domingo, 24 de março de 2013

Uma questão incómoda?


A propósito da agudização da crise do euro a partir da falência de dois bancos em Chipre, Francisco Louçã interpelou "os bons espíritos" que defendem a saída do euro com esta questão (ver aqui):

"se o povo reagiu violentamente contra o confisco de 6% dos seus depósitos, com razão e com o apoio da esquerda, o que diria esse povo ao governo de esquerda que lhe anunciasse que amanhã de manhã os depósitos perdem metade do seu valor, porque os euros são substituídos por escudos com uma desvalorização de 50%? Como reagiria a este imposto de 50%? Não é evidente que haveria uma corrida aos depósitos para levantar todos os euros? É evidente e é uma questão incómoda. Procurar alternativas não pode poupar esse incómodo." 

Louçã cometeu um erro surpreendente que o José Castro Caldas, para além de propor um enfoque mais amplo, bem assinalou nos comentários. A resposta foi equívoca, no mínimo, pelo que é preciso insistir para de uma vez por todas afastar raciocínios errados.

Para um pequeno ou médio depositante, o valor das suas poupanças depende da evolução do valor interno da moeda,ou seja, da taxa da inflação no consumidor. Acontece que o consumo importado não é a totalidade do consumo privado, talvez cerca de 13% (ver aqui o consumo importado das famílias em 2008). Assim sendo, para as famílias a inflação importada, decorrente de uma depreciação de 50% do novo escudo (aliás um valor excessivo), seria (50% x 13%) = 6,5%. Octávio Teixeira estima (aqui), para uma depreciação de 30%, uma inflação importada de 8-9%. Jacques Sapir estima, no primeiro ano, uma inflação importada de 25,5% (aqui) que rapidamente se reduz. Quaisquer que sejam os pressupostos e o método da estimativa, falar em 50% de perda do valor dos depósitos é simplesmente um absurdo.

Por outro lado, não é forçoso que a saída do euro implique uma corrida aos bancos, tudo dependendo da estratégia adoptada pelo país que sai (ver texto abaixo), do que estiver a acontecer na zona euro e da cooperação que for possível estabelecer entre vários países. Na realidade, a corrida aos bancos já está a acontecer agora. Mais, o receio de uma corrida aos bancos em Chipre e noutros países está a obrigar a UE a tomar medidas muito mais drásticas do que as que defendi no meu texto para o Congresso Democrático das Alternativas. Termino com alguns parágrafos desse texto:

"Numa sexta-feira à noite, pouco depois das 22h, e após breves consultas com os restantes órgãos de soberania do Estado, o Primeiro-Ministro fala à nação e, com um discurso inspirador de tranquilidade e confiança no futuro, invocando um estado de emergência nacional, anuncia que o país abandona o euro e introduz um novo escudo na paridade de um para um sob regime de câmbio flutuante. Assim, todos os preços e contratos realizados ao abrigo do direito português são convertidos no mesmo valor em escudos. Nesse mesmo discurso, dirá que o Estado português passa imediatamente a utilizar a nova moeda fazendo pagamentos aos funcionários públicos e fornecedores em escudos e recebendo impostos, taxas e outras receitas também apenas em escudos. Mais ainda, dirá aos portugueses que as contas bancárias estão garantidas e permanecem em euros embora, por razões de natureza informática, os bancos tenham de encerrar por três dias. Finalmente, anunciará o fim da política de austeridade com a reposição dos vencimentos retirados aos funcionários públicos e pensionistas, uma revisão do sistema tributário e das contribuições para a segurança social segundo princípios de justiça, um programa de investimento em renovação urbana e um programa de criação directa de empregos.
(...)
Finalmente, vejamos alguns problemas levantados pelos defensores da permanência do país na zona euro a qualquer preço:

