações sujeitas a fortes pressões competitivas os mecanismos de seleção internos tendem a favorecer traços comportamentais característicos dos psicopatas ou sociopatas. O trabalho empírico dos psicólogos parece mostrar que é mais fácil encontrar um psicopata no topo de uma organização do que na sua base ou mesmo numa prisão de alta segurança.
De resto, lembro-me de ter lido noutro artigo que já não consigo localizar, que os critérios de seleção de dirigentes de topo usados por algumas empresas que se dedicam ao recrutamento de pessoal se assemelham de perto aos critérios de diagnóstico da psicopatia. A ser verdade, isto significaria que os encantadores psicopatas não só vivem bem e prosperam nos infernos organizacionais em que se estão a converter muitos locais de trabalho, como são ativamente procurados para as posições de topo.
Não sei se é a química e a conectividade cerebral o que determina o comportamento dos psicopatas, ou se se são as condições institucionais das organizações competitivas que modificam a química e a conectividade cerebral de algumas pessoas, transformando-as em psicopatas. O que me parece certo é que as condições prevalecentes nas organizações “competitivas”, trazem ao de cima o que de pior existe em todos nós, e transportam para o topo os que mais rapidamente se transformam em psicopatas ou sociopatas. O resultado, como hoje sabemos melhor que ontem, é fatal para as próprias organizações.
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