segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Marx, não Malthus


A propósito da actual crise dos preços dos alimentos, argumenta-se por vezes (inclusive nas nossas caixas de comentários) que esta mais não é do que um reflexo das condições da oferta e da procura no longo prazo. Segundo esta linha de raciocínio neo-malthusiana, o aumento dos preços dos alimentos é algo de inevitável dada a finitude dos recursos do planeta e o crescimento inexorável da população mundial. A actual crise – com todas as repercussões a que já estamos a assistir ao nível da incidência de fome e da emergência de conflitos - seria apenas a pálida antecipação de um futuro apocalíptico em que a humanidade finalmente pagará o preço da sua incontrolável prolificidade.

Acontece que esta linha de raciocínio é falsa. Primeiro que tudo, o crescimento da população não é inexorável. Embora a população mundial deva continuar a crescer durante ainda mais algumas décadas em resultado da inércia demográfica, é hoje em dia praticamente certo que a queda abrupta da fecundidade a nível mundial (sim, inclundo nos países em desenvolvimento, onde o número médio de filhos por mulher passou de seis para três nos últimos quarenta anos) deverá garantir a inversão da tendência de crescimento na segunda metade do século XXI.

Em segundo lugar, e mais importante, a produção alimentar mundial também tem crescido – na verdade, mais depressa do que a população. O gráfico em cima, construído a partir de dados da FAO, ilustra o crescimento da produção total mundial de arroz, milho e trigo (a título de exemplo) entre 1961 e 2009. Dividindo pela população mundial em cada ano, verificamos que a produção anual per capita de arroz passou de 70kg em 1961 para 99kg em 2009; a de milho de 67kg para 120kg; e a de trigo de 72kg para 100kg.

Nem a fome e desnutrição a nível mundial, nem a crise dos preços dos alimentos se devem à escassez actual ou futura de alimentos. A actual crise dos preços dos alimentos resulta principalmente da amplificação especulativa de flutuações de curto prazo e não tem nada a ver com a tendência de longo prazo ao nível da produção per capita de alimentos. Quanto à fome e à desnutrição globais, resultam, mais do que de qualquer outra coisa, do facto do acesso à alimentação por parte de uma parte crescente da população mundial ser mediada pelo mercado, no contexto de uma distribuição do rendimento extremamente desigual e iníqua.

Mas para entender melhor estas últimas questões, as categorias de análise mais úteis são as de um outro economista clássico que não Malthus…

19 comentários:

Anónimo disse...

Irrita-me profundamente ouvir comentadores(dos mais variados quadrantes) repetirem mil vezes a mesma coisa quando esta não é verdade.
Será que a vaidade de ter uma opinião é maior que a vergonha de comunicar uma mentira?

Nuno disse...

Estou um bocado perplexo por se atacar- acertadamente- uma simplificação excessiva de um problema, os preços das commodities alimentares, com uma simplificação excessiva oposta- erradamente.
Os preços estão em escalada por vários motivos, que incluem:

- o aumento, não da população em bruto mas da população com determinados níveis de consumo, nomeadamente China.
É curioso que se ignore outros aspectos interessantes do relatório da FAO, nomeadamente que mesmo um acréscimo de 50% na produção não é capaz de suportar metade da China a consumir perto (não o mesmo) do que o consumidor ocidental médio. Isto tanto vale para fêveras de porco, algodão ou aço. Independentemente do preço, eles estão a comprar.

- Ignoram-se as crises ambientais que provocam rupturas a curto-prazo. Isto é, a produtividade da Rússia nesta década se calhar até vai ser a maior de sempre mas está há um ano a proibir exportações por causa de problemas com a colheita anual de 2010.
Basta acontecer uma seca na Austrália ou uma seca no Brasil que estoura a estabilidade dos mercados agrícolas, portanto reduzir o problema à produtividade é extremamente redutor.
Em Portugal andamos às turras quando meio mundo se apercebeu desta volatilidade (o verdadeiro factor) e está a criar stocks de cereais, inclusive os nuestros hermanos. A presidente do observatório agrícola disse que este governo eliminou as nossas reservas de cereais(somos o único país da OCDE sem quaisquer reservas- a contar com caridade europeia?), suponho que se as coisas derem para o torto "arremedia-se" na altura.

