quinta-feira, 31 de julho de 2008

A propriedade: afinal é ou não um roubo?

Pierre Joseph Proudhon (1809-1865) o homem que ficou famoso por, entre muitas outras coisas, ter escrito em 1840 que «A propriedade é um roubo!», escreveu também em 1862:
A propriedade é a maior força revolucionária que existe e se pode opor ao poder (…). Onde encontrar uma potência capaz de contrabalançar esse potência formidável do Estado? Não há outra a não ser a propriedade (…). A propriedade moderna pode ser considerada como o triunfo da liberdade (…).
Contradição? Não, explica Proudhon, a frase de 1840 deveria ser interpretada no contexto: a propriedade que era roubo era a dos terra tenentes absentistas que viviam à custa do trabalho alheio.

Se o mesmo homem ao longo de uma vida se pode achar dividido entre dois significados de propriedade tão opostos – roubo e liberdade – o que fará a sociedade? A propriedade divide, separa. Pode ser uma coisa para quem a tem e outra muito diferente para quem não a tem. E é bem possível que ela, em si mesma, possa ser diferentes coisas consoante o modo como é definida e entendida.

Fenómeno da natureza a proprieade não é certamente. Se fosse não a discutiríamos, como ninguém discute os terramotos – se devem ou não existir e, em caso afirmativo, com que violência. Mas a propriedade – o que pode ser apropriado, quem pode apropriar e em que condições – isso discutimos. Desde sempre, ou melhor, desde que a propriedade existe.

terça-feira, 29 de julho de 2008

O fim da ronda de Doha?

«Ao fim do nono dia de negociações, a cimeira da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Genebra em torno da liberalização do comércio internacional terminou sem acordo» (Público). Excelente notícia. Como se argumenta neste estudo, os seus benefícios seriam muito reduzidos e os seus custos consideráveis para os países em vias de desenvolvimento. A ficção do comércio livre é na realidade o proteccionismo dos mais fortes (F. List). Além disso, o sistema de regras que estrutura as relações económicas internacionais no quadro da OMC já corre hoje o risco de atrofiar «o espaço de desenvolvimento» disponível para os países mais pobres adoptarem políticas e soluções de protecção económica selectiva. Tal como fizeram e fazem os países mais ricos. Por isso, qualquer acordo para aprofundar a liberalização seria sempre prejudicial para o desenvolvimento. Felizmente, já não estamos no tempo do imperialismo do «comércio livre». Habituem-se.

É preciso quebrar o «Consenso da Almirante Reis» III

Estamos mal com a insistência nas ilusórias e estáticas vantagens comparativas. Os países semi-periféricos que se desenvolveram foram os que desafiaram, a golpes de boa política, o seu padrão de especialização tradicional e transitaram para sectores com maior valor acrescentado onde se podem capturar as rendas que advêm do domínio, mais ou menos pioneiro, de novas tecnologias. Ao contrário do que alguns pensam, a criação destas vantagens competitivas dinâmicas pode ser um jogo de soma positiva. Faz então falta um discurso público desenvolvimentista mais assertivo e confiante, na linha de algumas preocupações que constam do QREN. Um discurso que defenda e defina, usando a reduzida margem de manobra disponível, uma política industrial coerente, servida por incentivos selectivos e por investimentos públicos bem planeados, que favoreçam a área dos bens transaccionáveis intensivos em conhecimento e em tecnologia e não a captura de sectores da provisão pública. Esta corrente de pensamento existe em Portugal e, de vez em quando, consegue ter alguns sucessos, mas está muito abafada pelo «Consenso da Almirante Reis».

A política industrial, como o economista Dani Rodrik da Universidade de Harvard defende no seu último livro ( o capítulo a que me refiro está disponível aqui), é um processo de descoberta, feito de colaboração entre o sector público e o sector privado (a «autonomia embutida» de um Estado forte de que fala Peter Evans), capaz de superar as enormes falhas de mercado (externalidades e problemas de coordenação dos investimentos) que podem bloquear a emergência de importantes sectores económicos. Rodrik, baseando-se em extensa evidência empírica, torna visível o que é invisível para muitos: «raspem a superfície dos sucessos de exportação em sectores inovadores em qualquer parte do mundo e, na maior parte dos casos, verão políticas industriais, I&D pública, apoios sectoriais, subsídios à exportação, acordos tarifários preferenciais e outras intervenções públicas». Já agora vejam o que o Nuno Teles escreveu sobre as energias renováveis ou este artigo sobre as origens públicas de muitas inovações.