- É errado afirmar que uma desvalorização da nova moeda em 40% levaria a um aumento dos preços na economia também de 40%. O que aumenta no imediato é apenas o preço dos bens importados. A sua repercussão no valor da inflação depende da estrutura da economia e, em particular, da estrutura do cabaz de bens e serviços que serve de base ao cálculo do índice de preços no consumidor. Um estudo feito para a Grécia por dois académicos (T. Marolis & A Katsinos, 2011) estima que uma depreciação de 50% da nova dracma levaria no primeiro ano a uma subida do nível geral de preços de 5-9%, enquanto a competitividade aumentaria 37-42%.
- Da mesma forma, é errado afirmar que as poupanças das famílias seriam reduzidas em 40%. As poupanças seriam convertidas à taxa de 1:1 tal como todos os preços de bens e serviços pelo que, no imediato, não há qualquer desvalorização interna. Será o nível da inflação (a controlar pelo governo) que determinará o montante das perdas do poder de compra interno. Em todo o caso, deve assumir-se que a saída do euro tem custos para os aforradores, mas que serão temporários e, na medida em que vêm associados à recuperação dos empregos e rendimentos com a nova política económica, são custos moderados."

14 comentários:

CLASSIFICAÇÃO DE RISCO disse...

Parabéns! Texto mto reflexivo

João Carlos Graça disse...

Obviamente tens razão, Jorge.
As objecções do Francisco Louçã parecem-me cada vez mais sobretudo evidenciadoras dum ambiente geral de grande desorientação.
Mas ele, pelas suas intervenções, também não ajuda nada.
Abraço.

Xavier Brandão disse...

E o BE já começa a irritar com o seu europeísmo pacóvio, colocando sempre a solução pela via nacional (saída do euro, etc.) como sendo um retrocesso e um nacionalismo, quando, simplesmente, na "Europa" não é possível qualquer solução de esquerda, e não querer discutir a solução que, de qualquer modo, se vai impôr é o mesmo que não dar horizonte nenhum às pessoas.

Cada vez mais, viro-me para um voto PCP, que estão certos pelas razões erradas ("governo patriótico...").

A solução nacional não é escolhida por uma questão de princípio ou qualquer patriotismo, mas porque é aquela que efectivamente está à mão. E não impede que haja reconstrução de relações internacionais com países que seguiriam a mesma via.

Anónimo disse...

Perguntas: e se Portugal saisse do Euro não iriam outros paises sair tb? E a nova moeda desses países não desvalorizava tb? E não seriam paises com "grandes relações comerciais" com Portugal? E assim a "taxa de inflação importada não seria ainda menor"? Quem realmente tem medo da saída do euro?

Sérgio Pinto disse...

Bom texto! Apenas uma questão/pedido: podia indicar qual é o estudo de T. Marolis & A Katsinos a que se refere (título) e/ou onde está disponível online? Obrigado.

brancaleone disse...

Parabens ao autor/autores deste blog! Aproveito para colocar aqui o comentario que deixei na fila de moderação do site esquerda.net e que acho não será publicado.

"Peço desculpa não só por intrometer-me neste debate, mas tambem pelo meu portugues. Sou italiano mas moro há 11 anos em Portugal e obviamente estou preocupado pelo futuro deste pais tal como do meu.
Acho correctos os primeiros 3 pontos desta analise embora no ponto 2 iria mudar "gente perigosissima" por "gente que está, pela própria arquitectura institucional europeia, longe de qualquer tipo de controle democratico".
Ao 4ºponto voltei à realidade... e pensei no secretário do PD Italiano, Bersani, que tem "argumentos" parecidos contra a saida italiana do euro não menos brilhantes... O mais famoso é: "voltar a lira significaria ir às compras com o carrinho de mão cheio de notas".
Pergunta: Quem são os responsaveis economicos dos partidos de esquerda (e não só) europeus? Os bancos?

O Sr. Francisco Louçã que afirma que as poupanças dos portugueses perderiam metade do valor por causa da desvalorização da moeda, costuma ir às compras em Frankfurt, ou sou eu que estou enganado e compro aqui em Portugal grelos que vem da Finlandia?
O Sr. Bersani, e muitos outros politicos europeus, viram pessoas com carrinhos de mão nas ruas, em 1999, quando o Euro, que ainda não estava nos nossos bolsos mas era usado para pagamentos internacionais (ex: petroleo, matérias primas etc...) desvalorizou-se quase 30%?

