Recentemente, Pacheco Pereira conseguiu a proeza de falhar no alvo mais fácil – o neoliberalismo não equivale a “Estado mínimo”, nem sequer nas formulações originais – e de acertar no alvo mais difícil para um autodenominado liberal – não deixar que os liberais da iniciativa reaccionária, que convergem com o Chega na economia política, se apropriem da palavra liberdade.
Em economia política, a liberdade é difícil de distinguir do poder, tendo uma lógica relacional e posicional, a começar no controlo dos activos. As liberdades de uns implicam a exposição de outros a essas liberdades, as liberdades do patrão não são garantidas pelo mesmo tipo de regras, por comparação com as do trabalhador, não são sequer da mesma natureza. O aumento da discricionariedade patronal implica uma redução das liberdades do trabalhador. Ao mesmo tempo, sabemos que as liberdades laborais estão imbricadas também com a luta colectiva pela redução do horário de trabalho, com o que se passa dentro e fora de uma organização potencialmente liberticida, a empresa capitalista.
Sendo a economia inevitavelmente um sistema regulatório, que exige sempre a mobilização dos poderes públicos, a questão principal é que grupos vêm as suas liberdades aumentadas e que grupos vêm as suas liberdades diminuídas pelas mudanças nas regras do jogo, ou seja, estamos sempre a redistribuir liberdades, sendo que não há uma métrica única, nem as liberdades são do mesmo tipo. Os que querem mais liberdades para os de cima, à custa de vulnerabilidade para os de baixo, não podem monopolizar essa palavra. Era o que faltava.
E quase nem precisamos de dizer que qualquer feixe de liberdades só se alcança colectivamente, graças a impostos, e que há liberdades que só se usufruem colectivamente, como a liberdade de ser cidadão de um país com capacidade de decidir sobre o seu futuro de forma independente, isto para já não falar da liberdade de viver numa sociedade onde as desigualdades de classe estejam pelo menos atenuadas ou a liberdade de ter acesso a bens e serviços sem depender da lógica de mercado e dos seus efeitos tantas vezes socialmente injustos e moralmente corrosivos. E, já agora, que dizer da liberdade de viver uma vida longa e saudável, num ambiente respirável, com ar limpo ou água potável?
Um parque público não é um centro comercial, uma reserva natural não é um jardim zoológico, uma biblioteca pública não é uma livraria, uma escola pública não é uma escola privada e assim sucessivamente. Não é a “tirania das pequenas decisões” individuais pelos mercados que nos dá acesso às infra-estruturas públicas, em sentido amplo, e às liberdades que só nelas, e através delas, se podem usufruir, incluindo pela deliberação colectiva na gestão do que é de todos.
Pelo menos, os liberais originais, a esmagadora maioria das vezes nacionalistas no século XIX, percebiam a determinação colectiva das liberdades, a dependência que a sua visão enérgica do mundo tinha de baterias como o nacionalismo (é a riqueza das nações...). As instituições para uma minoria por eles forjadas tornaram-se eventualmente mais inclusivas, mas só depois de longas lutas democráticas dos subalternos, bem para lá do liberalismo dito clássico e da sua concepção convenientemente estreita das liberdades. Não permitamos retrocessos intelectuais e ético-políticos.
9 comentários:
Transformar o argumentário antiliberal num hino às liberdades, corresponde a fazer da instituição regulatória o princípio omnipresente nas relações sociais, sem que se lhe invoque a presença.
Por acaso, concordo com quase tudo desta vez, sucede que há duas coisas desconfortáveis que faltou dizer. Primeiro, que as visões das 'democracias avançadas' falharam e mergulharam os Países onde foram implementadas no autoritarismo e que foram as lutas democráticas dentro do sistema liberal que permitiram um avanço das liberdades a todos os níveis (políticos, económicos e sociais) e depois que, muito naturalmente, o nacionalismo de sec. XIX, que trouxe para a cidadania muitos dos excluídos, degenerou no paroxismo dos fascismos durante o sec. XX.
O nationalismo progressista, João Rodrigues, assume formas cada vez mais reacionárias com o passar do tempo. E isso também é infelizmente verdade nos Países surgidos das lutas coloniais, muitos mergulhados na corrupção e na pobreza, assim como em lugares como a China, em que a decadência da ideologia o deixa como a única religião de um estado ateu.
Por isso, mau grado o seu desejo de enterrar o Liberalismo (Krutschev também se enganou), ainda é ele que encerra a promessa de maior autonomia para os cidadãos, na sua dimensão pessoal (e sem esta não há Liberdade) ou na dimensão colectiva.
A rede social Twitter com sede na "Democracia" Liberal dos EUA eliminou várias contas porque estas minavam a fé na aliança NATO e sua estabilidade.
"...undermining faith in the NATO alliance and its stability."
Retirado do blog oficial do Twitter.
https://blog.twitter.com/en_us/topics/company/2021/disclosing-networks-of-state-linked-information-operations-.html
Se minarem a fé(!!!) na NATO são eliminados, é a "Democracia" Liberal realmente existente!
Temos aqui um texto mais uma vez notável de João Rodrigues ( ele aprimora a pontaria, à medida que discorre sobre)
E temos dois ou três pequenos problemas.
Um é de certa forma incapacidade que jose mostra para compreender o que lê. Quem diz que se converte "o argumentário antiliberal num hino às liberdades" é de quem não conseguiu ou não quis perceber o que se lhe diz. Tal como nacionalismos há muitos, mau grado o jeito desbragado de Jaime Santos, liberdades há também muitas.
Deixando para lá os derivativos toscos sobre a Nato (é sempre bom arranjar manobras de distração e isto é quase um mantra neoliberal) temos um outro problema com o comentário de Jaime Santos.