Enfim, não podemos confiar sempre nos famosos, mas muitas vezes enganadores, sinais do «mercado». Definitivamente, os mercados realmente existentes são moldáveis e dependem das políticas. Os países bem sucedidos são os que descobrem o que isto implica em cada momento e não falham nas escolhas de política industrial. E, aspecto crucial, conseguiram edificar um Estado capaz de guiar o sector privado sem ser por ele capturado. É fácil? Não me parece. É claro que se isto fosse fácil, teríamos hoje uma receita económica universal. Nada está mais longe da verdade. Se nem sequer temos, depois de tantas tentativas, uma única teoria económica ou um único modelo económico...

segunda-feira, 28 de julho de 2008

É preciso quebrar o «Consenso da Almirante Reis» II

Em Portugal, o discurso económico dominante no debate público fala muito pouco de política industrial, entendida como conjunto de politicas públicas que podem contribuir para a transformação da estrutura da nossa economia. Até uma parte da esquerda parece achar que são os economistas ortodoxos, como Olivier Blanchard do MIT, que devem definir os termos do debate económico. Estes falam de produtividade como um resultado mais ou menos misterioso que se extrai de uma função de produção. Tudo o que importa esconde-se nesta «caixa negra». Vejam esta posta do Ricardo. As análises históricas, institucionais e sectoriais mais detalhadas e informadas ficam mesmo para outros. No fundo, para Blanchard só os salários contam e a competitividade ganha-se apenas pela sua contracção permanente. De resto, Portugal, diz Blanchard, tem que se conformar com as suas tradicionais vantagens comparativas. Esqueçam as tecnologias. Onde é que já se viu? A aprendizagem tecnológica, o impulso para o aumento das qualificações e o poder de mercado ficam para outros. Aproveitem o sol e os salários cada vez mais baixos: Florida da Europa. É isto que os economistas, patrocinados pelo consenso do Banco de Portugal, nos vendem há demasiado tempo.

É preciso quebrar o «Consenso da Almirante Reis»

«Não tenho qualquer dúvida em afirmar que devido à moeda única Portugal está hoje mais desprotegido em relação à globalização do que grande parte das economias do mundo, mesmo de países de dimensão e nível de desenvolvimento inferior». Recupero um excerto de um artigo de João Ferreira do Amaral (JFA) publicado, em 2007, no Jornal de Negócios. Uma moeda única demasiado forte e um governo económico europeu desequilibrado, que nem sequer tem um orçamento central digno desse nome para atenuar os choques, só podem dar asneira. O mínimo que se pode dizer é que a história e os desequilíbrios externos da nossa economia têm dado razão a estas posições críticas. As políticas erradas são antigas. Já em 2000, num livro editado pelo actual Ministro da Economia, JFA tinha alertado: «os empresários fizeram aquilo que sempre fazem: reagiram aos sinais macroeconómicos. E estes sinais, dados pela sobreapreciação, explícita e implícita (esta depois de 1999) do escudo foram: ‘Invistam em bens não transaccionáveis e não em bens transaccionáveis’». Junte-se a isto um processo de privatizações sem rei nem roque, que só reforçou estes perversos sinais, e temos alguns ingredientes para uma receita económica que se limitou a liberalizar os mercados sem os tentar governar e que desta forma muito prejudicou a nossa inserção externa.

Nota: este livro de Robert Wade da LSE é fundamental para abordar estes temas. A partir da análise da trajectória de Taiwan, revolucionou, no princípio da década de noventa, os estudos do desenvolvimento. Fica claro o papel fundamental do Estado no milagre económico asiático. Foi reeditado com um novo prefácio onde Wade discute o futuro da ciência e da política económica depois do fracasso do «Consenso de Washington» e das suas cópias caseiras.

