quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Portugal é a “economia do ano” para quem?

Portugal é a “economia do ano”, segundo a The Economist. O anúncio feito pela revista britânica na semana passada deu origem a várias reações na imprensa nacional. Apesar do tom leve adotado pela revista na divulgação deste ranking, a classificação foi recebida com entusiasmo pelo governo. Na rede social X/Twitter, o primeiro-ministro Luís Montenegro destacou o “reconhecimento internacional excepcional de Portugal” e procurou associá-lo ao trabalho do governo, sublinhando a importância de “seguir o rumo que nos trouxe até aqui nos últimos meses”.

No entanto, nem todos parecem partilhar o otimismo. Os dados do Eurobarómetro realizado a meio do ano mostram que o custo de vida continuava a ser referido como a segunda principal preocupação das pessoas. Parece haver um desfasamento entre os indicadores elogiados internacionalmente e a experiência de muitos dos que vivem e trabalham no país. Como acontece frequentemente quando se discutem rankings internacionais, é preciso perceber o que está efetivamente a ser medido e que conclusões é que podemos retirar a partir dos indicadores usados.

O que (não) mede o ranking?

O ranking da The Economist baseia-se em cinco indicadores: a inflação subjacente (i.e. inflação excluindo preços da energia e dos alimentos), a amplitude da inflação (a percentagem de bens e serviços cujos preços subiram mais do que 2% ao longo do ano), o PIB, o emprego e o desempenho do mercado bolsista. A revista recolhe estes dados para cada país e combina-os num índice sintético que permite ordenar as economias de acordo com o seu desempenho agregado ao longo do ano.

A escolha das variáveis incluídas e o peso que se atribui a cada uma destas são discutíveis e envolvem uma grande dose de subjetividade. Além disso, o método utilizado para chegar ao resultado final não é especificado no artigo, o que torna difícil interpretar as conclusões. Isso torna-se claro quando olhamos para os dados de 2025. No caso do PIB, Portugal registou um crescimento de 2,4% no terceiro trimestre do ano, o que, apesar de significativo, é inferior ao de Espanha (2,8%), da Suécia (2,5%), da Chéquia (2,8%), da Polónia (3,8%) ou da Irlanda (mesmo usando uma métrica mais adequada para evitar as distorções do PIB neste país). Em relação ao desempenho das ações, o crescimento de 20,9% registado na economia portuguesa fica bastante aquém de muitos dos países apresentados, como se vê no gráfico.

 

O caso da inflação, em que Portugal se destaca com um dos menores desvios face aos 2% definidos como objetivo pelo Banco Central Europeu, merece alguma atenção. O indicador utilizado (inflação subjacente) exclui do cálculo os preços dos alimentos e da energia. O que isto significa é que pode ser usado para perceber como evoluem os preços de setores menos voláteis, mas tem pouca utilidade como indicador do custo de vida. Embora a taxa de inflação dos alimentos em Portugal esteja em linha com a média europeia, há um fator que nos distingue: a fatia da despesa total que os portugueses dedicam à alimentação está entre as mais elevadas da União Europeia, apenas superada por países do leste europeu, o que sugere que Portugal é dos países em que a subida dos preços dos alimentos tem um impacto maior na carteira das pessoas.

Isto junta-se a um outro problema, discutido nesta página ao longo dos últimos meses (aqui ou aqui), que se prende com as limitações do indicador da inflação no que diz respeito aos custos da habitação. O indicador da inflação, que é usado para medir o poder de compra das pessoas, subestima de forma significativa o impacto dos preços das casas, uma vez que não inclui a despesa das famílias com prestações de empréstimos e atribui um peso muito pequeno às despesas com rendas.

Como as prestações e as rendas têm subido a um ritmo bastante superior ao da média dos preços na economia (medida pela inflação), há uma parte importante do custo de vida de muitas pessoas que está a ser subestimada pelos indicadores. Neste aspeto, a economia portuguesa destaca-se claramente, mas pela negativa. Portugal foi o país da União Europeia em que o fosso entre os rendimentos e os preços da habitação mais aumentou ao longo da última década, o que significa que foi o país onde o acesso à habitação mais se degradou.

 
Fonte: Eurostat

Ao elogiar o crescimento da economia portuguesa, a The Economist sublinha que “o turismo disparou [e] muitos estrangeiros ricos estão a mudar-se para o país para aproveitar as suas baixas taxas de imposto”. Mas a expansão do turismo não tem apenas efeitos positivos sobre o emprego e o PIB. O relatório Housing in the European Union, publicado recentemente pela Comissão Europeia, indica que “Portugal é o país da UE onde o turismo teve maior impacto sobre os preços das casas”, destacando o impacto das procuras externas e, em particular, a expansão do alojamento local, que desvia um número crescente de casas do mercado de arrendamento para o da procura turística. O que é lido como sinal de sucesso por uns contribui para agravar o custo de vida para outros.