- O mercado das commodities é global e industrializado, isto é, depende fortemente da economia de produção e de transporte em grande escala. Estes dois factores dependem quase exclusivamente do preço de um único combustível, o amigo energeticamente denso crude. Quando os mesmo fenómenos de procura excepcional esbarram com uma produção global de crude em queda (segundo a IEA desde 2006 que a procura anda a ultrapassar a oferta) as commodities alimentares levam pela tabela:
http://www.oilprice.com/uploads/AB727.png
Não adianta que os métodos sejam ultra-produtivos se dependerem de um recurso finito que é o petróleo.
Mais uma vez, um argumento redutor.

- Finalmente, os especuladores entram a bordo para agravar tudo isto, após estar clara a tendência de subida. O Krugman (que tem uma série de posts muito interessantes sobre os preços alimentares) atribui aos especuladores cerca de 20-30% dos aumentos, procurando ir à borla desta subida para rapar mais umas migalhas à custa de um mundo esfomeado. Infelizmente o Krugman também é daqueles que acha que "isto vai ao sítio"- o clima estabiliza, a tecnologia resolve e o petróleo vai brotar de Belém a Bombaim e continuaremos todos na aldeia global a ir comprar o Shangri-La ao fim de semana.

Não é somente um problema de consumo/população nem um problema especulativo.
Infelizmente está toda a gente agarrada a paradigmas de estados-providência sustentados por crescimento baseado no consumo e comércio global ou de ideologias ultra-liberais que acreditam numa espécie de casino/mercado livre.
Ambas as visões, como um tubarão, precisam de crescer e andar para a frente senão morrem, o que as torna estruturalmente vulneráveis, como se está a ver todos os dias.

A era destas duas forças acabou, e isso não é necessariamente catastrófico mas é um desafio, inclusive para economistas que se atrevam a pensar o impensável.
Era um desafio que colocava aos Ladrões.

Lowlander disse...

Gostaria de apontar ao autor deste post uma importante nota de precaucao na leitura destes dados porque apesar da producao ter aumentado o principal problema e que na decada passada ocorreram 2 importantes fenomenos que influenciaram a procura de bens alimentares de forma muito substancial:
- Paises em desenvolvimento que aumentaram substancialmente o seu consumo de carne. a producao de 1 Kg de carne frango (a fonte de proteina animal de longe mais barata do mundo) necessita de pelo menos 2 kg de racao. Se passarmos para ruminantes como por exemplo bovinos entao passamos para 8kg de racao para cada Kg de carne.
- O uso de culturas alimehtares para producao de biocombustiveis (como nos EUA) ou a diversao de terra aravel para a producao de culturas nao alimentares para producao de biocombustiveis que e um factor de longe muito menos substancial que o anterior mas que tambem coloca uma pressao extra na procura de terra aravel e no uso da producao agricola existente.

A especulacao tem aqui um efeito amplificador creio mas existe subjacente um real problema de ajustamento dos sistemas de producao agricola a, nao tanto um aumento de populacao mas antes novos padroes de consumo.

Nuno disse...

Como diz o lowlander, esta procura acentuada dos cereais por causa do aumento exponencial e alteração dos padrões de consumo gera algumas situações paradoxais- em Portugal, por exemplo, somos quase autónomos na produção pecuária mas isto é ilusório porque já quase não usamos pasto e silagem própria mas rações de cereais importadas.

O resultado desta procura acentuada, também provocada pelo consumo de carne é que... compensa cada vez menos produzir carne em quantidades industriais.
Neste momento os produtores pecuários estão a importar rações no vermelho, até haver um reflexo nos preços.

Os custos dos combustíveis já estão a afectar as cadeias de abastecimento de hortícolas e bens alimentares e vamos ter uma paralisação das transportadoras no final do mês de Março igual à de 2008. Hoje o barril de crude subiu 5 dólares em 12 horas...

Pedro Viana disse...

O Alexandre Abreu esquece-se que a trajectória da agricultura actual, de tipo industrial, é insustentável, devido à sua dependência total do petróleo e fertilizantes minerais (em particular o fósforo). Já para não falar da degradação acentuada do solo de várias regiões agrícolas importantes (por exemplo, nos EUA, Rússia, China). Informe-se melhor. Ainda não aprendeu que os relatórios de "veneráveis" instituições, como o FAO, muitas vezes servem mais para manipular quem os lê do que para informar?

João Carlos Graça disse...

É espantosa a quantidade de vezes que é necessário repetir estas coisas - que todavia deviam ser óbvias - antes que o peso dos preconceitos se vá esfumando e elas se tornem realmente evidentes.
("How many roads must a man walk down/ Before they call him a man")
http://www.bigeye.com/blowing.htm
Obrigado, Alexandre

Nuno disse...