Há limites

Nunca pensei ler um artigo de Francisco Sarsfield Cabral intitulado os limites do mercado. Mas a crise tem destas coisas. Chegou mesmo a hora de arrefecer todos os entusiasmos mercantis. Ainda bem. Só assim podemos avançar. Definitivamente, a variedade anglo-saxónica de capitalismo hoje existente não é o último estádio do desenvolvimento. Aqui ficam alguns excertos mais significativos do seu artigo no Público: «A falta de confiança que prevalece nos mercados financeiros já levou a várias intervenções estatais. E haverá ainda outras, para evitar danos maiores na economia. Não é reconfortante para quem esperava que o mercado, por si só, tudo resolvesse (. . .) Esta crise põe termo ao ciclo de euforia pró-mercado iniciado com o colapso do comunismo, no tempo de Reagan e Thatcher. Tal como a depressão dos anos 30, a actual crise não significa o fim do capitalismo. Mas, tal como aconteceu há 70 anos, alguma coisa mudará (…) Ali [EUA] os gastos em saúde (14% do PIB) são praticamente o dobro dos europeus (8%). Mas, na América, a comparticipação estatal é muito mais baixa, empurrando os americanos para caríssimos seguros privados e deixando mais de 40 milhões sem qualquer seguro de saúde, por falta de meios. Acresce que no sector dos seguros poderá rebentar, depois do subprime, uma nova crise financeira. Mas como fazer reformas sociais, se os EUA atravessam uma crise económica? Bom, as reformas de Roosevelt com o New Deal concretizaram-se numa crise muito pior». Nem mais.

domingo, 27 de julho de 2008

Corrupção, desigualdade e corrosão da ética do serviço público

Leiam a entrevista de João Cravinho ao Público de hoje: «a grande corrupção considera-se impune e age em conformidade e atinge áreas de funcionamento do Estado, que afectam a ética pública». A reconfiguração neoliberal do Estado, com a entrada de privados em novos sectores em que, dada a natureza das actividades, é necessário desenhar complexos contratos, é uma das fontes do problema. A fraqueza e falta de autonomia do Estado do bloco central face aos grandes grupos privados com cada vez mais poder e o défice de escrutínio democrático destas relações cada vez mais promíscuas colocam-nos assim numa situação difícil. Juntem a isto a hegemonia de um discurso que subestima e despreza a ética do serviço público e os profissionais e as práticas que a podem sustentar. Ficamos sem recursos intelectuais para traçar as linhas entre o que se pode comprar e vender e o que não se pode nem deve comprar e vender. Finalmente, temos evidência empírica e argumentos plausíveis mais do que suficientes para associar a corrupção ao problema das gritantes desigualdades no nosso país. Um artigo, publicado em 2005 na prestigiada American Sociological Review por dois investigadores da Universidade de Harvard, apresenta ampla evidência empírica (usam dados para 129 países) indicando que «maiores níveis de desigualdade conduzem, através de mecanismos materiais e normativos, a maiores níveis de corrupção». Segundo os autores, à medida que a desigualdade aumenta quem é mais rico terá mais recursos e mais incentivos, para «contornar» as regras. Além disso, a desigualdade tende corroer a crença de que as instituições fundamentais da sociedade são justas e assim a sabotar a legitimidade social das regras instituídas. E concluem: «se a corrupção é o resultado da tentativa por parte dos ricos para melhorar a sua posição, então um maior peso do Estado pode estar associado a menos corrupção». Assim se mostra como o combate socialista contra as desigualdades e em defesa da provisão pública que traça linhas claras é também um combate contra a corrupção. Por uma sociedade decente.

sábado, 26 de julho de 2008

Para um «New Deal verde» II

Saúda-se o aparecimento esta semana de um excelente documento de análise e de proposta, elaborado por um grupo de economistas e de ambientalistas britânicos e simbolicamente intitulado «um New Deal verde». Escrito tendo por referência a realidade britânica, contém pistas que são de validade geral para um programa de reformas sistémicas à escala nacional e supranacional. O resto pode ser lido no esquerda.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Porque a globalização financeira não funciona II

