Os defensores das "criptomoedas" acreditam na história da carochinha que se encontra em todos os manuais de introdução à economia sobre a origem da moeda.
Nessa narrativa, a moeda surge a partir da propensão dos seres humanos para a troca direta. Imagina-se um estado inicial onde não existe moeda, mas, existe essa propensão para evidenciar que a troca direta implica uma série de dificuldades (a principal é necessidade de dupla coincidência de interesses) que a tornam ineficiente e, portanto, de forma espontânea, os indivíduos começam a selecionar uma mercadoria entre as restantes que pelas suas características intrínsecas, assume a função de meio de troca e a partir daí também a de unidade de conta.
As características ideais para o cumprimento destas funções encontram-se nos metais preciosos, em particular no ouro ou na prata e por isso estes metais são usados há séculos como moeda.
O Estado entra nesta história apenas com o papel de garantir a quantidade e a fineza do metal amoedado, colocando o seu "selo" através da cunhagem.
Um último passo dá-se quando, recentemente se adota a moeda fiduciária, sem valor intrínseco e garantida apenas pela sua aceitabilidade que se mantém graças aos hábitos e costumes dos indivíduos.
Paul Samuelson, um dos maiores divulgadores da narrativa convencional |
Esta narrativa, cuja origem pode ser encontrada em Aristóteles, que atravessou a era medieval e penetrou na economia moderna através de Adam Smith e foi fortemente divulgada por Stanley Jevons e em particular Carl Menger e Ludwig von Mises é uma ficção. Como afirma o antropólogo David Graeber não existe qualquer prova de que a troca direta alguma vez tenha existido e existe uma enorme quantidade de provas que sugerem que nunca existiu. E citando a antropóloga Caroline Humphrey:
Nenhum exemplo de economia de troca direta, pura e simples, alguma vez foi descrito, quanto mais o surgimento do dinheiro a partir dela; toda a etnografia disponível sugere que nunca existiu tal coisa (tradução livre).
Esta narrativa leva a um equívoco fundamental sobre a própria natureza da moeda, ou seja, a ideia de que a moeda é uma mercadoria (como era o ouro ou prata) ou que, se não for, se deve comportar como uma mercadoria.
Este equívoco não é exclusivo dos defensores das "criptomoedas" já que grande parte da própria teoria monetária convencional assenta nestes pressupostos (por exemplo, daí advém a Teoria Quantitativa da Moeda). No entanto, enquanto os economistas ortodoxos já perceberam há mais de um século que, apesar de tudo, é vantajoso que a oferta de moeda seja relativamente elástica em vez de estar sujeita à quantidade arbitrária de uma qualquer mercadoria, os defensores das "criptomoedas" procuram antes levar a visão da moeda-mercadoria até às últimas consequências.
De facto, talvez a maior vantagem que se apresenta relativamente ao sistema das "criptomoedas" é o facto de destas conseguirem mimetizar uma mercadoria (i.e. a anonimização, a escassez, etc.).
Para estes, a adoção de moeda fiduciária, sujeitas ao poder discricionário dos Estados, é uma traição, já que esta, não estando ligada a qualquer metal com valor intrínseco, perde valor constantemente (principalmente pela excessiva emissão de moeda pelos Bancos Centrais). Já vimos como a perda de valor da moeda é um grande problema e um grande equívoco dos defensores das "criptomoedas".
As "criptomoedas" procuram, assim, fazer ressurgir o sonho de von Mises que no início do século XX quando já pouco metal precioso circulava e os restantes economistas procuravam resolver o problema da gestão da emissão de papel-moeda, defendia que
o que os Estados Unidos precisam (…) é do clássico padrão ouro antigo (…). O ouro deve estar nos cofres de todos. Todos devem ver as moedas de ouro a mudar de mãos, devem estar habituados a ter moedas de ouro nos seus bolsos, a receber moedas de ouro quando desconta o seu cheque de pagamento, e a gastar moedas de ouro quando compram numa loja (tradução livre)
Não devia ser dificil entender a enormidade disto. Felizmente os economistas seus contemporâneos, com todos os defeitos que lhes possamos apontar (como Irving Fisher, o principal defensor da Teoria Quantitativa da Moeda) já não estavam nem aí e aprenderam alguma coisa com as turbulências financeiras do século XIX e início do século XX.
Ludwig von Mises |
Hoje, não nos é difícil ver as dificuldades que advinham do padrão-ouro para a gestão monetária e para a estabilidade dos sistemas financeiros e os defensores das "criptomoedas" estão a começar a entendê-las também.
De facto, talvez a principal consequência deste equívoco seja o completo desconhecimento sobre a própria criação de moeda nas economias modernas, ou seja, sobre o funcionamento dos sistemas monetário e bancário modernos. Os recentes escândalos com "pseudo-bancos", corretoras, fundos de investimento de "criptomoedas" e afins (sendo o mais significativo o da FTX) mostram a dimensão do equívoco e têm feito os seus entusiastas aprender à força aquilo que não quiseram aprender antes.
Sam Bankman-Fried, o fundador e CEO da corretora de "criptomoedas" FTX, entretanto caído em desgraça (o nome não augurava nada de bom) |
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