O único preconceito que vejo aqui é a consideração da produção agrícola como uma actividade cornucópica que produz output magicamente, sem dependência de factores ambientais, da indústria extractiva (energia e inputs químicos) ou vulnerável à elementar lei da oferta e procura.

Ricardo disse...

Controle-se o petróleo e domina-se as nações,controlo-se os alimentos e domina-se os povos.Quem disse isto?Seu nome começa com a letra K e é figura de proa no clube B.
Tudo o resto é palha para intelectuais e manipulação da opinião publica.

Anónimo disse...

Check this out:

http://nwoobserver.wordpress.com/2011/02/16/international-speculation-and-rising-food-prices/

Contra.facção disse...

Li o post, li os comentários (a maioria em economês) inter pares, mas uma coisa eu já ouvi, desde há anos e recentemente, em que o Presidente da FAO dizia e continua a dizer que, o mundo produz mais 50% do que o necessário para alimentar toda a população do planeta.
O Banco Mundial veio alertar para o aumento dos custos dos alimentos, sobretudo de 2 dos cereais mais importantes a nível mundial, que estão cada vez mais caros: o valor do trigo aumentou 100% desde Junho e o do milho 73%.
Podem traduzir esta realidade, mesmo em economês e justificar, dentro das teorias do mercado, o aumento dos preços, com o aumento da produção?
Isto de não se perceber de economia, ajuda a uma visão de merceeiro, mas nem todos os merceeiros são parvos...

Alexandre Abreu disse...

Obrigado a todos pelos comentários especialmente informados e interessantes.

@ Nuno: o que eu digo no post em relação às causas da crise dos preços dos alimentos é que resultam da "amplificação especulativa de factores de curto prazo" e não de um desfasamento malthusiano entre oferta e procura de longo prazo. Isso não é contraditório com o que escreve, pois ao falar de factores de curto prazo estou a referir-me à variação do preço do petróleo e aos choques meteorológicos. Acontece é que esta volatilidade, que já existia antes, passou a ser muitíssimo amplificada nos últimos anos na medida em que o mercado de derivados (e, indirectamente, o mercado spot) passou a ser decisivamente determinado por especuladores sem relação com a compra e venda 'real' de alimentos. Falei acerca disso aqui: http://ladroesdebicicletas.blogspot.com/2010/11/o-nexo-financa-fome.html .
Por outro lado, que haja um aumento do consumo total ou per capita de cereais na China e India em resultad do crescimento económico é posto em causa, por exemplo, aqui:
http://www.wdm.org.uk/sites/default/files/Commodity%20speculation%20and%20food%20crisis.pdf .
Entretanto, reconheço que é pouco correcto subsumir tudo na categoria "factores de curto prazo", como faço, dado que nalguns casos estamos a falar de tendências (afectação de terra a agrocombustíveis e aumento do preço do petróleo). Mas quando falamos da actual *crise*, como quando falámos da *crise* de 2008, aquilo de que estamos a falar é sobretudo de *volatilidade* amplificada pela especulação (afinal de contas, o preço do petróleo já caiu bastante entretanto, para mais recentemente voltar a subir, contribuindo para a actual crise). Em todo o caso, penso que estamos de acordo no essencial - e especialmente no que se refere à importância de políticas que reforcem a soberania alimentar, como o apoio à produção nacional e a constituição de reservas estratégicas.

@ Lowlander: não há dúvida que essas são duas tendências muito importantes, mas a meu ver não afectam a validade do argumento - além de não serem novas... Por exemplo, a par do aumento da produção de cereais ilustrada no post, os dados da FAO acessíveis através do mesmo link mostram que a produção mundial de animais passou de 70 milhões de toneladas em 1960 para 280 milhões de toneladas em 2009. De qualquer forma, a questão que procuro sublinhar no post é que não há uma escassez de alimentos em termos absolutos ou por motivos técnicos, mas sim uma afectação profundamente desequilibrada da produção mundial de alimentos em que coexistem o desperdício em grande escala e a fome de milhões (it's the political economy...)