Alguns meses mais tarde, Martin Wolf, agora transformado num dos melhores cronistas liberais das origens da fragilidade financeira do capitalismo anglo-saxónico, e perante mais uma notícia de uma operação de salvamento público de uma instituição financeira privada nos EUA, escrevia que «a desregulamentação tinha atingido os seus limites» e que o «sonho» do capitalismo financeiro global se tinha transformado em pesadelo. A finança de mercado afinal não funciona mesmo. No entanto, os neoliberais ainda andam a procura de responsáveis políticos para o que é um desastre privado com óbvias repercussões públicas. Externalidades negativas em grande escala. Agora culpam a Reserva Federal que sempre os salvou. A ingratidão não tem limites e a hipocrisia também não. Wolf é demasiado sério para alinhar neste jogo simplista e falido. Aliás, pergunto: por que é que as taxas de juro baixas nas décadas do consenso keynesiano do pós-guerra não produziram crises financeiras de monta e serviram antes para garantir níveis elevados de investimento produtivo? Eu tenho uma resposta pouco original. Digam comigo as palavras sujas: controlo de capitais e regulamentação forte. Sector financeiro subordinado ao poder político e à economia real. Vão ver que não custa nada. As utopias de mercado é que já nos custaram demasiado caro.

Porque a globalização financeira não funciona

Martin Wolf é editor do Financial Times, autor de um importante livro sobre o processo de globalização, editado recentemente entre nós com um expressivo título (Por que funciona a globalização), e um atento observador das dinâmicas dos capitalismos realmente existentes e das suas fragilidades potenciais (o Nuno Teles está a recensear este livro para o Mdiplo do próximo mês). Em Junho de 2007, um mês antes de rebentar, no centro da economia mundial, a bomba da interacção perversa entre a acumulação insustentável de dívida e a deflação de alguns dos principais activos da economia, Wolf descrevia, num artigo que vale a pena repescar, um sistema capitalista em revolução permanente, destruindo, ao longo das duas últimas décadas, uma parte fundamental dos arranjos institucionais que o haviam enquadrado desde a Grande Depressão dos anos trinta do século passado e emergindo purificado sob hegemonia do capital financeiro: «Assistimos ao triunfo do global sobre o local, do especulador sobre o gestor, do financeiro sobre o produtor. Estamos a assistir à transformação do capitalismo gerido de meados do século XX no capitalismo financeiro global» (Financial Times, 18/07/07). No mesmo artigo, Wolf já alertava para os perigos e contradições desta grande transformação e para os desafios de regulação que ela estaria a gerar. Alerta sensato tendo em conta a história económica deste processo. O número e os custos socioeconómicos das crises cambiais e/ou bancárias não param de aumentar, o que aliás é relutantemente reconhecido no seu livro. Alerta sensato tendo em conta o que nos esperava no ano de todas as convulsões do neoliberalismo…

Mercado e Estado VI

Thompson ajuda a tornar mais claro o que eu quis dizer quando disse que não existe, nem nunca existiu, um «mercado desregulado». Estou a pensar em duas passagens de «A Economia Moral da Multidão na Inglaterra do Século XVIII».

Na primeira descreve-nos o modelo que em Inglaterra «informava as acções do governo em tempos de emergência até à década de 1770; e para o qual muitos magistrados continuaram a apelar depois disso»:

«Os agricultores transportariam os seus cereais em quantidade para o mercado
local; não deveriam vendê-los no campo, antes da colheita, nem deveriam retê-los
na esperança de preços mais elevados. Os mercados deveriam ser controlados;
nenhuma venda deveria ocorrer antes de uma hora pré-determinada em que uma
campainha tocaria; os pobres deveriam ter oportunidade de comprar grão, farinha
ou pão, em primeiro lugar, em pequenas parcelas e com pesos e medidas
devidamente supervisionados. A certa hora, quando as suas necessidades
estivessem satisfeitas, soaria um segundo toque e os grandes negociantes
(devidamente licenciados) poderiam fazer as suas compras»


Este era o modelo de regulação de referência. O modelo que as autoridades impunham aos proprietários e comerciantes quando eram zelosas, e o que as próprias «multidões» se encarregavam de impor (evocando a lei e o costume) quando o zelo das autoridades fraquejava.

