domingo, 4 de dezembro de 2022

Promiscuidades 2


No post anterior sobre este tema, pediu-se ao leitor que se enfiasse na pele de um banqueiro ou de um accionista de uma seguradora, sentado diante dos 20 mil milhões de euros de contribuições sociais que anualmente entram nas contas da Segurança Social. E que imaginasse um plano para que parte dessa maquia ficasse ao seu alcance.

Viu-se que um dos passos do plano seria o de apoiar na comunicação social a multiplicação de opiniões distintas, mas todas consensuais num ponto: a Segurança Social gera pensões baixas e, para o compensar, é preciso um pilar complementar - com o apoio do Estado (através de benefícios fiscais) -, financiado por parte das contribuições sociais. Um pilar gerido, não em exclusivo pela Segurança Social pública, mas criado pelas empresas e aberto ao sector financeiro privado. No fundo, uma privatização da Segurança Social.

Na verdade, está é uma ideia velha do Banco Mundial, que fez o seu percurso internacional e que até já se encontra em regressão. Até já foi tentada em Portugal de diversas formas, nomeadamente através da tentativa desde os anos 90 de criar o famoso plafonamento, sempre abandonado por gerar elevados défices à Segurança Social. No fundo, esses assaltos ainda não foram capazes de quebrar a coluna vertebral da Segurança Social pública: o compromisso intergeracional e não individualista do sistema de repartição, que faz com que quem esteja a trabalhar, pague as pensões de quem se tenha aposentado. Esse compromisso impede desvios de contribuições sociais para esquemas individuais - e nomeadamente de quem mais recebe - para que não haja pensões ainda mais baixas, sobretudo para quem menos tem.

Mas se calhar estamos a assistir a um novo ataque.

Surgem cada vez mais artigos na comunicação social, assinados por inúmeros "especialistas", todos eles entrosados numa visão privatizada da Segurança Social, que elogiam esquemas complementares de pensões.

Ora veja.
O ex-ministro das Finanças de José Sócrates, Fernando Teixeira dos Santos, disse - curiosamente na conferência anual da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões - que os portugueses já entenderam que a sua pensão não vai ser igual ao que ganharam enquanto trabalhadores, e que, por isso, se deveria criar benefícios fiscais [com o dinheiro de todos] para incentivar as empresas [de alguns, que coincidência!] a criar planos de poupança para complementar a reforma dos seus trabalhadores. O que ele não diz é que esse seria um primeiro passo. Num segundo momento, o patronato viria alegar que, já que contribui para as pensões complementares dos seus trabalhadores, se deveria reduzir a "carga fiscal" que suporta com a Taxa Social Única (TSU). Assim, concretizaria um dos grandes sonhos do patronato nacional. Só que, a concretizar-se, reduzir-se-iam - ainda mais - os recursos para pagar a pensão do sistema público, obrigando a que se reduzissem ainda mais as suas pensões.

Não é, pois, de estranhar que, neste coro, surjam já as companhias de seguros. José Galamba de Oliveira, cabeça da própria Associação Portuguesa de Seguradores (APS), convocou de propósito os jornalistas para fazer lobby. E conseguiu. Surgiram notícias logo a dizer que...
...“é urgente desenvolver uma maior consciencialização na população portuguesa sobre a necessidade e importância de se poupar para a reforma” [Claro!]. Citou "dados preocupantes" veiculados pela Comissão Europeia [Claro!] que indicam que a taxa de substituição à idade da reforma (regime público) era, em 2019, de 74,0% será de 54,5% em 2040 e 43,0% em 2060. Por isso, os regimes complementares promovidos por entidades patronais [Ora cá estão eles!], identificadas como Pilar II, e a poupança individual, Pilar III, são cada vez mais vistos como a única forma de garantir a sustentabilidade e a adequação das pensões de reforma individuais. [Claro!]
Mais: Como consultor científico de grandes seguradoras na área do sistema de pensões, o economista Jorge Bravo - que integra o observatório da Segurança Social e Demografia da Sedes, associação presentemente de cunho (neo)liberal; que foi, no Governo Passos Coelho, membro externo da Comissão Interministerial da Reforma do Sistema da Segurança Social entre 2014 e 2015; que foi um dos coordenadores do Conselho Nacional Estratégico do PSD no mandato de Rui Rio e é apoiante elogioso de Luís Montenegro - já veio tecer várias considerações.