Este está como aquele tipo que começa por dizer que concorda com tudo, para depois acabar num "não concorda com nada".
Métodos um pouco deprimentes para quem pretende dar estas aulas de cátedra à moda de JS
Mas métodos mais uma vez que arrastam má fé. Uma linha para dizer que até concorda com "quase tudo" e mais do que uma dúzia de linhas para dizer que afinal com o que concorda é com a sua habitual cassete
Já lá iremos
Obrigado, João Rodrigues pelo texto.
Será que pode fazer alguma coisa sobre os comentários do JE? Isto já cansa de se armar em provedor do vosso blog. Não creio que as pessoas que se reveem naquilo que vocês escrevem sejam iguais a este tipo de mentalidade mesquinha que existe nesta coisa chamada de JE.
Um abraço
Se o sujeito da mesquinhez não se importa, vamos continuar.
Provedores da Nato ou amizades mais ou menos assumidas com os neoliberais do costume ficam-lhe bem . Mas para isso já demos, aqui ou na Holanda.
"O neoliberalismo não equivale a “Estado mínimo”, nem sequer nas formulações originais".
A esta frase do autor do texto, JS prefere responder com as "democracias avançadas"
A outra frase de João Rodrigues
"A questão principal é que grupos vêm as suas liberdades aumentadas e que grupos vêm as suas liberdades diminuídas pelas mudanças nas regras do jogo, ou seja, estamos sempre a redistribuir liberdades, sendo que não há uma métrica única, nem as liberdades são do mesmo tipo"
JS prefere cantar loas assim do tipo "as lutas democráticas dentro do sistema liberal que permitiram um avanço das liberdades a todos os níveis"
Dentro do sistema liberal? Tiradas a ferro e fogo, como se sabe e com a espada da URSS e do socialismo a obrigar o tal sistema muito liberal a prescindir um pouco daquela boçalidade societária que lhe era característica e a avançar com essa coisa do Estado Social, que faz rugir toda a catrefa de liberais, tão velhos e tão incultos que nem sequer conhecem a sua própria história?
De resto é ver hoje até onde chegou o mundo com este "sistema liberal"?
A quem se referirá JS? A trump e aos seus seguidores? Aos bombardeamentos e destruições no Iraque, Líbia, Síria? À violência que se abateu sobre os manifestantes franceses ,silenciados pelos media tanto como amplificam qualquer outra situação do lado onde eles não jogam?
Ou à França, onde o mui liberal Macron evocou dispositivos polêmicos, que permitiu aprovar leis fundamentais sem passar por votação no Parlamento?
Ou à destruição da Grécia pela mão da UE? Ou ao saque troikista a Portugal?
JS quer-nos contar lindas estórias de fadas à maneira dos arautos das delícias que o euro nos iria trazer
Tem azar.
JS também tem azar com as suas sentenças sobre "o nacionalismo de sec. XIX, que degenerou no paroxismo dos fascismos durante o sec. XX"
É que nacionalismos há muitos. E sistematicamente JS esquece-se que outros ajudaram a destruir a besta do nazi-fascismo, libertando-se do jugo colonial.
Será que é por isso que JS avança com esta idiotice que parece sair de um qualquer colonialista ressabiado?
"é infelizmente verdade nos Países surgidos das lutas coloniais, muitos mergulhados na corrupção e na pobreza"
Mas o que é isto? Os países que se tornaram independentes, mercê da sua luta para se libertarem dos seus donos e senhores, são avaliados pelos critérios dos mesmos donos e senhores, qual arrogantes xenófobos que não toleram que se discuta o seu direito à posse? Será que JS insinua que deveriam ter ficado sob as garras desses mesmos amados donos e senhores?
O caminho trilhados pelos povos não é muitas vezes o caminho que eles quereriam percorrer, mas é o deles. Não precisam é de paternalismos idiotas ou de processos de intenção hipócritas e repelentes, próprios de quem se julga dono do mundo e senhor do destino alheio.
(Porque é bom lembrar, foi curiosamente no ventre da civilização ocidental que nasceu esse horror chamado nazi-fascismo. Não nasceu das maternidades das lutas anti-coloniais)
(Já agora, não serve de nada fazer fitas com os enganos de outrém. JS, que não é krutchov, tem alguns enganos antológicos sobre o Brexit. Adiante)
Mas há uma última coisa a fazer confusão. Como é que alguém que diz que "concorda com quase tudo desta vez", termina com "ainda é ele ( o liberalismo) que encerra a promessa de maior autonomia para os cidadãos, na sua dimensão pessoal (e sem esta não há Liberdade) ou na dimensão colectiva."
Será que leu mesmo o texto ou já tem a cassete preparada mesmo antes de o ler?
Liberdade, assim com letra maiúscula? E assim individualizada? Quando o que o autor precisamente faz é desmistificar este conceito estreito da liberdade? O conceito plural de liberdade escapa assim a quem concorda com quase todo o texto?
Para tentativas ínvias de apropriação desta palavra já nos basta o Chega
João Rodrigues, embora eu continue muito a gostar de ler os seus textos, tenho uma pergunta para lhe fazer: Será que vocês perderam mais comentadores, desde que o JE se tornou numa espécie de provedor do blog?
Não. Foi apenas o tal da segunda derivada que deixou de se multiplicar por tantos nicks.
E os números revelam que este blog está a ter uma afluência notável.
Agora podemos voltar ao que se debate, sem nos afundarmos nos processos subterrâneos e pseudo-choramingas da coisa? Voltar aos "Alvos Liberais" e não aos sucedâneos pueris e toscos?
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