Na segunda passagem descreve-nos já actividade do Duque de Portland por volta de 1800 na repressão à «actividade reguladora» das multidões e em defesa de direitos de propriedade dos agricultores que incluíssem a possibilidade de vender, onde e a quem entendessem, o seu produto. O Duque de Portland, muitas vezes em oposição aos magistrados locais que ainda acreditavam nos valores do velho modelo, defendia que «o remédio para os distúrbios eram os militares ou os Voluntários» e repreendia desta forma um tal Conde Mount Edgcumbe que tinha conseguido um acordo com os agricultores que os obrigava a abastecer mercados locais a preços reduzidos em tempo de escassez:

«… a experiência que tenho… leva-me a dizer que toda a iniciativa desse tipo não
pode, dada a natureza das coisas, ser justificada e tem necessária e brevemente de
agravar a aflição que pretende aliviar… porque impede o Emprego do Capital na
Actividade Agrícola.»


O Duque de Portland, que não podia ter deixado de ler a sua Economia Política, talvez na versão popular da época, não acreditava no velho modelo de regulação e preferia a liberdade dos agricultores em detrimento das necessidades dos pobres. Não interessa agora a razão que não tinha ou que teria. Interessa atentar no facto de estar envolvido em contrariar (se possível proibir) negociações que levassem os agricultores a agir no interesse da multidão e em mobilizar forças repressivas para conter os distúrbios, ou seja, as acções da multidão contra o açambarcamento, a exportação de cereais em tempo de escassez e os preços considerados exorbitantes.

Mas, negando sê-lo, o Duque de Portland era um «regulador». Era ele quem com armas e bagagens estava a reconhecer e a sancionar um direito de propriedade irrestrito dos agricultores e ao mesmo tempo a negar às populações os alimentos cultivados nas terras onde as suas casas assentavam. Só que para ele o tal direito de propriedade irrestrito estava inscrito na ordem natural das coisas e o que ele estava a fazer não era mais do que deixar a natureza fazer o seu trabalho.

Tal como o Duque de Portland há ainda hoje quem veja um mercado onde os direitos de propriedade são irrestritos como um «mercado desregulado». O que se passa é que os hábitos são uma segunda natureza. Habituamo-nos a pensar os direitos de propriedade e os mercados de uma certa forma e eles rapidamente passam a ser «natureza». E a natureza, supõe-se, trabalha por si (e sempre bem, se não a contrariarmos).

Mas os mercados e os direitos e as obrigações, de cuja definição prévia a existência dos mercados depende, não são «natureza», são instituições. Por serem hábitos colectivos as instituições tendem a ser naturalizadas. E. P. Thompson ajuda porque nos permite ver que instituições, como o mercado ou a propriedade, assumiram formas muito diferenciadas ao longo da história e que não existe nelas uma forma «fixa», «natural», «imutável».

Apelei à capacidade e à obrigação de questionar e criticar racionalmente os nossos hábitos, e não a uma «ideologia», quando pedi para repensar as relações Mercado-Estado, pondo de parte, pelo menos por um momento, a imagem do manual de microeconomia de um Mercado que existe, porque existe, num vazio político e institucional e de um Estado que não deve intervir a não ser quando o mercado-natureza falha. O meu ponto é simples: o Estado entra nesta história desde o princípio, sancionando ou limitando os direitos de propriedade e as correlativas obrigações; direitos e obrigações situam-se a montante das trocas mercantis.

E a propriedade, afinal ainda mais fundamental enquanto instituição fundadora da nossa sociedade do que o mercado, também não é «natureza». Dela passo a tratar já que de Mercado e Estado, por agora, basta.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Economia Moral

Penso não estar a revelar nenhum segredo se chamar a atenção para a tradução portuguesa de «A Economia Moral da Multidão na Inglaterra do Século XVIII» de E. P. Thompson que as Edições Antigona se preparam para lançar em Outubro. Segredo não serão também as jornadas dos dias 9 e 10 de Outubro de 2008 que Fátima Sá (do Centro de História Contemporânea) e José Neves (do ICS) estão a organizar.

Com a tradução e as jornadas, este académico militante, ou militante académico, como preferirem, passará a ser mais bem conhecido em Portugal. Ele fala-nos de uma economia em que relações mercantis e obrigações morais não são concebidas em separado. É historiador, fala do passado (a Inglaterra do século XVIII), mas o certo é que o que aí se encontra nos pode ajudar a ver, mesmo no presente, uma economia que os olhos da «economia pura» não enxergam.