Que é realista esperar que as pensões representarão uma quebra significativa dos rendimento dos trabalhadores [geremos o pânico!] e que por isso...

... nos países onde houve reformas substantivas, caminhou-se no sentido de diversificar as fontes de financiamento [fontes de desvio de fundos públicos] da proteção na velhice. Ou seja, não ter apenas o pilar público, que é fundamental, mas complementá-lo com os pilares ou da empresa [Parece um eco...sem nunca se dizer que as pensões públicas iriam reduzir-se ainda mais] ou o pilar individual que, em conjunto, formarão um nível de rendimento adequado na velhice [Para quem? Com que garantias?], muito superior àquele que é perspetivado apenas dependendo do sistema público, que tem limitações, tem riscos substanciais, enfrenta uma demografia adversa. [E não há riscos nos esquemas privados? Ou estarão garantidos pelo Estado em caso de insolvência?] (...) Não temos de impor sistemas complementares obrigatórios [Claro, assim escapa-se aos efeitos devastadores do plafonamento...]. Mas temos de os dinamizar [Claro! Com o dinheiro de todos em benefício das seguradoras de alguns], porque é a única forma de atenuar a redução da taxa de substituição. Falta aqui um pouco de vontade política para dinamizar o pilar complementar [Por que será?] e isso está na Lei de Bases da Segurança Social desde 2007. [Parece querer dizer: "Não há mal algum..."]

Na verdade, não teria de ser assim. Era possível manter um sistema 100% de repartição - como o actual - e conceder-lhe apenas mais meios financeiros. Ou ter políticas que promovessem a valorização salarial e a segurança no emprego. Mas não: por estranha coincidência, quem defendeu todas as medidas tendentes à desvalorização salarial - e que se encontram vigentes no actual Código do Trabalho - surge a defender formas complementares - e privadas - de protecção social. Parece haver um interesse consistente na defesa das políticas que fragilizam a Segurança Social pública, como forma de incentivar a privatização da protecção na velhice. No fundo, o objectivo é apenas... mais dinheiro!

Mas que ideias são estas que parecem estar a fazer o seu curso, sabe-se lá se não mesmo na comissão oficial nomeada pelo Governo? Jorge Braco explica:
Há duas modalidades: ou um pilar complementar obrigatório ou deixá-lo como voluntário. Internacionalmente, temos experiências muito engraçadas [engraçadas?!] para obstar esta ideia de que vamos forçar os trabalhadores a poupar para a reforma [claro, é necessário que os trabalhadores cheguem lá sem perceber ao que vão...], porque isso gera algumas reticências até do ponto de vista político [Imagina-se por quê...]. Por exemplo, o Reino Unido, há uma década, iniciou um mecanismo que se chama de inscrição automática com a seguinte cláusula: quando é feito um contrato de trabalho, os trabalhadores são registados em planos de proteção social para a reforma, mas têm a possibilidade de sair [Muito subtil...]. E isto visou essencialmente atacar o problema da inércia [Claro, passou a ser quase uma retenção na fonte obrigatória...!]. Todos os estudos dizem que os portugueses interiorizaram a ideia de que é importante poupar para a reforma, mas depois falta-lhes dar o passo seguinte [Talvez por falta de salários mais elevados...] e o passo seguinte implica ou fazê-lo de forma individual ou então através destes sistemas coletivos [Claro! Assim passa mais desapercebidamente...]. Mas não existe dinâmica a esse nível.
Por que razão será? Talvez porque o patronato não quer descontar mais, sem que seja compensado pelo Estado ou pela descida da TSU. Ora, como descer a TSU é sempre questionável - recorde-se o que aconteceu em Setembro de 2012, com as maciças manifestações de rua - tudo indica que será por benefícios fiscais que se pretende que o Governo faça o ajuste pretendido pelo patronato. Jorge Bravo explica como:
"O principal incentivo é fiscal em sede IRC. (...) Há países em que as entidades empregadoras se podem constituir como sponsors, ou seja, podem acompanhar, fazer o matching das contribuições feitas pelos trabalhadores [Ou seja, as contribuições patronais para esses esquemas passam a ser pagas por abates fiscais em IRC!], e isso até pode ser uma política de retenção de colaboradores [trabalhadores, é o termo correcto que vem no Código do Trabalho] nas empresas. As empresas estão com dificuldades em reter colaboradores [trabalhadores que recebem baixos salários] e os benefícios extra salariais são muito importantes [claro, seria o Estado a pagar os tais "benefícios extra salariais", com a vantagem de não serem... salários a pagar pela empresa]."
Por coincidência ou não, o ministro das Finanças, Fernando Medina, já veio a público recentemente anunciar que "o Governo apresentará em breve um conjunto de medidas fiscais mais concretas que apoiarão o desenvolvimento do mercado de capitais e da poupança de longo prazo em Portugal".