@ Pedro Viana: não me esqueço disso, não. É precisamente pelas profundas desigualdades que o caracterizam (numa questão tão essencial como o acesso aos alimentos) e pela relação predatória que tem com a natureza que o regime alimentar característico do capitalismo neoliberal é tão perverso e insustentável. Mas essa é uma questão de economia política (em última instância, capitalismo e anti-capitalismo), não um atributo essencial da relação quantitativa entre a população humana e a dimensão do planeta. Daí o título do post: Marx, não Malthus.
Em relação às manipulações da FAO e outras organizações internacionais, assinalo que o que eu usei foram os dados da FAOSTAT, não as análises constantes dos relatórios. E supôr que os dados são manipulados deliberadamente e em grande escala sem que haja whistleblowers já é um bocadinho zeitgeisty demais para o meu gosto. A realidade do capitalismo historicamente existente é suficientemente sinistra sem que seja preciso de um directório a orquestrar todo o processo...

Cumprimentos.

Alexandre Abreu disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Nuno disse...

Caro Alexandre Abreu,

Agradeço a resposta- como diz não é contraditório o que se está a dizer: a especulação é um factor de agravamento com requintes de crueldade.
Mas a especulação não cria estas tendências mas parasita-as cinicamente.

Eu só apontei para a complexidade das origens desta volatilidade. Desculpa a especulação selvagem? De forma alguma. Permite ignorar todos os factores físicos que intervêm no descalabro alimentar que está a acontecer, quando só se pensa no potencial produtivo da tecnologia agrícola? Também não.

Não sei qual o fundamento para se dizer (no relatório indicado) que a China não está a aumentar o consumo per capita de cereais quando todos os observatórios agrícolas apontam que inundou os mercados de rações até Agosto de 2011 com encomendas (à espera de secas? de barril de Brent a 140$?).
É também conhecido que a China (e muitos outros) estão desde a queda de preços de 2009 a criar reservas monstruosas de cereais cujos inventários estão em segredo de Estado.
Uma das principais razões do aumento efectivo de importações de cereais?
Este "bébé" que criaram quase do zero nos últimos 3 anos, num plano interno dirigido para a autarcia alimentar no ramo pecuário: http://economistonline.muogao.com/wp-content/uploads/2010/04/pigchart.jpg

Estamos de acordo em relação ás reservas estratégicas, num momento em que só falamos de submarinos quando pensamos em segurança nacional. A nossa falta de qualquer reserva estratégica tornou-nos no único "palhaço" europeu que ficou sem açúcar quando
a cana estourou 80% em 3 meses porque não temos reservas de beterraba. Nas rações já está a acontecer o mesmo, e se acontecer com o arroz ou o trigo?

Podemos e devemos denunciar o papel da especulação selvagem mas isso não nos permite descartar todas as outras causas, inclusive aquelas que estão ao nosso alcance resolver.

Lowlander disse...

Caro Alexandre:

Obrigado pela resposta mas tera de me perdoar por a considerar insuficiente.
Tem muita razao ao dizer que se olharmos de simplesmente para a aritmetica a producao mundial de alimentos chega e sobra pra alimentar a Humanidade e que o que se passa e obviamente uma afectacao inadequada dos recursos para tal. Concordamos neste preambulo.
O problema e que aceitado o referido acima como um facto voce nao pode menosprezar, negligenciar e portanto nao agir em relacao aos factores extra de stress que estao a ser introduzidos no sistema, leia-se a alteracao de padroes de consumo que estao a criar pressao extra na capacidade de produtiva.
Deixe-me tambem acrescentar que mais uma vez escolhe usar indicadores que considero pouco fiaveis porque necessitam de muita precaucao no seu uso, nomeadamente, menciona a producao mundial de produtos de origem animal de 60 a 2009. Ora essa janela temporal esconde a evolucao nao homogenia desta producao, que tem aumentado muito mais na ultima decada que nas anteriores.
Em segundo lugar esse indicador inclui toda a producao de origem animal que e muito heterogenia e nao muito comparavel entre si, por exemplo a producao de leite bovino nao necessita dos mesmos inputs que a producao de ovos ou carne de porco. Dai que acho preferivel usar como indicador o consumo de carne per capita por ano que e um indicador que mede uma variavel muito mais homogenia e que tem de facto sofrido uma forte evolucao nesta ultima decada.
Nao esquecer que a mais de 2/3 da producao mundial de cereais NAO e usada directamente para consumo humano e sim para producao animal.