O tempo da crise

Nuno Teles foi entrevistar Francisco Louçã. O resultado desta conversa sobre economia está disponível em papel e em vídeo. Da crise financeira internacional à natureza rentista do capitalismo português, passando pela forma como o Estado do bloco central, através de privatizações irresponsáveis e de ruinosas parcerias público-privadas, está a corroer qualquer possibilidade de se construir, a prazo, uma sociedade decente assente numa economia viável. Quem quer investir em bens e serviços para exportação quando pode controlar a Brisa, a Lusoponte ou a REN, empresas onde, dada a natureza da actividade, os lucros estão praticamente garantidos? Como investigador das pulsações históricas do capitalismo, Louçã está bem posicionado para contextualizar esta crise internacional. A alternativa ao desastre financeiro permanente é um movimento coordenado que reintroduza um maior controlo sobre o capital financeiro. À escala nacional, a natureza desigual e predatória do processo de modernização conservadora é bem radiografada. A alternativa a este estado de coisas, que aprofunda a crise orçamental e a inserção dependente da nossa economia, só pode ser um projecto socialista com fôlego. Este é o desafio para todas as esquerdas.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Para um «New Deal verde»

Um grupo de economistas e de ambientalistas britânicos, que inclui Larry Elliott, editor de economia do The Guardian, e Ann Pettifor, uma economista que há muito tempo vem denunciando a insustentabilidade socioeconómica do desigual e financeirizado modelo anglo-saxónico de capitalismo, apresentou ontem um ambicioso programa de reformas para fazer face à crise financeira, às alterações climáticas e à subida dos preços da energia. Defendem que é preciso forjar uma «aliança entre ambientalistas, sectores económicos agrícolas e industriais e sindicatos para colocar os interesses da economia real acima dos interesses da finança». De facto, só um esforço político de grande fôlego, na linha de um New Deal reinventado, pode salvar hoje a situação. Investimentos maciços para gerar novos «empregos verdes», reduzir a dependência dos combustíveis fósseis e assegurar a emergência de um modelo ecologicamente mais sustentável e com um sector financeiro mais regulado e menos especulativo. Está tudo ligado. Keynesianismo ecológico.

Um pouco por todo o lado multiplicam-se as propostas para a mudança de modelo económico. Vejam este artigo que saiu ontem no Financial Times. Helena Garrido tem toda a razão: os EUA adoram Keynes em tempos de crise. Só a UE é que está construída como «um daqueles países em vias desenvolvimento a quem o FMI costuma impor um dos seus rígidos programas de estabilização (. . .) sob a tutela de um grupo de funcionários não eleitos» (Andrea Boltho da Universidade de Oxford). É pena. O projecto europeu e as economias nacionais estão a pagar um preço elevado por uma ortodoxia sem sentido.

terça-feira, 22 de julho de 2008

As escolhas de Ana Jorge

Pouco tempo depois de ter sido conhecido o relatório do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS), que apontava o dedo aos riscos para o SNS do apoio público à expansão da provisão privada de saúde, Ana Jorge afirmou: «Se tiver um acidente grave, a senhora deputada vai a um hospital privado? Eu não ia!». Pedagógica declaração que vale a pena relembrar. A ministra só tem que se guiar por ela na condução das políticas de saúde. É pesada a herança de Correia de Campos. É então preciso investir na provisão pública, permitir a plena utilização da capacidade já instalada e assim secar progressivamente as fontes que alimentam a provisão hospitalar privada. O Programa de Intervenção em Oftalmologia parece mostrar o caminho. Depois é seguir o Tribunal de Contas e acabar de vez com as ruinosas parecerias parcerias público-privadas ainda em curso para a construção e gestão de hospitais. Não basta dizer que não se fazem mais. É preciso rever o mal que está para trás. Temos então alguns sinais positivos. Apostar no SNS é um caminho difícil, mas sem alternativa. Os poderosos grupos privados e os seus peões no bloco central de todos os interesses mobilizar-se-ão. Na imprensa também claro. O DN aqui porta-se muito mal. Não é caso único.

