terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

GameStop: uma “Revolução Francesa na alta finança”? Não exatamente

O caso da GameStop explodiu na semana passada mas continua a figurar entre os destaques de boa parte da imprensa económica. As proporções que o caso tomou após a cotação bolsista da empresa, que atravessava dificuldades financeiras, ter aumentado mais de 1000% no espaço de poucas semanas, fez com que esta captasse atenções um pouco por todo o mundo. E tem motivado diferentes análises sobre os mercados financeiros.

Anthony Scaramucci, antigo conselheiro de Trump e famoso investidor bolsista, disse que estamos a viver “uma Revolução Francesa na alta finança”. À primeira vista, a atuação concertada dos pequenos investidores, que causou prejuízos significativos aos dois fundos de investimento que apostaram na queda da GameStop, podia parecer um golpe de mestre. Houve quem lhe chamasse “um ato de revolta contra a máquina financeira”. No Reddit, onde tudo começou, alguns utilizadores impeliam os outros a participar na “oportunidade única de punir o tipo de pessoas que causou tanta dor há uma década”, em referência ao papel dos bancos na crise financeira de 2007-08. Mas, no fim do dia, quão eficaz é a jogada?

No Financial Times, Merryn Webb apresenta uma perspetiva mais crua: o caso pode ter aberto telejornais, mas não terá aberto uma crise nos gigantes financeiros, já que os ganhos dos bancos dependem mais das comissões que cobram do que dos investimentos que fazem. “Como forma de combate a Wall Street, é infrutífero”, explica Webb. Por outro lado, a redistribuição de riqueza também não deverá acontecer, uma vez que o valor das ações está manifestamente desligado da realidade da empresa e tenderá a cair a partir de determinado momento, penalizando quem investiu nas ações. É isso que leva a autora a concluir que “provavelmente, a história sobre justiça social é simplesmente isso: uma história”. Apesar disso, Webb vê nesta nova forma de “ativismo financeiro” uma possibilidade de condicionar a atuação das empresas, forçando-as a promover comportamentos mais responsáveis através da pressão dos pequenos investidores que as podem premiar ou penalizar consoante as suas práticas. A porta para a Revolução Francesa na finança poderia, por isso, estar aberta.

Nem todos partilham deste otimismo. Na Tribune Magazine, Grace Blakeley explica porque devemos olhar com desconfiança para este fenómeno. Blakeley começa por notar que o argumento da responsabilização das empresas já foi feito na altura em que despontaram os fundos privados de pensões, embora nunca se tenha materializado. Além da dificuldade que a atuação organizada de milhares de pensionistas teria, o principal problema é que a riqueza está distribuída de forma cada vez mais desigual. “Por outras palavras, os pensionistas não são uma classe – não partilham um conjunto de interesses comuns que os poderia unir na agitação para promover justiça social”. O mesmo se aplica, na opinião da autora, aos utilizadores do Reddit: tratam-se de norte-americanos com dinheiro suficiente para investir, o que os coloca entre as classes médias e médias-altas que apenas têm em comum o facto de não atravessarem dificuldades para fazer face às despesas do dia-a-dia.

Blakeley discorda que esta atuação possa constituir um tipo de organização social consequente. Por um lado, não coloca em causa os mecanismos de acumulação de capital (na verdade, participa neles, ao apostar na valorização bolsista de uma empresa e na remuneração dos seus acionistas). Por outro, não expõe um antagonismo social entre diferentes classes. No entanto, tem um aspeto importante: o de recordar que a transformação social depende da organização coletiva.

O que este caso mostra, novamente, é o que se tornou claro após a última crise: os mercados financeiros geram, no seu funcionamento normal, as próprias condições de instabilidade e crise. A conclusão já fora formulada em 1992 pelo economista Hyman Minsky, que desenvolveu a Hipótese da Instabilidade Financeira. A ideia central é que os períodos de estabilidade nos mercados financeiros aumentam a apetência dos investidores pelo risco (devido à expectativa de maior retorno dos investimentos), favorecendo a formação de bolhas especulativas que, eventualmente e inevitavelmente, rebentam. “A estabilidade é desestabilizadora”, explicou Minsky. A repetição cíclica das crises parece dar-lhe razão.

É por isso que o que aconteceu com a GameStop está longe de constituir uma Revolução Francesa. O alcance da atuação de pequenos investidores é bastante limitado e, por isso, inconsequente. Os limites deste tipo de atuação apontam, na verdade, o caminho necessário: para resolver problemas coletivos, são precisas respostas coletivas ao nível da organização social, da regulação financeira e da redistribuição de riqueza. No fim do dia, o papel da democracia na definição de regras continua a ser decisivo.

Artigo publicado inicialmente em Esquerda.Net (ver aqui).

7 comentários:

Anónimo disse...

O que isto mostra é que um grupo relativamente reduzido de pessoas consegue ser mais eficaz a pôr em causa uma realidade que um cem número de inúteis. Na verdade o que foi posto em causa não foi o "short selling" foi sim a "vaca sagrada" que os ricos e os muito ricos utilizam para terem o mundo aos seus pés.

Anónimo disse...

A forma como parte da esquerda parece entender a organização colectiva transforma-a numa abstração, a esquerda devia parar de pedir e passar a exigir porque é a única posição moralmente aceitável.

khaostik disse...

Deste site esperava uma explicação do que está a acontecer, nomeadamente o que é shorting, e porque é que os hedge funds foram apanhados com as calças nas mãos com 140% das acções existentes e porque é que isso é um problema.

Francisco disse...

De facto não se trata de uma Revolução Francesa. E ainda bem: é que a Revolução Francesa foi precisamente o solo, sobre o qual a burguesia enquanto classe social, assentou as principais bases do liberalismo e do contratualismo, que são na verdade a seiva ideológica que lhe tem permitido, ao longo da história mais recente do sistema capitalista (precisamente do séc. XVIII em diante), suster os ímpetos dos que agora querem outras revoluções, que sirvam de facto para a eliminação da exploração do homem pelo homem, e para a construção de uma sociedade sem classes. Portanto e resumindo, não foi uma Revolução Francesa e ainda bem: as revoluções de que precisamos, são mesmo as outras.

Anónimo disse...

De facto o shorting é daqueles anglicismos utilizados por uma camada de pretensiosos fiéis às teorias económicas liberais. Preenchem monólogos fastidiosos

Anónimo disse...

khaostik, tudo isso está aqui: http://ladroesdebicicletas.blogspot.com/2021/01/gamestop-quando-especulacao-se-vira.html

Foi publicado na semana passada...

Anónimo disse...

Monólogos fastidiosos como se comprova.
Melhor ir ao autor da posta, que tem o mérito de falar de economia política desta forma clara, em vez de falar para o espelho