Ao longo de 2022, face à enorme perda de poder de compra, o governo deu três justificações para não aumentar salários: a ideia de que a inflação era temporária, o risco de uma espiral inflacionista e a necessidade de "contas certas". Nenhuma sobrevive ao confronto com os factos.
A ideia de que a inflação seria meramente temporária foi a primeira a ser lançada. No entanto, esta ideia durou pouco tempo. A inflação não abrandou, sobretudo em bens essenciais como a energia e os produtos alimentares. Apesar disso, o governo recusou o aumento extraordinário dos salários da função pública, que servem de referencial para a negociação no setor privado, tendo contado com o apoio da IL no parlamento.
Só que este "risco" é manifestamente exagerado. Por um lado, a inflação não teve origem num excesso de procura alimentado pelos crescimento dos salários, mas sim em problemas no lado da oferta. Um dos relatórios mais recentes do FMI reconhece que "os choques subjacentes [à inflação] estão a vir de fora do mercado de trabalho" e que a experiência histórica não nos dá motivos para pensar que uma espiral inflacionista está ao virar da esquina.
O segundo argumento do governo foi o do suposto risco de uma "espiral inflacionista" alimentada pelo crescimento salarial. António Costa disse várias vezes que o aumento dos rendimentos seria “comido rapidamente” pela consequente subida de preços.
Por outro lado, os aumentos salariais não têm de se traduzir necessariamente em aumentos dos preços na mesma proporção: pelo menos uma parte pode ser acomodada pela diminuição das margens de lucro e/ou pelo crescimento da produtividade registado este ano. Além disso, a economia portuguesa está longe do pleno emprego e tem capacidade instalada por utilizar. Ou seja, um aumento dos salários que dinamize o consumo interno pode ser acompanhado pelo aumento da produção sem pressionar necessariamente os preços.
O terceiro argumento a que o governo se tem agarrado é o de importância das "contas certas". Portugal é um dos países que mais se tem focado na redução da dívida pública desde o início da pandemia. No entanto, é difícil acreditar que uma redução do rácio da dívida de 130% do PIB para 120%/110% tenha um grande impacto na forma como os mercados avaliam a sustentabilidade da dívida portuguesa. De resto, ao longo do ano, os juros da dívida já dispararam, visto que dependem muito menos das opções orçamentais do governo e muito mais das decisões tomadas pelo Banco Central Europeu. Como o BCE deixou de intervir no mercado para assegurar juros baixos, as condições inverteram-se.
Nenhum destes argumentos justifica o corte real nos salários (e pensões). Na verdade, a quebra do poder de compra penaliza o consumo interno, o que prejudica a atividade económica e o emprego. O risco de uma recessão é o que devia preocupar o governo.
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