No entanto, julgo que o SNS, assente na provisão pública, tem o apoio de uma imensa maioria. É mais barato e é muito mais decente. Só o SNS pode materializar o melhor dos princípios nesta esfera da vida: a cada um segundo as suas necessidades. A esquerda tem que fazer uma apologia muito maior do que já se alcançou neste domínio, do muito que ainda se pode alcançar com os princípios certos e de como políticas erradas e opacas de «mimetismo mercantil» podem deitar tudo a perder.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Os balanços e as recomendações do retrocesso global

O governo tem defendido que as suas propostas de alteração às regras do jogo laboral procuram combater a precariedade. Destaca-se a criação de incentivos, através da alteração da taxa social única, para reduzir o uso e abuso dos contratos a prazo e dos recibos verdes e a redução da extensão da duração dos contratos a prazo para os três anos em vez dos seis definidos no anterior código. Uma política inteligente de incentivos, sobretudo quando estão em causa empresas, pode ter um efeito positivo. A questão é se isso chega para estancar o brutal crescimento, mais 150 mil, do número de trabalhadores precários desde que Sócrates tomou posse. Não me parece. E também não me parece que compense os evidentes retrocessos noutras áreas. O FMI fez um balanço, na sua avaliação negra da economia portuguesa, e concluiu que as alterações às regras laborais representam um avanço. Isto não augura nada de bom. Mas o FMI não está satisfeito. O que é que incomoda? Precisamente um dos poucos sinais positivos: o agravamento da taxa social única para os contratos a prazo. O FMI diz que dificulta a via para um emprego seguro. Todos temos visto os empregos seguros que a complacência face à precariedade tem criado. O FMI também quer que o despedimento individual seja ainda mais fácil. Nada que surpreenda. As organizações internacionais – FMI, OCDE, entre outras – são há muito ponta de lança da ofensiva contra os direitos que podem garantir uma prosperidade partilhada. Felizmente, o FMI, dirigido por um social-liberal francês, é hoje uma organização em queda e com cada vez menos poder. A incompetência económica e a insensibilidade social ainda se pagam?

domingo, 20 de julho de 2008

Leituras de fim-de-semana no país do «Consenso da Almirante Reis» III

As intervenções, entre outros, de Vítor Constâncio, da insensata proposta do nuclear à defesa da austeridade assimétrica (tudo isto numa interpretação muito lata das suas funções...), parecem ilustrar precisamente uma das teses do último livro de Naomi Klein: a crise pode ser uma oportunidade para impor transformações regressivas a populações desmoralizadas por choques socioeconómicos, políticos ou naturais (para quando a tradução do livro?). E lembram-nos que, em Portugal, a ortodoxia neoclássica, facção neoliberal, parece estar bem entrincheirada lá para as bandas da Almirante Reis (Banco de Portugal). Como se construiu, na condução das políticas públicas, o que o historiador económico Pedro Lains designou por «Consenso da Almirante Reis», versão caseira do malogrado «Consenso de Washington»? A história do neoliberalismo em Portugal está por fazer. Sem teorias da conspiração. Isto dava um bom projecto de investigação. Instituições, programas, quadros teóricos e protagonistas. O consenso emerge no final dos anos setenta, consolida-se nos anos oitenta e para nossa desgraça ainda não tem conclusão à vista. Em Portugal não houve propriamente «think-tanks». Não foi preciso? Passou-se tudo dentro das instituições públicas?

Leituras de fim-de-semana no país do «Consenso da Almirante Reis» II

O problema, claro, começa quando as teorias neoliberais tentam, através das políticas públicas, formatar o mundo à imagem dos seus idealismos mercantis, misturados com um autoritarismo tributário de Carl Schmitt: «soberano é quem decide o estado de emergência», quem define a «excepção à regra». Esta última associação é desenvolvida por Philip Mirowski e é aplicada à forma selectiva e dúplice como é vista a intervenção do Estado e o seu controlo. Quando o domínio das políticas públicas é alcançado temos o actual «capitalismo de desastre» de que fala Naomi Klein (já agora, a recensão de Stiglitz ao livro de Klein, publicada no ano passado, está disponível aqui).

É claro que o facto da ciência económica poder ter implicações políticas fortes pode ser uma das explicações para o seu permanente policiamento. Muitos tentam abafar o pluralismo e impedir que os estudantes ou a opinião pública sejam expostos a várias perspectivas. Lembram-se da «purga» de que Stiglitz e outros foram vítimas no Banco Mundial? A várias escalas, em várias instituições e de várias formas estes comportamentos multiplicam-se. As razões do poder são tão frágeis quanto variadas. Felizmente, há sempre quem resista. Em nome da verdade, que só pode emergir do pluralismo, e da autonomia, em risco, das instituições de ensino e de investigação.

