segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

O regresso da política industrial: como, para quê e para quem?

“A nova política industrial dos nossos concorrentes exige uma resposta estrutural”. Foi assim que a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, justificou a aparente mudança de prioridades da União Europeia. Face às medidas aprovadas nos EUA para apoiar determinadas indústrias (em especial na área das energias renováveis e dos semicondutores) e promover o consumo de produtos produzidos em solo norte-americano, a Comissão Europeia diz que vai “ajustar as regras para facilitar os investimentos públicos”. O governo alemão anunciou mesmo que 2023 será o “ano da política industrial europeia”.

O raciocínio subjacente a estes planos é o contrário daquele pelo qual a UE sempre se guiou. O processo de integração europeia tinha por base a ideia de que o desenvolvimento dos países só era possível se adotassem medidas de promoção da iniciativa privada e da concorrência nos mercados, a privatização de empresas públicas e a abertura ao comércio com o exterior. Os mercados seriam o melhor veículo para alocar os recursos disponíveis na economia e produzir os melhores resultados.

Quando olhamos para a história real do desenvolvimento dos países, o cenário é bastante diferente: como é descrito no livro 'Bad Samaritans’, escrito pelo economista sul-coreano Ha-Joon Chang (e resumido aqui), todas as experiências bem-sucedidas de industrialização implicaram formas de protecionismo e intervenção estatal. O Estado foi sempre um ator decisivo para o desenvolvimento da capacidade produtiva de um país, através de subsídios às exportações, benefícios fiscais, tarifas aduaneiras ou participação direta na produção.

À primeira vista, o anúncio da Comissão parece uma rutura com a ortodoxia económica e o fundamentalismo dos mercados que dominou as políticas europeias nas últimas décadas. No entanto, para avaliar a nova orientação da política industrial, é preciso responder a um conjunto de questões decisivas: quais são os objetivos que a motivam, que tipo de instrumentos está em cima da mesa e que grupos sairão beneficiados.


1. Política industrial para quê?

As motivações da Comissão Europeia são claras: responder ao avolumar de tensões e de obstáculos ao comércio com outros blocos, como os EUA, a China ou a Rússia. Depois da disrupção causada pela pandemia, o comércio internacional foi afetado pela invasão russa da Ucrânia e pelas sanções aprovadas em resposta. Os governos estão a sentir os problemas da dependência de importações de bens essenciais, como a energia, a comida ou componentes indispensáveis para a produção industrial. Nos EUA, a administração de Biden aprovou um conjunto de medidas - o Inflation Reduction Act - para apoiar o desenvolvimento de indústrias estratégicas através de subsídios e benefícios fiscais.

A motivação europeia é, por isso, a de não se atrasar na “corrida aos subsídios” para o setor privado. E isso levanta problemas de fundo, uma vez que dificilmente a nova estratégia terá como base o que realmente devia ter: uma política de promoção das indústrias nacionais especialmente dirigida à periferia do sul da Europa - Portugal, Espanha, Grécia, Itália -, que contribuísse não apenas para garantir a oferta de matérias-primas estratégicas mas também para um desenvolvimento mais equilibrado dentro da União.

A estratégia industrial podia servir para cumprir dois objetivos: (1) contrariar os desequilíbrios macroeconómicos entre países com bases industriais fortes, que crescem com base nas exportações, e países mais frágeis, que se vêm forçados ao endividamento externo para compensar a fraca produção doméstica, e (2) promover a autonomia energética, com investimentos que contribuam para aumentar a produção de energias renováveis e reduzir as necessidades de consumo (o investimento numa rede ferroviária abrangente substitui a utilização de carros movidos a combustíveis fósseis, da mesma forma que a melhoria da eficiência energética dos edifícios reduz a necessidade de aquecer as casas no Inverno e arrefecê-las no Verão).

Estes objetivos não são incompatíveis com o desenvolvimento industrial. Na verdade, a subida na escala de valor - isto é, a produção de produtos mais sofisticados, com maior incorporação de conhecimento e maior valor acrescentado - pode ser feita ao mesmo tempo que se reduzem as emissões de carbono e se utilizam tecnologias de produção mais sustentáveis. É algo que se deve aplicar à própria produção de semicondutores, que ainda é bem menos verde do que se diz. No entanto, tendo em conta o ponto de partida da Comissão Europeia, dificilmente teremos uma conjugação destes critérios.


2. Política industrial com que instrumentos?

Apesar do discurso sobre a importância do Estado, a verdade é que as alterações anunciadas até agora se prendem com os limites impostos aos fundos que o Estado pode atribuir a cada empresa, em particular no setor da energia e no da produção de semicondutores. Estes limites são definidos pelas regras de concorrência da UE, desenhadas para restringir a intervenção dos Estados na atividade económica e deixar o desenvolvimento industrial entregue aos mercados. O fracasso desta estratégia explica, em boa medida, a enorme dependência (energética e não só) que os países europeus têm face a outras regiões. No entanto, os responsáveis europeus não pretendem abdicar dos princípios essenciais do mercado único.

De um ponto de vista progressista, não basta permitir que os Estados canalizem mais fundos para as empresas. É preciso que o dinheiro público seja utilizado para coisas que sejam socialmente úteis – como a descarbonização da economia ou a substituição de importações, e não a distribuição de dividendos aos acionistas. É preciso que as opções de investimento ajudem a promover a qualidade do emprego e dos salários – o que implica ter os e as trabalhadoras envolvidas no processo de planeamento. E é preciso garantir que o investimento do Estado tem um retorno para os cofres públicos – o que implica que o Estado detenha uma parte ou a totalidade da propriedade daquilo em que investe, para socializar não apenas os riscos mas também os benefícios. Tendo em conta a falta de discussão sobre estes critérios, temos muito poucos motivos para crer que farão parte da estratégia europeia.


3. Política industrial para quem?

Além do potencial para reforçar a capacidade de produção em determinados setores de atividade, a política industrial também tem uma natureza distributiva que não pode ser esquecida. Os critérios definidos e as medidas postas em prática são decisivos para articular o desenvolvimento industrial com o combate às desigualdades, através de uma distribuição justa dos rendimentos gerados. Caso contrário, arriscamo-nos apenas a entregar dinheiro a algumas grandes empresas privadas para reforçar o seu poder de mercado e encher os bolsos de alguns acionistas, como deverá acontecer com a Tesla ou a Ford no caso dos EUA e já está a ser exigido pela Volkswagen por cá.

Numa edição recente em que aborda as novas discussões sobre a política industrial, o The Economist alerta para os riscos de um Estado "mandão". No entanto, depois de décadas em que a maioria dos países reduziu substancialmente o peso do Estado na economia e desmantelou boa parte das suas estruturas de regulação e planeamento da economia, o principal risco não é o de um Estado que seja demasiado forte. É o de que seja demasiado fraco face a alguns interesses privados.
 

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