O Público de hoje tem uma notícia intitulada «Crise leva crianças com fome ao hospital» (Lusa). Na entrada fica-se a saber que o hospital é o Amadora-Sintra, que as crianças em causa são sobretudo filhos de pais com baixa escolaridade e que o director-geral da Saúde admite alargar o horário das cantinas escolares.
É natural que se comece a imaginar um artigo que relacione a baixa escolaridade dos pais com menores rendimentos familiares disponíveis, e que venha à memória o que se sabe sobre os custos de um deficiente investimento na elevação do nível de escolaridade das populações, o que se sabe sobre as consequências para a saúde das desigualdades socioeconómicas ou o que se sabe sobre a necessidade de políticas e medidas públicas que invertam esses rumos desastrosos. Porque as desigualdades matam, mas antes disso moem.
Em 2008, um relatório da Organização Mundial da Saúde focava os «determinantes sociais da saúde» e demonstrava o papel que as desigualdades geradas pelas opções neoliberais tinham na sua degradação (o João Rodrigues, por exemplo, já escreveu sobre isto aqui e aqui). Um dos autores desse relatório, Micheal Marmot, assina aliás recentemente, com a investigadora Ruth Bell, um artigo no British Medical Journal («How Will The Financial Crisis Affect Health?», 1 de Abril de 2009), em que defende que a única forma de mitigar os efeitos da actual crise sobre a saúde passa por criar um novo modelo global que retire do centro os «mercados não regulados», a «privatização» e «menos acção pública», e que «consiga uma justa distribuição de poder, dinheiro e recursos» (excerto aqui).
As deficiências alimentares são uma espécie de epicentro da degradação da saúde. Instalam-se de forma surda, antes de se transformarem em fome pura. Na família, os filhos são os últimos a ser atingidos pela situação, tal como são os últimos cujos medicamentos deixam de ser comprados. Um médico, falando da crise dos anos oitenta, disse-me um dia que ela tinha tido duas fases: na primeira, as mulheres deixaram de ir ao ginecologista; na segunda, de levar os filhos ao pediatra. Foi nesse momento que ele se sentiu francamente angustiado.
A notícia do Público também angustia. A crise está a causar muita fome, mas no artigo todo o enquadramento parece estar ao serviço de uma narrativa que de facto se centra na denúncia de «casos de negligência». Ali insiste-se em miúdos «que chegam bem arranjados, mas mal alimentados», que têm mães com a «escolaridade obrigatória ou nem isso» e que estão mais preocupadas com a «imagem» do que com os «cuidados básicos». No meio de citações de técnicos, alinha-se um discurso que critica as famílias mais carenciadas por fazerem más opções no orçamento familiar e por viverem acima das possibilidades.
É claro que o consumismo, mesmo em famílias de baixos rendimentos, existe. As responsabilidades do neoliberalismo e da financeirização da economia na criação dessa realidade são conhecidas. Mas quando se fala, não de uma caso a denunciar, mas de crianças «de muitas famílias» que entram num hospital com fome – situações identificadas há um ano e meio –, não se pode fazer misturas. Não se pode confundir casos de negligência parental ou familiar, que são casos de justiça a exigir a intervenção das autoridades próprias (dos tribunais à assistência social), com situações de carência absoluta, talvez recentes, que decorrem de uma crise global. Estas situações exigem políticas públicas que protejam quem se vê em situações dramáticas e exigem medidas pensadas no longo prazo. Na melhor das hipóteses, essa confusão é uma leviandade. Na pior, é mais um episódio da culpabilização de quem sofre pelos seus próprios sofrimentos. E isso já não é só angustiante: é cada vez mais insuportável.
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