terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Privilégios e distinções

À boleia de uma imaginária “constituição colonial” que ainda nos regeria, Miguel Vale de Almeida ignorava no ano passado a Constituição realmente existente, que está por realizar em tantos aspectos cruciais, e insistia em políticas paupérrimas, felizmente ignoradas, por sua vez, pela maioria dos partidos de esquerda. 

Já este ano, voltou à carga com uma “narrativa” importada dos EUA: a do “privilégio branco”, aquele que seria independente da classe social, como faz questão de sublinhar numa recensão entusiasmada, de cinco estrelas, a um livro sobre a “fragilidade branca”. Por contraste, há quem assinale nos EUA “a condescendência desumanizadora” do livro em causa, para já não falar de mistificações crassas. Pouca importa, estes livros vendem e dão origem a toda uma indústria de autoajuda e de formação para empresas alardearem “responsabilidade social”, uma contradição nos termos na ausência de contrapoderes sindicais e regras políticas adequadas. A política acaba nos exercícios interiores mais ou menos terapêuticos de mudança da mentalidade. 

Entretanto, no meio de uma brutal crise, a vida de milhões de portugueses, dos que auferem por cá o salário mínimo nacional, ou ainda menos, aos que foram compelidos a emigrar na anterior, seria certamente reconfigurada pela descoberta subversiva: é melhor não me queixar, dado que, devido à “branquitude”, até sou um privilegiado, categoria escorregadia como poucas. Preencheriam depois os censos racializados – qual é a minha “raça”, afinal de contas? – e veriam as quotas raciais em acção. Estão a ver o filme que alguns querem dobrar? 

Por razões certamente misteriosas, a reacção é capaz de não ser a melhor e daí aos deploráveis seria certamente um passo a ser dado por um grupo que só pode ser muito pequeno. A nação e o internacionalismo genuíno, o da autodeterminação nacional para todos, são abandonados e podem ser distorcidos por outras imaginações políticas. 

Aprendamos então com a investigação útil que vem dos EUA: talvez a forma mais consequente de combater o racismo e de promover a igualdade substantiva não seja multiplicar identidades, até chegar a um eu politicamente imprestável, complementar de um cosmopolitismo desenraizado, nem mobilizar expressões que só garantem derrotas, mas antes dar prioridade às organizações abrangentes de classe e implementar as políticas que estas propõem, do aumento do salário mínimo aos outros direitos laborais. Esta linha é bem menos visível no espaço público do que a política reduzida à enésima versão da ideologia liberal das carreiras supostamente abertas aos talentos, agora com a retórica da diversidade, a que deixa intacta o fundamental das estruturas desiguais. Porque será?

Lutas de classes, no plural, e comunidade política inclusiva são pontos de partida e de chegada. No nosso contexto, tal exige recuperar soberania popular para o espaço onde ainda está a democracia que nos resta. Esta frente ampla é ainda mais necessária num país onde os grupos racializados são mais minoritários, estão espacialmente mais circunscritos e as organizações que falam em seu nome são marcadas por uma uma aparente pulverização, apesar de uma ou outra inscrição colectiva, de resto corajosa, no espaço público, em particular da capital. 

Por contraste, há formulações e “narrativas”, como detesto esta palavra, que nos vulnerabilizam perante os monstros da extrema-direita, os que parecem estar a colonizar as outras direitas e isto também à boleia de armadilhas onde só cai quem quer.

7 comentários:

Jaime Santos disse...

Tudo certo relativamente à importação de modelos que não nos dizem nada e que porventura estão errados mesmo para os EUA.

Sucede que há um pequeno elefante na sala, o racismo que ainda se faz sentir em Portugal e que não é certamente monopólio das classes abastadas (muito embora seja particularmente ignominioso nelas).

Aliás, como se explicam as votações de Ventura nos concelhos alentejanos em que a presença de ciganos é mais sentida? O que andou a fazer o PCP nos últimos 50 anos por lá?

E, já agora, porque é que essa comunidade ainda é particularmente marginalizada no antigo Bloco de Leste? Pensar-se-ia que 50 anos de socialismo real teriam chegado para resolver todos os problemas sociais e integrá-los plenamente, a acreditar na visão idílica propalada pelo João Rodrigues. Mas é vê-los pelas ruas da Europa Ocidental ou constatar o ódio que por eles sentem os seus concidadãos e percebe-se que, alas, as coisas não são assim.

Ou seja, essa da luta de classes soa muito à do 'estamos todos juntos nisto' e ai jesus que não se podem ofender os trabalhadores chamando os bois pelos nomes. E ainda se fazem uns apelos ao nacionalismo inclusivo que é daquelas coisas que se formos bem a ver é uma contradição nos termos, porque o nacionalismo se constrói sempre contra o outro, o estrangeiro, que às vezes também é o inimigo cá dentro...

Pelo menos o nacionalismo xenófobo de Direita não é hipócrita e diz ao que vem. E, pois claro, é bastante mais bem sucedido eleitoralmente entre os 'deploráveis' de todas as cores, como se vê em Itália, na França ou no Reino Unido...

JE disse...

Dar o nome aos bois, sempre

Entretanto sublinhe-se este pedaço:

"talvez a forma mais consequente de combater o racismo e de promover a igualdade substantiva não seja multiplicar identidades, até chegar a um eu politicamente imprestável, complementar de um cosmopolitismo desenraizado, nem mobilizar expressões que só garantem derrotas, mas antes dar prioridade às organizações abrangentes de classe e implementar as políticas que estas propõem, do aumento do salário mínimo aos outros direitos laborais."

