Se há tema onde hoje existem maiores distâncias de opinião entre uma boa parte das elites políticas, económicas e jornalísticas e os cidadãos é sobre o papel do Estado. Para as elites, o estado deve reverter às suas funções tradicionais de manter a ordem e administrar a justiça. Bens colectivos, como empresas públicas, devem ser vendidos e serviços onde o estado até muito recentemente era o principal fornecedor (educação, saúde, segurança social) são melhor realizados por empresas ou pela mitica entidade, a sociedade civil. Por seu lado os cidadãos querem exactamente o contrário, mais Estado, não menos. Um recente inquérito relizado pelo Centro de Estudos de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa (CESNOVA), mostra que mais de 60% dos portugueses acha que o Estado gere melhor a saúde, os transportes, a segurança social e as escolas; 80% considera que o Estado devia investir ainda mais nestas areas; e 67% considera que o estado nao tem cumprido as suas funções.
Há fortes indicações de que do lado dos cidadãos se continua a reproduzir a histórica cultura política portuguesa de dependência, fraca autonomia e iniciativa individuais e débil cidadania. Toda a gente em Portugal, mostram os inquéritos, desde ricos a pobres, novos e velhos, urbanos e rurais, quer mais intervenção do estado. Isto, por si só, não implica necessariamente uma cultura de rejeição da competiçao, do mérito e do esforço individual. Mas em Portugal, estes aspectos parecem estar fortemente associados. Desde inícios da década de 1990 que há dados que mostram que ao contrário de outros paises onde o desejo de maior intervenção do Estado também é alto, em Portugal isso é acompanhado pela ideia de que o sucesso individual depende menos do esforço e mais da sorte e de conhecimentos (a célebre cunha).
Uma população assim, queixam-se as elites, não se moderniza. Prefere a segurança ao risco, a estabilidade, mesmo se remediada, à incerteza. E se o Estado suga todos os recursos e legisla de propósito para proteger estes pedintes (isto é, todos nós), deixa muito pouco para os empresários investirem. E se não há investimento, ficamos todos mais pobres, o que leva a que tenhamos que pedir ainda mais ajuda ao Estado. E assim foram, na verdade, os últimos 150 anos. Mas a não ser que consideremos que a cultura politica está separada do próprio processo político, ou que os portugueses nascem com gene estatista, convém primeiro saber as origens desta cultura.
Estes hábitos foram muito encorajados, por assim dizer, a partir de cima, pela acção e exemplo dos governantes. Elites e massas não estão só hoje de costas viradas. Em Portugal, sempre estiveram. Quando muitos países europeus estabilizaram sistemas liberais no sec. XIX, e a maioria, depois de 1918, regimes democráticos, as elites portuguesas atoladas em fraude eleitoral e brutalidade administrativa e policial só arranjaram forma de se entender com a criação do regime autoritário mais longo do sec. XX. E deram aos portugueses, em troca da liberdade e da cidadania, os favores do estado para proteger o pequeno emprego (para o povo) e relações de favoritismo pessoal com os administradores do Estado e o governo (para o empresariado e a burguesia). Aqui se consagrou, por exemplo, o conhecido costume de transferencia de ministros do sector publico para o privado.
Isto tornou o Estado incapaz de se desenvolver enquanto organização moderna e racional. Ao contrário de muito do que se diz por ai, o Estado português nunca foi grande. Isto não deve espantar. A própria lógica da democracia - liberdade de contestação e associação e a dependência maior das elites do apoio dos cidadãos para chegarem ao poder - leva à expansão de serviços pelo Estado, a maiores níveis de regulação da sociedade, a esforços de racionalização fiscal e a um maior interesse em estimular o crescimento com via à redistribuição. E ainda hoje o estado português é mais pequeno do que na maioria das democracias. Os impostos contam menos como percentagem do PIB; a percentagem do emprego no sector publico e as despesas com o Estado providência estão muito abaixo da media europeia.
É neste sentido que a cura proposta pelas elites está desajustada, pois pressupõe que participação organizada dos cidadãos e o protesto são contraditórios com desenvolvimento e progresso, que Estado e sociedade civil se opõem. E que o melhor governo é aquele que a partir de cima estabelece metas abstractas de progresso, executadas por burocratas agindo em nome de um interesse geral, esmagando pelo caminho nefastos interesses particulares, os famijerados grupos de pressão.
Na verdade, é exactamente o contrário. Investigação sobre as democracias da terceira vaga tem demonstrado que o maior rigor fiscal e orçamental atinge-se naqueles regimes onde o parlamento mais poderes tem em controlar o governo; e isso consegue-se quando os partidos têm amplo apoio popular, capacidade de mobilização e estabelecem relações directas com robustas organizações de interesse. A República checa é um caso recente. Mas o exemplo histórico do parlamentarismo inglês e da sua tradição de civil service vem à memória, em contraste claro com o gigantismo burocrático, hegemonia do poder executivo e despesismo orçamental da França de Luís XVI. Mais, onde a reforma pela via tecnocrática foi tentada, acabou por fracassar, porque as suas bases de apoio popular eram baixas. E voltou-se ao ciclo de despesismo e clientelismo entre Estado e os sectores mais parasitários do empresariado. Casos recentes foram o Japão e a Itália desde a década de 1990.
E é aqui que as opiniões dos portugueses acabam por ser encorajantes. Se a mudança tem de vir do sistema político, os Portugueses parecem dar de facto muito mais importância àquelas instituições que tendem a estimular a participação política e associativa, que servem como estruturas de oportunidade para exprimir interesses e ideias e como centros de debate, deliberação e controlo do poder executivo. Para 28.1% dos portugueses a presidencia da república é a instituição que melhor representa o Estado. E depois é o parlamento (17.5%). O governo e o primeiro ministro vêm atrás, em terceiro lugar (13.1%). Afinal também há – sempre houve? – bases atitudinais para a transformação de uma cultura política de súbditos numa cultura de cidadãos. Estão só à espera dos seus protagonistas políticos.
Versão revista de artigo publicado na Visão, 26/3/2009
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2 comentários:
"E ainda hoje o estado português é mais pequeno do que na maioria das democracias. Os impostos contam menos como percentagem do PIB; a percentagem do emprego no sector publico e as despesas com o Estado providência estão muito abaixo da media europeia."
em que fontes se baseou? Quer concretizar?
Cuidado com o que diz.
"E que o melhor governo é aquele que a partir de cima estabelece metas abstractas de progresso, executadas por burocratas agindo em nome de um interesse geral..."
Parece mais uma declaração politica de socialismo, do que o capitalismo e mercado livre das "elites" que vejo ser tão criticado por estas bandas.
Quanto maior for o peso do estado na economia e na vida das pessoas em geral, mais burocratas (os tais que supostamente dizem defender o interesse geral) tendem a surgir na máquina estatal, e com eles os favorecimentos, os conflitos de interesse e tudo o que mal trazem.
para terminar, reforço a pergunta do comentário anterior: em que fontes se baseou para avançar com essas afirmações?
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