sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Equívocos básicos das autoproclamadas criptomoedas (1)


Grande parte das pessoas que me ouve dizer que ando a estudar a natureza da moeda e a história das teorias monetárias, fica surpreendida por eu não dar qualquer interesse ao estudo das autoproclamadas criptomoedas. A explicação é fácil: não são moedas. O José Gusmão já explicou muito do essencial aqui.

No entanto, conseguiram obter algum impacto e os seus defensores conseguiram promover (ou aproveitar) com êxito alguns equívocos correntes sobre a propria natureza e história da moeda. Assim, aquilo que não tem utilidade num estudo cuidado sobre a moeda, pode ter algum interesse num local de divulgação de Economia Política.

Vou então, focar-me, neste e nalguns textos futuros, em alguns equívocos básicos e comuns dos defensores das tais autoproclamadas criptomoedas, que penso serem comuns a muita gente e que contribuem para que muita dessa gente se deixe enganar. Com a proliferação de criptos com diferentes características, é óbvio que nem todos os equívocos que apresentarei se aplicam a todas as criptos. Aplicam-se, pelo menos, a argumentos em sua defesa que se vêm amiúde, por exemplo, nas redes sociais. Pelo menos, por este ponto de vista, as criptos podem ter uma função pedagógica para explicar o que NÃO É uma moeda.

O primeiro equívoco básico de que quero falar é um dos mais óbvios, mas que também torna as criptos mais chamativas: o de que uma cripto, como a bitcoin, é mais adequada a funcionar como moeda porque tem a vantagem de manter (ou poder manter) o seu valor estável em resultado da limitação máxima à sua quantidade (que no caso da bitcoin é de 21 milhões). Isto em comparação com as moedas fiduciárias que perdem o seu valor ao longo do tempo, levando a perdas de riqueza dos seus detentores. O problema, segundo eles, está na excessiva emissão de moeda por parte dos Bancos Centrais. Conclui-se que a bitcoin cumpre melhor a função de reserva de valor, que é geralmente tida como uma das 3 funções de qualquer moeda.

Para defenderem esta visão apresentam dados como estes para mostrar a perda de valor da moeda fiduciária ao longo dos anos. A mensagem é clara:


O problema é que tudo isto assenta num equívoco profundo sobre a natureza e toda a história da moeda.

Na verdade, e fácil entender que uma limitação fixa à quantidade de moeda em circulação, mais do que levar a uma estabilização do seu valor, implica antes um cenário de profunda deflação. Basta pensarmos que com o eventual crescimento da economia é normal haver um crescimento da procura de moeda. Até Milton Friedman que considerava que a emissão monetária tinha de ser controlada advogava uma regra para o crescimento constante da massa monetária e nunca a sua limitação quantitativa.

Mas com o estudo sobre a história e a ontologia da moeda percebe-se que até a ideia em si vai contra a própria natureza da moeda. Uma moeda que cresce em valor ao longo do tempo não pode funcionar como moeda porque isso destrói o próprio incentivo à circulação. Numa situação de deflação todos os agentes económicos têm interesse em entesourar, levando à depressão económica. Este facto é conhecido há séculos e é particularmente importante desde que Keynes advertiu para o problema da preferência pela liquidez.

É isto que explica aquilo que qualquer economista percebe: que uma deflação não é uma mera imagem de espelho da inflação. A deflação, mesmo que pequena, é sinónimo de desemprego, destruição de valor em larga escala, sofrimento desnecessário.

É, portanto, um princípio geral da história monetária que uma moeda deve perder valor de forma progressiva ao longo do tempo. Por exemplo, o grande historiador económico italiano Carlo M Cipolla afirmou num artigo de 1963:
No longo prazo, cada unidade monetária está sujeita a um processo de depreciação progressiva. A extensão desta depreciação varia muito de moeda para moeda e de era para era, mas o fenómeno em si é universal. A sua aparência infalível em todos os momentos e lugares deu-lhe o carácter inelutável de uma lei física. De facto, os historiadores e economistas referem-se frequentemente à progressiva depreciação da moeda como uma 'lei' universal.
Em toda a história, como mostra Cipolla, numa situação de deflação, os Estados ou as pessoas foram obrigadas a recorrer a alternativas que permitissem amenizar ou reverter a situação, como o recurso a substitutos monetários, novos modos de pagamento ou a desvalorização voluntária da moeda. Era o que teria de acontecer se, num cenário hipotético, se adotasse uma moeda com esta característica tão elogiada na bitcoin. A deflação programada não é sustentável.

Nada disto é difícil de entender, mas, no entanto, o argumento da estabilidade do valor é repetido até à exaustão entre os defensores das tais autoproclamadas criptomoedas, sem entenderem que desta forma elas não podem funcionar, de forma nenhuma, como moedas.

Perante isto, talvez a única explicação para o quanto estas cresceram nos últimos anos apenas possa ser compreendida através de um outro texto muito conhecido de Cipolla que aconselho todos a ler.

1 comentário:

Paulo Cunha disse...

Esse texto da estupidez do cipola é ouro.
Obrigado, Tiago Santos.
Fico a espera dos outros textos.
Eu creio que as pessoas defendem as cripromoedas porque há dinheiro a ganhar.