Peço desculpa mas nestas afirmações não consigo encontrar boa fé.
Posso até aceitar que a maioria dos deputados ou activistas de um partido qualquer não percebam nada de economia, mas que o grupo dirigente faça "terrorismo mediatico" é inaceitavel.

A "esquerda" europeista na Itália está a suicidar-se dentro desta contradição: Esquerda e €uropa (Uma ideia bem diferente daquela que nos foi vendida como promessa de bem estar e crescimento).
As ultimas analises dos responsaveis economicos do PD italiano estão mais correctas e explicitas, e não podia ser de outra maneira. Os ultimos acontecimentos politicos e economicos internos (sucesso do movimento 5 estrelas, pacto fiscal, fundo salva-estados ) e externos (crise de Chipre, mas tambem de Slovenia e França) não deixavam alternativas: aos eleitores já não era possivel esconder por completo as razões e os mecanismos desta crise, embora os espantalhos da divida publica, da corrupação e da evasão fiscal, continuem a ser agitados nos midias.
Mas a solução é sempre a mesma "porcaria": "MAIS EUROPA!", europa fiscal e politica!!!.
Como se fizesse algum sentido na situação actual achar que o povo alemão, que nem sequer beneficiou do enorme superavit comercial acumulado nesta decada pelo seu proprio pais, possa aceitar de ajudar com os seus impostos aqueles que politicos e imprensa locais descreveram como os porcos improdutivos do sul, os PIIGS que viveram e gastaram alegramente às custas da divida pública...
Na Itália, pelos mesmos motivos, temos as "camisas verdes" dos independentistas do norte, na Espanha desconheço a cor das camisas catalãs, na Alemanha as camisas pardas não tardarão a aparecer...

As "questões incomodas" deveriam ser outras e deveriam partir de dois principios, um "democratico" e outro "liberal".
O principio democratico que o poder monetario não pode ser um quarto poder independente do controle eleitoral.
O principio liberal, ou melhor "natural", da lei da procura e da oferta que os liberistas europeus (ou seja o capitalismo sem risco de falencia) decidiram deixar de aplicar à moeda.
As esquerdas dos PIIGS estão prontas para uma mudança coordenada de paradigma? Ou querem, cada-uma no proprio pais, desaparecer sob o peso de uma historia de colonização financeira?

Cumprimentos"

José M. Sousa disse...

Apoiado, Brancaleone!

José M. Sousa disse...

Return to devalued drachma, cost-push
in
ation and international
competitiveness

blackmilk disse...

A propósito deste tema, recomendo a leitura de um artigo mo i de hoje, 25 de Março, (que certamente será apontado por Jorge Bateira) onde se fazem as mesmas perguntas a seis economistas. Acho esclarecedor e dá uma lição ao F. Louçã, de quem gosto muito. Para a próxima é melhor não fazer as contas em cima do joelho

Ricardo Reis disse...

"É errado afirmar que uma desvalorização da nova moeda em 40% levaria a um aumento dos preços na economia também de 40%. O que aumenta no imediato é apenas o preço dos bens importados."

Ou seja, de bens tão triviais como medicamentos e combustíveis, dos quais podemos prescindir por uns meses.

Eu não sou economista, mas se aumenta o preço dos combustíveis e de toda a matéria-prima importada, aumentam os custos de produção de produtos nacionais, pelo que o preço de bens não importados também aumentaria quase de imediato.

Portanto, parece-me que não basta conhecer o consumo importado das famílias para se estimar a inflação, mas sim o peso das importações na formação de preços de todos os bens, importados e não importados.

Ricardo Reis disse...