O sul da Europa é o novo norte?

Um dado relevante deste ranking é que, desde a pandemia, a distinção de economia do ano tem sido atribuída a países do sul da Europa. Depois da Grécia ter ficado no topo do ranking em 2022 e 2023, Espanha subiu ao primeiro lugar em 2024 (num ano em que o saldo orçamental fazia parte dos indicadores). Em 2025 é a vez de Portugal, o que é apresentado pela revista como “mais boas notícias para o sul da Europa”. No fundo do ranking, além de algumas economias do leste europeu, encontramos várias das economias do norte da Europa (Finlândia, Áustria, Noruega ou Suécia).

Desde a pandemia, Espanha tem sido repetidamente elogiada pelo desempenho da sua economia nos últimos anos. A economia espanhola tem crescido a um ritmo muito superior à média europeia desde a pandemia, partilhando alguns traços comuns com a portuguesa, como o crescimento robusto do emprego, o aumento da imigração e o dinamismo de setores como o alojamento, a restauração e a construção. Numa linha semelhante à The Economist, o Financial Times considera que Espanha é a “economia europeia que mais se destaca”.

Portugal também tem sido bastante elogiado nos meios internacionais: há dois anos, Paul Krugman, economista norte-americano e prémio Nobel da Economia em 2008, classificou a experiência portuguesa como “uma espécie de milagre económico” e dizia que é “um pouco misterioso como é que as coisas correram tão bem” a Portugal depois da última crise financeira; dois anos antes, Adam Tooze, historiador económico da Universidade de Columbia, já tinha afirmado que “Portugal era o modelo para manobrar de forma muito inteligente dentro do sistema da UE” e que “ninguém o fez como os portugueses”.

A recuperação do crescimento no sul da Europa traduz uma mudança significativa na tendência da Zona Euro. Desde a entrada em vigor do euro no início do século, o debate tem-se centrado na divisão entre as economias do norte e do sul da Europa. As economias do norte (Alemanha, Áustria, Bélgica, Finlândia e Países Baixos), com uma indústria mais robusta e de maior valor acrescentado, contrastava com a experiência dos países do sul (Itália, Espanha, Portugal e Grécia). Os primeiros anos do euro foram marcados por um desequilíbrio estrutural entre os dois blocos: os países do norte acumularam excedentes comerciais enquanto os países do sul, prejudicados por uma moeda sobrevalorizada, acumularam défices e viram a sua dívida externa subir de forma acentuada.

 
Fonte: AMECO (Comissão Europeia)

Após o início da crise financeira, as medidas de austeridade impostas aos países do sul comprimiram a sua procura interna e acentuaram a vaga de falências e o aumento do desemprego, o que acabou por agravar a recessão e traduzir-se numa década de estagnação. No entanto, desde a pandemia, a tendência inverteu-se: as economias do sul estão a superar as do norte em termos de crescimento e até há quem fale numa “vingança do Mediterrâneo”.

Esta inversão foi desencadeada pela crise energética. A invasão russa da Ucrânia fez com que os preços do petróleo e do gás disparassem na Europa. A Alemanha e os países de leste foram particularmente expostos a este choque. Além da proximidade à Rússia e da dependência do gás importado, as características das economias também influenciaram a vulnerabilidade a este choque. O elevado custo da energia veio agravar um cenário que já era adverso para a indústria europeia, ameaçada pela concorrência da China e pela emergência de tarifas. Isso significa que os países do norte e alguns do leste europeu, com uma estrutura produtiva mais assente em setores como o automóvel ou a indústria pesada e maior peso da indústria intensiva em energia, foram mais afetados pelo choque do que os países do sul, mais assentes em serviços.

 
Fonte: Eurostat. Nota: A linha “Itália, Espanha, Portugal e Grécia” representa o valor agregado das quatro economias

No entanto, as características do crescimento atual dos países do sul também apontam as suas fragilidades. As reformas estruturais do período da austeridade tinham como principal objetivo a desvalorização interna (i.e. redução dos custos do trabalho) como forma de promover as exportações. Essa é uma estratégia limitada: por um lado, nem todos os países podem ter excedentes comerciais ao mesmo tempo, pelo que o modelo da Alemanha antes da pandemia não é replicável por todos; por outro lado, a competitividade das exportações alemãs tinha mais a ver com a qualidade do que produzem do que com os preços, algo que nenhum país consegue replicar quando opta pela desvalorização interna em vez do investimento e da aposta na inovação. Sem surpresa, o crescimento das exportações dos países do sul esteve associado a bens menos sofisticados e de serviços de baixo valor acrescentado, como o turismo.

