segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Batalhas educativas


A educação é sempre um campo de batalha, como todos os restantes sistemas de provisão. Há um esforço das direitas para erodir a diferença entre a escola pública e a privada, promovendo o capitalismo educativo com dinheiros públicos. Fazem muito bem as esquerdas em bloquear este esforço. 

Saúda-se por isso o chumbo dos manuais gratuitos no ensino privado: quem tem mais dinheiro, tende a ter mais vícios. Era o que mais faltava que estes vícios, do elitismo ao egoísmo, passando pela convicção de que o dinheiro tudo compra, incluindo um certo ambiente socialmente higienizado, andassem a ser subsidiados pelo Estado. Falta acabar totalmente com os contratos de associação, apesar do esforço já feito para moralizar este vínculo, e deixar de conceder benefícios fiscais regressivos a despesas educativas. 

É preciso insistir

O vírus liberal espalha-se na educação sempre que a subsidiamos, seja através de contratos, seja através de benefícios fiscais, as moralmente distorcidas preferências elitistas das famílias em matéria de educação privada. Estas têm externalidades negativas para o conjunto da comunidade, por exemplo através da criação de barreiras de classe cada vez mais intransponíveis. 

Mas este vírus espalha-se também sempre que descuramos as relações sociais subjacentes à provisão. Isto acontece quando os trabalhadores da educação e os seus sindicatos são tratados como alvos abater, fazendo-se convergir as relações laborais na esfera pública com a maior desigualdade e precariedade que campeia na privada. 

Isto também acontece quando a lógica cooperativa dos mecanismos democráticos de gestão colegial das escolas é substituída pela lógica do comando empresarial, na figura de um director todo-poderoso, associada à perversa promoção da concorrência entre escolas. Esta última tendência é igualmente favorecida pelo perigo da crescente municipalização do ensino público no nosso país. A escola, mesmo que formalmente pública, tenderá assim a ficar refém de directores pouco escrutinados e da lógica clientelar de muitos municípios. Em conjunto poderão ter no futuro poder para contratar e despedir pessoal docente e não-docente cada vez mais precário.

O vírus liberal emerge também na selecção e exclusão dos alunos pelas escolas públicas, imitando as práticas das escolas privadas, de acordo com o capital económico e cultural das famílias, determinante no sucesso escolar, ou com as necessidades dos alunos. O reforço da uniformização das escolas – escolas para ricos e escolas para pobres –, num país desigual e com taxas recorde de pobreza infantil, tem de ser travado através de batalhas em múltiplas frentes. 

A potência do vírus liberal está na sua capacidade mutante, na forma como se adapta aos vários sistemas de provisão sem perder a sua natureza. As parcerias público-privadas na saúde ou o cheque-dentista são outros tantos exemplos, desta vez no sistema de provisão de saúde, deste vírus, aí ainda mais potente pelos lucros poderem ser ainda maiores.

7 comentários:

Anónimo disse...

A potência do vírus liberal, que em abono da verdade tem pouco de liberal, é nunca ser efectivamente derrubado, é o poder que determina a mutação.

Contra a Falácia e o Viés disse...

Gostava de pensar que está receptivo a comentários construtivos, e assim vou ensaiar um curto comentário.
A sua frase "quem tem mais dinheiro, tende a ter mais vícios" está baseada em que evidência? será mais uma inferência do facto de que os vícios custarem dinheiro e por isso estão vedados a quem o tem? E se assim é, não será justo dizer que quem não tem dinheiro e o vem a ter ganhará igualmente vícios? E finalmente, podendo haver vícios não dispendiosos, não pderão afectar quem não tem dinheiro? o que derrota a primeira premissa do seu texto...
Mas peço ainda que reflita no sentido oposto: poderá ser igualmente fácil argumentar no sentido oposto, com igual autoridade (não havendo evidência nem forma de a obter em experimentação social) que a relação entre vício e dinheiro poder ser biunivoca. Ou seja, o autor entende que havendo dinheiro suurgem vícios, mas outros autores entendem com o mesmo poder que os vícios levam a que não se obtenha ou acumule dinheiro. Ambos os raciocínios me parecem pertinentes. E agora ficamos sem saber qual é o mais pertinente.
Mas verdadeiramente crítico aqui é tentar perceber a necessidade de associar dinheiro a vício. Eu conheço na minha profissão pessoas de todas as origens sociais com todo o nível de rendimentos, e asseguro que o vício está absolutamente independente do dinheiro - só assume rostos diferentes.
O que me leva à primeira pergunta - como pode achar que ter ou não vícios legitima ter ou não acesso a um benefício na educação dos filhos? (sabendo que concorda comigo que quem tem vícios não serão as crianças...). E como conseguirá classificar entre quem tem vícios ou não? certamente não será de acordo com os rendimentos.
Para mim é difícil establecer que um direito de uma criança (acesso a manuais escolares) possa ser vedado porque os pais a inscreveram numa escola privada. Aqui surgem dois raciocínios que me parecem pertinentes:
1. Todas as crianças são iguais e merecem os mesmos direitos. O Estado deve educação e igualdade de oportunidades a todas as crianças. Mesmo que uma criança (ou os seus pais, obviamnte) tenha a opção de não fazer parte (ou a totalidade) da sua educação no sistema público, não perde o direito à mesma - este direito precede aquela opção. A todo o instante pode regressar ao sistema público, por exemplo. E nesse direito, de todas as crianças, está incluído o acesso aos manuais. Assim fica absurda a reclamação de negar esse direita a essas crianças.
2. noutro sentido, e sem querer fazer juizos de valor sobre a capacidade ou qualidade de formação de uma ou outra escola pública, a opção de inscrever a criança numa escola privada alivia a carga de alunos da escola pública, e essa diminuição de custos deveria ser reconhecida, e não penalizada. É assim um paradoxo que seja ainda recusado um benefício que deveria ser universal.