Quanto ao discurso do hipotético Primeiro-Ministro, as medidas por ele anunciadas seriam imediatamente escrutinadas por vários analistas e comentadores na televisão e arrasadas por alguns deles, criando um clima de pânico entre a população que apagaria a eventual confiança e tranquilidade transmitida no discurso.

Jorge Bateira disse...

Caro Ricardo Reis,

Quando tiver tempo para ler o contributo de Octávio Teixeira (OT)vai perceber (mesmo não sendo economista) que a totalidade dos efeitos da depreciação sobre o nível de preços - efeitos directos, indirectos e induzidos - já foi tida em conta nos valores que propõe porque OT teve acesso ao valor do efeito multiplicador calculado a partir do sistema de matrizes input-output. É a consideração da totalidade desses efeitos que faz a diferença entre o meu número e o dele.
Cumprimentos.

Anónimo disse...

Boa tarde

Sou atento leitor do blogue e tendo lido muito sobre anteriores intervenções (ou programas de ajustamento estrutual) do FMI, não posso deixar de estar de acordo com a opinião apresentada no blogue sobre a saída do euro(ainda para mais com a CE e BCE a ultrapassar pela direito o próprio FMI). Tenho apenas duas questões a colocar.
Como médico-veterinário dedicado exclusivamente à produção animal, gostaria de perceber se vocês têm ideia do que representará do ponto de vista agro-alimentar a nossa saída? Em muitas áreas da nutrição básica estamos literalmente dependentes! Sabem quais são as fileiras em que temos uma taxa de cobertura das nossas necessidades inferior a 50%? Tenho alguns dados sobre isto, muito por culpa do meu dia-a-dia, e posso dizer que é algo que me preocupa muito.
A segunda questão é se acreditam mesmo que é possível evitar uma corrida aos bancos? Mesmo considerando o texto escrito pelo Jorge Bateira e as sugestões por ele apresentadas no que toca à forma como os responsáveis políticos se deveriam dirigir ao país, não acredito que isso seja possível. As questões que aqui são colocadas estão longe de serem compreedidas por parte da grande maioria da população e no fim a irracionalidade acaba por aparecer, ou seja, no curto prazo o que o louçã diz é verdade. O que não significa que não devamos passar por isso para retirarmos as vantagens no longo prazo.

cumprimentos,
Hugo Duarte José

Jorge Bateira disse...

Caro Hugo

Quanto à questão da inflação provocada pela desvalorização inicial, o que conta é o valor do multiplicador para o cabaz de bens e serviços usado pelo INE. Como é evidente, para cada família há uma estrutura específica de consumo e, portanto, uma inflação específica. Por outro lado, esse impulso inicial da depreciação é único e os seus efeitos tendem a diluir-se no tempo.
Outra coisa é o grau de dependência de matérias-primas e bens de equipamento importados que, com a desvalorização, ficam mais caros. Não creio que os nossos fornecedores suspendam o abastecimento por termos deixado o euro. O que importa é que haja dólares para lhes pagar. Contudo, também sabemos que a recessão já nos levou a um equilíbrio das contas externas, ou seja, o problema quase não se coloca. Ainda assim, recordo que o FMI concedeu crédito comercial à Argentina mesmo depois da bancarrota e incumprimento no pagamento da sua dívida ao próprio FMI. Hoje, quer pela influência do Brasil dentro do FMI, quer por via de um empréstimo do Brasil garantido pelo ouro que ainda temos, não vejo problemas de financiamento externo de curto prazo para abastecimento do país em bens essenciais.
Quanto à corrida aos bancos, se tiver lido a totalidade do meu texto viu que também defendo o controlo dos movimentos de capitais. É inevitável nessa emergência, e é imprescindível em permanência para aumentar a eficácia da política económica, embora não seja de esperar qualquer motim porque não se trata de aplicar um corte nos valores dos depósitos nem de manter os bancos fechados por mais de três dias. Trata-se de assegurar a transição para a nova moeda com a máxima garantia uma vez que os bancos passam a ser públicos.

Obrigado pelos comentários.