É certo que, na última década, Portugal registou um aumento do peso das exportações de bens de alta-tecnologia, que incluem equipamentos eletrónicos e de telecomunicações, produtos farmacêuticos e outros equipamentos com elevado conteúdo tecnológico: representavam 4,5% das exportações totais em 2015 e passaram para 7,4% em 2024. Observa-se uma tendência semelhante no caso dos serviços, que à primeira vista parece positiva. Contudo, se olharmos para a evolução da economia mundial, vemos que o peso das exportações de bens de alta-tecnologia aumentou consideravelmente na última década de uma forma generalizada. Se olharmos para os dados do Banco Mundial, as exportações de bens de alta-tecnologia a nível mundial representavam 20% do total em 2015 e subiram para valores próximos dos 23% em 2023; na União Europeia, passaram de 17% para 19% neste período.

A tendência de maior incorporação de tecnologia na indústria e nos serviços é comum à generalidade das economias. Isto não significa que não haja melhorias na economia portuguesa, mas sugere que estamos longe de ser um “milagre económico” neste período. Em sentido contrário, o que aumentou a um ritmo assinalável na economia portuguesa foi o peso do turismo. O turismo representava 15,7% das exportações em 2015 e, uma década depois, atingiu os 20,8% - ou seja, em 2024, foi responsável por um quinto das exportações totais do país.

O problema que se coloca é o de saber até que medida o desenvolvimento dos diferentes setores pode entrar em colisão. A expansão do turismo tem alimentado a subida acentuada dos preços das casas em Portugal, o que aumenta não apenas o custo de vida das pessoas, mas também os custos para os outros setores, que enfrentam rendas mais caras e maior dificuldade em atrair trabalhadores para as áreas onde os preços mais crescem. Na área metropolitana de Lisboa, a especialização em atividades turísticas ao longo da última década ocorreu em detrimento de setores mais inovadores: a indústria e os serviços de informação e comunicação perderam importância relativa e houve uma queda da produtividade por trabalhador, como conclui um estudo publicado pela Causa Pública.

Além disso, esta visão ignora a distribuição dos ganhos do crescimento. O modelo de crescimento dos países do sul da Europa gera impactos desiguais. A subida dos preços das casas beneficia essencialmente quem tem património acumulado e consegue extrair rendas: proprietários que detêm e exploram múltiplas casas (tanto para arrendamento, como para alojamento local), plataformas digitais e fundos de investimento. Pelo contrário, quem arrenda e quem vive em zonas mais pressionadas pela gentrificação é prejudicado pela subida das rendas e dos preços dos serviços, que representa um agravamento significativo do custo de vida.

A economia dos próximos anos

Não é surpreendente que a distinção de “economia do ano” tenha sido recebida com entusiasmo pelo governo, sobretudo tendo surgido a poucos dias da greve geral marcada pelos sindicatos. Apesar dos sinais de contestação, o governo parece confortável com a estratégia e o apoio explícito ou implícito de uma maioria dos deputados no parlamento. Sobre os planos para a economia dos próximos anos, o ministro da Economia e Coesão Territorial, Manuel Castro Almeida, explicou recentemente que o objetivo do governo passa por colocar Portugal entre os dez destinos turísticos mundiais mais procurados (atualmente, o país ocupa um honroso 12º lugar).

Embora não se possa resumir o tecido produtivo da economia portuguesa ao turismo, não deixa de ser verdade que a expansão do turismo e o desempenho dos serviços associados (como o alojamento e a restauração) são responsáveis por boa parte do crescimento dos últimos anos. O facto dos preços do turismo em Portugal terem subido bastante acima da média dos restantes países do mediterrâneo desde a pandemia indica que o setor pode ter dificuldade em manter o ritmo de crescimento.

Depois de uma fase em que o crescimento assentou no endividamento externo, a economia portuguesa passou a depender de atividades ligadas ao turismo e ao mercado imobiliário. Ambos estão fortemente dependentes da procura internacional e tornam a economia portuguesa vulnerável às suas oscilações, como a pandemia tornou claro. Além disso, este modelo gera impactos desiguais: beneficia principalmente quem acumula património que se transformou num mecanismo de extração de rendas, enquanto agrava o custo de vida para quem arrenda e para quem vive nas zonas mais afetadas pela gentrificação.

O problema de fundo está em confundir crescimento com desenvolvimento. A “economia do ano” não é igual para todos. Este tipo de rankings internacionais diz-nos muito pouco sobre a forma como o desempenho da economia se traduz nas condições de vida de quem vive e trabalha no país. É pouco útil falar em crescimento e criação de riqueza sem discutir a forma como esta é distribuída.

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