O que estará a acontecer que não saibamos?

7 comentários:

Anónimo disse...

A sustentabilidade do sistema de segurança social depende no essencial dos salários que são pagos aos que estão no ativo portanto todos os que pretendem e têm pretendido a redução generalizada dos salários não são sérios quando falam sobre a sustentabilidade do sistema, este país está transformado numa fraude gigantesca onde ninguém tem a coragem de dizer a verdade e a grande maioria das vezes a verdade é tão simples de ser dita.

Jose disse...

Desde quando, ou a partir de quando, é expectável que os descontos que cada um faz para a SS durante a sua carreira contributiva sejam bastantes para sustentar as prestações que obterá na reforma, se com base na média dos últimos (digamos dez anos) salários?

Ainda que lhe acresçam a capitalização capitalista a taxas que não desesperem os endividados...

João Ramos de Almeida disse...

Caro José,

A partir do momento que o número de trabalhadores seja superior ao número de aposentados e que os seus salários sejam superiores aos salários médios recebidos por quem se está a aposentar.

Agora, defender políticas que, ao longo de décadas, visaram a insegurança no emprego, a precariedade contratual, a desarticulação do papel dos sindicatos, a destruição da negociação colectiva, a desvalorização salarial como factor de competitividade no quadro de uma moeda única (desenhada em proveito dos países mais ricos) é que não parece ser uma solução para a garantia de pensões de quem trabalha.

Mas é interessante que quem defenda essas políticas, seja quem aposte - sempre! - no fim da segurança social pública. E o seu contrário também seja verdadeiro!

Jose disse...

Caro João,

Defender políticas sem verificar factos é tão ridículo como verificar factos e construir políticas que os ignorem.
A segurança no emprego significa:
- a segurança na economia - facto não verificado.
- a estável relação prestação/ requisito do trabalho a prestar/ adequação salarial - facto de mera probabilidade.
A precaridade contratual é tão só o resultado das seguranças legalmente impostas; não há gestor que seja tão estúpido que não entenda a vantagem de promover relações de confiança!
A desarticulação do papel dos sindicatos e a destruição da negociação colectiva, é em larga medida o resultado das políticas de segurança do emprego:
- promovendo a manutenção de empresas ineficientes (+ de 25% das empresas portuguesas têm capitais próprios negativos!!!)
- desmobilizando lutas que em boa medida significariam desemprego ou mudança de actividade

Quanto à moeda, esta só releva quando forçada a ser instrumento de intervenção no mercado de livre concorrência.

João Ramos de Almeida disse...

Caro José,
As suas ideias são um cardápio do argumentário mais troglodita que existe ao cimo da Terra, e ainda por cima com aquela vantagem de parecer neutramente técnico.

Na sua ideia, o mundo era perfeito e a justiça reinava na Terra capitalista até que surgiram os sindicatos e uns esquerdistas que começaram a criar obstáculos e rigidezes - chamados Direitos Humanos - e acabaram por estragar tudo.