Jose disse...

«o ódio que por eles sentem os seus concidadãos»

Antes demais entenda-se que concidadão se define face a uma noção de cidadania.
Quem voluntária e consistentemente se exclui dessa noção é estrangeiro e se são ou não odiados é outro questão a analisar noutros termos.

Jose disse...

«dar prioridade às organizações abrangentes de classe e implementar as políticas que estas propõem»

Os ódios de substituição são sempre um método provável de atenuar outros ódios.

JE disse...

Jaime Santos pergunta o que andou o PC a fazer este ror de anos

Bom, quem decide as políticas do país é quem é governo. Acontece que um tipo colorido, assim da coloração de Jaime Santos, contribuiu para o arruinar de uma transformação profunda no Alentejo.

Falamos de antónio barreto.

Poderíamos tomar o fio à meada e dizer que por cada atitude do neoliberal antonio barreto, nasceu um punhado de votos no Chega. Mas nem sequer vale a pena ir por aí. Porque a questão da distribuição de votos é uma história tão mal contada como a contada por JS sobre os que votaram no Brexit

Não vale a pena recordar as certezas absurdas de JS

JE disse...

Também não vale a pena ir pelos países do bloco de leste, aqui estigmatizados por JS

O que verdadeiramente se torna desprezível é esta capacidade de dizer A e o não A, de acordo com o discurso narrativo que se quer impingir

Os povos do leste europeu não estavam desejosos de deixar as ligações com Moscovo e abraçar os ideais vertidos pelas odes triunfantes made in América e de acordo com os princípios neoliberais da UE? A "libertação dos povos" e os hinos à sua capacidade de resiliência, mais as odes à sua luta contra uma determinada visão do socialismo, agora não encalha com o propalado racismo destas gentes?

Não joga a bota com a perdigota. Quem afinal estava por detrás de certos crimes cometidos por alguns e abraçou a bandeira americana e os discursos equivalentes do lado de cá, afinal é coisa idêntica ao que se faz deste mesmo lado de cá.

Infelizmente a História contada por JS converte-se numa historieta idiota e sem sentido, ou melhor, com um só sentido.

Porque diacho ele não vai inquirir o motivo pelo qual, no país capital dos vencedores, segundo as suas próprias palavras, assistimos hoje ( e ontem e anteontem e ao longo dos anos) a manifestações racistas bem piores, muito piores das observadas em qualquer rincão do leste europeu?

(Espera, eles dizem ao que vêm. Pois dizem. Com pistolas atirando a matar, ou asfixiando durante as detenções, Antes enfiavam panos brancos na cabeça e pneus a arder pelo corpo abaixo)

O que se passa com esta caterva de vencedores que tiveram uma revolução há cerce de 250 anos e que nalguns casos parecem estar na Idade da Pedra?

Mas a historieta de JS depressa se converte em má fé. Fala JS a este propósito em luta de classes. Bom, aqui JS começa a derrapar, confundindo as coisas e as loisas. Mas francamente agora ensinar princípios básicos, está fora dos meus propósitos. Onde a coisa começa a ser mais feia é quando JS escorrega na sua maionese suja. Dirá "...nacionalismo inclusivo que é daquelas coisas que se formos bem a ver é uma contradição nos termos".

Ora acontece que por aqui se tem mostrado à evidência que se "se formos bem a ver", a "contradição" apontada por JS radica da cabeça dos cosmopolitas, a tentar impingir o seu modelo (cosmopolita) à vencedor. Para JS a Revolução Francesa foi uma chatice, eram preferíveis os jogos de cama e os assassinos e crimes da corte inglesa; a libertação do jugo colonial idem,idem, aspas, aspas, porque a "educação" à colono se perdeu. E a contribuição das lutas nacionais, na derrota do nazi fascismo um aborrecimento, porque nos afastámos das "elites" alemãs

Eu sei que é chato, mas repetindo o papaguear missal de JS, "se formos bem a ver", nacionalismos há mesmo muitos. Há o nacionalismo xenófobo de direita ( e atenção, segundo JS até será melhor porque não é hipócrita e diz ao que vem. Isto é a sério? , Como qualificar esta bênção de JS ao nacionalismo xenófobo de direita?).

Mas há também os que permitiram que o mundo pule e avance e que testemunham os seus ideais nacionais, integrando-os na luta
emancipadora global da Humanidade

( Quanto ao sucedido eleitoralmente entre os "deploráveis", porque motivo me vem à memória uma frase batida, segundo a qual um voto em Macron em 2017 é um voto em le Pen em 2022?)

Pois é, isto anda mesmo tudo ligado e é mesmo deplorável assistirmos a estes arrobos de deploráveis vendedores da coisa da cobra

JE disse...

"Quem voluntária e consistentemente se exclui dessa noção é estrangeiro"

Esta frase estava inscrita nos manuais dos colonizadores e destinava-se a doutrinar os colonizados, para estes se assumirem como "estrangeiros", na terra que já não era deles?

Uma outra frase ficou mais conhecida, quase equivalente a esta:
"Para Angola e em força"

( quanto aos ódios... Ódios? Ódios de classe também os há, embora se perceba que jose queira afastar o foco da coisa.

Quando jose proclamava a 21 de Outubro de 2013 de forma quase histérica que "Só te venho falar de uns cabrões duns socialistas" 
ou n"os cabrões dos revolucionários de Abril", que outros ódios jose quereria atenuar? )