Em sumario: sera que os arranjos institucionais economicos levam a uma forte ineficiencia na afectacao da producao alimentar a quem precisa dela. Sim, incondicionalmente.
Mas neste contexto de um sistema de producao alimentar ineficiente, as alteracoes de padroes de consumo da ultima decada esta a a criar, de facto, a meu ver, uma real escassez global de alimentos.

Permita-me reparar enfim que o Krugman se debrucou recentemente sobre esta mesma tematica e diz que nao encontra sinais de grande especulacao no mercado de alimentos, nao existem dados a indicar acambarcamento (com a notavel excepcao de alguns stock de cereais detidos por pequenos agricultores chineses que em conjunto pode estar a ter algum efeito no preco), nao existem sinais de falhas de producao suspeitas. Existe , isso uma tendencia de medio/longo prazo de real estreitamento entre a capacidade produtiva e procura mundial.
E olhe que o Krugman nao se coibiu no inicio dos anos 2000 de gritar bolha especulativa no caso da electricidade Californiana ou em 2005 ou 6 acerca da bolha especulativa imobiliaria.

Cumprimentos.

Alexandre Abreu disse...

Caro Lowlander,

Obrigado por mais este interessante contributo para o debate e peço desculpa tanto pela demora na resposta desta vez como por, realmente, não lhe ter chegado a responder em condições da última vez.
Começo por aquilo em que lhe dou inteira razão: o modelo agroindustrial e as 'revoluções verdes' que têm permitido aumentar enormemente a produção alimentar mundial não são sustentáveis devido à dependência de combustíveis fósseis, aos efeitos sobre os solos e sobre a biodiversidade, à propensão de emergência de zoonoses, etc. São necessários modelos agropecuários e regimes de produção alimentar menos predatórios, mais locais, mais democráticos, mais éticos e com menor concentração de mercado.
Mas a deletéria produção em massa da agroindústria capitalista e a micro-produção mediante o uso de técnicas rudimentares não são as únicas alternativas. É possível intensificar (por oposição a extensificar) a produção alimentar através do recurso à cooperação, partilha de conhecimento, economias de escala e utilização da tecnologia (incluindo a genética) em moldes distintos tanto do agrocapitalismo, como do colectivismo estatal, como do primitivismo neo-populista. A meu ver, uma tal agricultura 'socialista' tem um carácter sobretudo cooperativo e localista, mas também tem à sua disposição um manancial de meios e conhecimentos técnicos que, estou convicto, permitem conciliar a satisfação das necessidades alimentares mundiais com o imperativo da sustentabilidade (reconhecendo que há aqui da minha parte um elemento de 'fé' que decorre inevitavelmente da contrafactualidade do exercício...).
Agora aquilo de que discordo, e que é a hipótese segundo a qual a alta dos preços alimentares nos últimos dez anos - especialmente aquando das crises de 2007-2008 e da actualidade - constitui um reflexo de um desajustamento de longo prazo entre a oferta e a procura de alimentos. Primeiro, porque, sobretudo de meados da década de 2000 para cá, não temos estado apenas perante um aumento gradual da *tendência* dos preços, mas perante um aumento da tendência a par de um aumento brutal e sem precedentes da volatilidade. Não há nenhum factor 'real' - meteorológico, afectação de terras, passagem para o consumo de proteínas - cuja magnitude fique sequer perto de explicar as flutuações a que temos assistido. Mas a entrada de capital financeiro especulativo no mercado de futuros assentes em mercadorias alimentares, essa sim, disparou ao longo da última década em resultado da liberalização da legislação norte-americana sobre derivados assentes em commodities. E são os 'caprichos' e 'espíritos animais' destes especuladores, que aliás têm reflectido de forma notavelmente síncrona a escassez e abundância de liquidez associada ao antes, durante e depois da crise financeira, que explicam os altos e baixos dos preços mundiais das commodities em geral e dos alimentos em particular. O mesmo se tem passado com o preço do ouro, cuja tendência e flutuações ao longo da última década são idênticos aos dos produtos alimentares, sem que o ouro esteja sujeito aos factores 'malthusianos' de que temos estado a falar:
http://www.goldprice.org/
gold-price-history.html#
20_year_gold_price

(continua em baixo)

Alexandre Abreu disse...