Ainda aresce aqui que grande parte dos inscritos no ensino particular não são ricos. Basta pensar que neste momento 20% das crianças frequenta ensino privado (pordata) e não temos 20% de ricos em portugal. Muitos destes pais não terão vícios, certamente. É também por isto que o insto a repensar a premissa do seu raciocínio.

Quereria continuar a questionar o seu texto, mas vou aguardar pela sua resposta a este início, e continuamos a conversa depois.
No entanto, peço que abra a sua mente para a possibilidade de haver um pensamento diferente do seu, sem que esteja errado - pode ser uma visão diferente do mesmo problema - sem que isso seja uma infecção viral que tenhamos que exterminar. Esse tipo de raciocínio divisivo establece barreiras que são opostas à Democracia. Numa Democracia saudável, várias pessoas com ideias e interesses diferentes confluem e defendem o bem comum-não tentam exterminar as ideias diferentes das suas.
Cumprimentos

Anónimo disse...

O bem comum não é compatível com a ideia de o ser o Estado a subsidiar as necessidades de distinção de certas classes sociais.
Os colégios não podem oferecer os manuais? Se calhar, é preciso subirem as propinas para os poderem "oferecer". Que as subam, então.

Anónimo disse...

Se 20% dos que frequentam o ensino privado não são ricos, conclui-se que preferiram pagar as propinas e depois não lhes sobrou dinheiro para os livros. Têm uma boa alternativa, que é irem para a escola pública e ainda levam, como bónus, os manuais gratuitos.

O único benefício que uma escola pública não pode nunca oferecer é o da distinção social e é profundamente aberrante pensar que o Estado deve financiar sonhos de distinção social, pois estes não podem por natureza ser universais.

Anónimo disse...

O comentador das 00:11 não percebe porque é que o estado não deve subsidiar o ensino privado, portanto, não percebe porque é que o estado não deve contribuir para os lucros dos privados, atendendo a isto como é possível levar esta gente a sério? O liberalismo da actualidade não tem qualquer consistência ideológica, também gostei da parte do "somos todos iguais" como tal temos de ter todos os mesmos direitos, e eu acrescento, os mesmos direitos e os mesmos privilégios. O seu comentário foi excelente, é ilustrativo de uma certa mentalidade e forma de estar, apareça mais vezes.

Anónimo disse...

Numa sociedade em que, por norma, é preciso dispêndio monetário para aceder a bens e serviços, alguma razão forte tem de existir por trás de qualquer exceção a essa regra. Assim acontece com os manuais escolares. A gratuitidade dos manuais escolares sublinha, concretiza, completa, a gratuitidade e a universalidade da escola pública. São a gratuitidade e a universalidade da escola pública que dão sentido e que justificam a gratuitidade dos manuais escolares. Não faz, portanto, qualquer sentido a sua gratuitidade na escola privada - que não é, por definição, gratuita nem universal.
E M Marques

Anónimo disse...

" E nesse direito, de todas as crianças, está incluído o acesso aos manuais. Assim fica absurda a reclamação de negar esse direita a essas crianças."

Os livros didáticos - vulgarmente denominados de manuais - são um recurso pedagógico entre outros, muitos outros. Não existe o direito aos livros didáticos, por si. O que o estado considerou - é na minha perspectiva erradamente porque existiam formas mais interessantes de fazer isso - é que os recursos curriculares necessários para a intervenção pedagógica nas escolas privadas não deverá comportar um preço considerável. Do mesmo modo que financia computadores, protetores, livros literários, etc. Considerou que os manuais eram um recurso necessário para as escolas - aliás a premissa é de empréstimo.
A não ser que se defenda que o estado deve financiar, no privado, outros recursos curriculares, é difícil subscrever ideia que deve financiar os manuais escolares que são usados nas aulas dos colégios privados, ou instituições similares.

"2. noutro sentido, e sem querer fazer juizos de valor sobre a capacidade ou qualidade de formação de uma ou outra escola pública, a opção de inscrever a criança numa escola privada alivia a carga de alunos da escola pública, e essa diminuição de custos deveria ser reconhecida, e não penalizada. É assim um paradoxo que seja ainda recusado um benefício que deveria ser universal."

Ao contrário do que se faz na comunicação social, a ideia de custo unitário, por aluno, tem pouquíssimo interesse. O investimento deverá ser pensado por créditos horários, já que no essencial é esse o orçamento das escolas. Ter 18, 23 ou 28 alunos é, globalmente, igual. A ideia que os alunos do privado permitem poupança no público faz pouco sentido. Por um lado, os colégios privados, ou instituições similares, têm, direta ou indiretamente, dinheiro do estado envolvido. Por outro lado, os estudantes que pressupõe maior investimento unitário - particularmente aqueles que têm NAS - dificilmente são integrados em colégios privados até porque, globalmente, as escolas públicas têm mais recursos - técnicos e materiais - para trabalhar com estes estudantes.