Os “gestores” nacionais queriam tanto a vantagem das “relações de confiança” que exploravam a vida dos trabalhadores até ao tutano, a ponto de terem de dormir nas fábricas ao fim de infindáveis jornadas de trabalho. Hoje, os tais empresários - deixados à rédea solta por sucessivos desmantelamentos dessas rigidez - chamados Direitos - vêm contribuindo alegremente para as piores práticas laborais, para o maior provincianismo nas relações laborais do “posso, quero e mando”; para os horários sem fim que violam os princípios mais gerais de um saudável equilíbrio de vida humana e familiar; para os mais baixos salariais que, veja-se bem, até a Direita - que andou a pugnar há 10 anos por uma descida salarial como factor de competitividade (tal como o vem fazendo há décadas) - já considera que são tão baixos e tão demasiadomente baixos que - ai Jesus - que têm de subir não vá tudo isto descambar.

Caro José, visite as fabriquetas do norte geladas no inverno e infernais no verão, as estufas do sul, os amontados de famílias, os trabalhadores a viver em quartos, as madrugada dos imigrantes nas limpezas, e depois venha elogiar a insegurança no emprego como factor de civilização. É isso onde andamos enterrados e de onde não conseguimos tirar os pés.

E é isso que nos vai enterrar como país caso as pessoas não acordem para se defender.

Jose disse...

Caro João

Sugiro-lhe que não se meta a adivinhar o que eu sei e o que eu penso e se limite a considerar o que eu digo.

Todo o rol de lamentações sobre o passado não constrói o futuro.
Temos um presente com um exaustivo quadro legal, salário mínimo, subsídio de desemprego, RSI e mais não sei quantos modos de assistência social.
Junte-lhe o contra-senso de à sanha de capturar lucros se adicionar a tolerância de uma economia marginal, onde toda a ilegalidade é prática quotidiana e onde sempre vão buscar a figuração do que seja uma organização capitalista.

E, por muito que lhe custe, não há bons salários onde não haja capital em abundância, seguro de lhe ser respeitado o direto a manter-se remunerado.

João Ramos de Almeida disse...

Caro José,
Não me meto a adivinhar o que pensa: limito-me a seguir o tom com que escolhe defender as suas ideias. E as suas ideias - insisto - são recorrentemente perigosas porque defendem - na prática - uma maior amplitude das desigualdades e, por isso, da hegemonia de uma maior exploração.

Basta olhar para o seu 2º parágrafo para perceber qual seria a realidade que lhe está na alma. Para si, um quadro legal que preveja a existência de um SMN, subsídio de desemprego, RSI é um quadro legal - péssimo! - que valoriza formas de “assistência social”. Na sua ideia, um mínimo de subsistência obrigatório para quem trabalha, uma rede de protecção no desemprego para quem trabalha, um mínimo de rendimento na situação de pobreza não são regras mínimas - insisto, MÍNIMAS - que qualquer sociedade deve ter para dar UM POUCO das mesmas oportunidades a todos. Para si, são escolhos, obstáculos ao funcionamento da sociedade que, sim, impedem a prosperidade. Porque, para si - parece - a prosperidade dever-se-ia fazer da forja de pessoas enrijadas na escravidão.

Na sua visão, não se vê que essas salvaguardas - repito MÍNIMAS! - foram erguidas posteriormente à selva que reinava e fruto de prolongadas lutas de milhares de trabalhadores para terem um MÍNIMO de dignidade na sua existência. Para o José - e aí não está sozinho - a perfeição implícita está nesse regresso à Selva. E o que me espanta é que uma pessoa educada não veja a dimensão histórica, social e, no MÍNIMO - humana dessas salvaguardas.

É sua visão rasa da História que não vê que foi o facto de o capital ter estado "em abundância" que fez a Selva reinar em exploração, em concentração da propriedade, em desigualdade. E que foi o facto de se ter imposto baias MÍNIMAS que deu ao capitalismo a sua actual - e apenas para uma certa "bolha" de umas certas partes da sociedade ocidental - face humana. Foram os trabalhadores que deram ao capitalismo - com o seu sangue histórico e a contragosto da elite dominante - a face humana que ele actualmente acha que já tem. E que acha - como o José - já ser em demasia! Mas o José - como tantos outros - acha que nasceu com ele. Não foi. Está equivocado ou mal intencionado.

E, depois, regresso à Selva apenas dará vida a quem defende - melhor, a quem é dono - do “capital em abundância”.

E já nem falo da teoria do valor e da sua criação. Porque aí talvez chegaríamos à conclusão de que a Selva capitalista foi apenas a legitimação de um roubo generalizado.