E quanto ao argumento do Krugman? A meu ver, está errado por dois motivos. O primeiro é que pressupõe que o único mecanismo através do qual um aumento dos preços no mercado de futuros pode reflectir-se no mercado spot é através do açambarcamento/aumento dos stocks. Isso não é verdade - os mercados de futuros são também utilizados também para aquilo que se designa pela função de 'price discovery', ou seja, a determinação directa do preço no mercado spot (que, por exemplo, pode ser fixado como "o preço no mercado de futuros a 6 meses menos x%). Ou seja, há uma ligação directa entre o mercado de futuros e o mercado spot que não requer acumulação de stocks.
O outro motivo da minha discordância tem a ver com a própria natureza dos stocks no caso específico dos alimentos, que muitas vezes correspondem a reservas estratégicas a mobilizar precisamente em fases de alta dos preços e maior risco de crises alimentares, descontentamento popular, etc. Devido a ser precisamente esta a razão de ser de parte dos stocks, é natural que se verifique uma diminuição dos mesmos devido a este motivo que contrabalança parcialmente o aumento motivado pelo açambarcamento especulativo. Ou seja, a variação dos stocks é um indicador muito imperfeito do impacto da especulação no mercado de futuros sobre o preço dos alimentos no mercado spot...
Abraços e obrigado.

Nuno disse...

É extremamente curioso que esteja a ter esta mesma discussão em dois "lugares" diferentes e ter exactamente a mesma reacção.
O interlocutor da direita neo-liberal culpa toda esta escalada de preços em jogos geopolíticos de uma imaginária conspiração pan-socialista China-Venezuela e da Irmandade Muçulmana, numa lógica de xenofobia de armário, e o comentador socialista faz disto tudo quase exclusivamente um jogo de ganância especulativa.

Cada um escolheu as razões mais fracas (não totalmente falsas, consoante os detalhes), projectando nelas a sua ideologia, para fugir precisamente ao mesmo facto inevitável.
O que me parece evidente é que é inadmissível para um economista de qualquer corrente política que existam limites físicos ao crescimento económico, porque ambas as concepções dependem desta inesgotabilidade para se sustentarem.

Acho espantoso que estejam em quadrantes opostos mas que tenham usado hoje precisamente a mesma defesa: "são uns neo-malthusianos luditas" e "a tecnologia resolve tudo".
Pois eu é que acuso, respeitosamente, a maior parte dos economistas de uma fé mística, muito pouco pragmática no futuro, sustentada por este conceito espantoso de que o capital natural é infinitamente substituível pelo capital artificial construído pelo homem.

Mas é bom ver que alguém começa a descortinar algo fundamentalmente diferente:

http://www.nytimes.com/2010/12/27/opinion/27krugman.html

Nuno disse...

"Não há nenhum factor 'real' - meteorológico, afectação de terras, passagem para o consumo de proteínas - cuja magnitude fique sequer perto de explicar as flutuações a que temos assistido. "

Agora esta frase é uma prova de alheamento bastante infeliz.
Por causa de um "não factor metereológico" temos o 3º maior produtor de trigo do mundo com o mercado de exportações fechado, mal o anunciou subiu o preço 70%.
Especulação?

Por causa de um "não-factor de consumo per capita" rações estão a desaparecer de stocks, não estou a dizer que são caras mas que desapareceram, não existem e tem-se que esperar meses. Não foram casa de nenhum especulador de certeza por isso dizia só isto: devia ser obrigatório visitar a China para todos os economistas.
Existe 1 bilião e meio de especuladores que em 5 anos passaram a comer, per capita, o triplo do gado que consumiam antes?

Não sei porque motivo se evita sequer nomear o elefante petróleo na loja de porcelanas da economia globalizada, que é um artefacto totalmente fabricado pela abundância de uma energia densa e económica para usar em meios de transporte.
É a especulação que reduziu a procura de novas jazidas e que duplicou os custos de produção para chegar a lençóis de alto-mar (6km!) e lamas betuminosas da Venezuela e Canadá enquanto circulam mais centenas de milhões de novos carros, camiões e navios de contentores todos os anos?

.........

Em relação à tecnologia agrícola que vai "salvar o dia" a única solução específica que mencionou foi a genética.
Esta de que fala é a mesma que vai actualmente apenas para ração de baixa qualidade, biocombustíveis, roupa barata e adoçantes mas que depois vai alimentar o mundo?
A que não deixam testar independentemente ou sequer rotular para consumo humano directo?
A mesma que está dependente de elevada mecanização, da monocultura e da indústria petroquímica e extractiva, e que é propriedade intelectual de 3 empresas é a que vai trazer uma agricultura socialista capaz de alimentar o mundo em desenvolvimento com baixos recursos?

Julgo que são questões legítimas.

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