Leituras de fim-de-semana no país do «Consenso da Almirante Reis»

«Os países que adoptaram políticas neoliberais são os grandes derrotados; não souberam tirar partido do crescimento, e quando cresceram de facto, os benefícios ficaram nas mãos dos que ocupam o topo da pirâmide». Este excerto do artigo do Prémio Nobel da Economia Joseph Stiglitz, publicado esta semana pelo Diário Económico, parece que foi escrito a pensar em Portugal.

Stiglitz argumenta que o neoliberalismo não tem suporte nas «teorias económicas». Aqui discordo. É claro que não tem suporte em muitas das teorias económicas convencionais ou heterodoxas disponíveis. Nas melhores digo eu. Por exemplo, na economia política institucionalista, no pós-keynesianismo ou no paradigma da informação assimétrica neoclássico do próprio Stiglitz. No entanto, está ancorado no que Ha-Joon Chang apodou, em artigo no Cambridge Journal of Economics (uma versão está disponível aqui), de aliança implícita entre a economia política austríaca, a teoria da escolha pública e uma parte da ortodoxia neoclássica – monetarismo e seus derivados, expectativas racionais, imperialismo económico, etc.

Contra a inevitabilidade do profeta

Em nome do que para alguns foi no início um sonho – o Estado de Israel na Palestina – um profeta que desconheço anuncia hoje no Público um ataque «preventivo» de Israel ao Irão a ocorrer entre 5 de Novembro de 2008 e 19 de Janeiro de 2009. É inevitável que assim seja diz ele, preparando-nos com o estabelecimento da inevitabilidade para a aceitação passiva do «facto» que através da acção profética pretende criar.

Não sabemos se o objectivo do projecto nuclear do Irão é ou não militar. Pode bem ser. Mas pode também não ser. E pode ainda ser para algumas forças internas no Irão e não o ser para outras. Mas é interessante notar que a profecia é divulgada no dia seguinte ao de um auspicioso encontro negocial entre o Irão, a UE e os EUA. Não sabemos se o profeta fala em nome de Israel nem se o objectivo de Israel é aproveitar o projecto iraniano como pretexto para um ataque «preventivo» que consolide a sua posição geo-estratégica. Pode bem ser. Mas pode também não ser. E pode ainda ser para algumas forças internas de Israel e não o ser para outras.

O que é certo é que falar de «Israel» ou do «Irão» como de entidades dotadas de uma mente e de intenções, não ajuda nada. Quer em Israel quer no Irão há pessoas que querem a paz e que buscam a justiça por meios que não envolvem a guerra. E para todos nós é crucial que o que essas pessoas desejam e pensam acabe por prevalecer. Para que assim seja é importante denunciar a inevitabilidade do profeta. Além do ataque «preventivo» e do Irão nuclear há outra alternativa mais razoável: a desnuclearização do Médio Oriente. Já experimentaram negociar com o Irão nesta base?

E já agora porque não a desnuclearização do mundo?

sábado, 19 de julho de 2008

Vital Moreira, socialista e liberal (em economia)

No artigo "Hostilidade assimétrica" Vital Moreira (VM) repetidamente qualifica de “antiliberal” tudo o que está à esquerda da direcção do PS. Ao mesmo tempo, assume a actual social-democracia europeia como o “fim da História” do movimento socialista. Percebe-se que VM pretenda atribuir à versão portuguesa da Terceira Via credenciais de genuína esquerda socialista. A verdade é que as ideias de VM, e da Terceira Via em geral, não respeitam os princípios históricos do socialismo. Aliás, não foram mais que uma caução intelectual para estratégias de sobrevivência de organizações partidárias em crise.

O património histórico da esquerda socialista rejeita três princípios subjacentes à doutrina liberal do século XIX sobre a economia: “que o preço do trabalho é fixado pelo mercado; que o dinheiro deve ser criado através de um mecanismo que se auto regula; que as mercadorias devem circular livremente entre os países quaisquer que sejam as consequências” (Karl Polanyi, "A nossa obsoleta mentalidade de mercado", 1947: p. 68). Numa formulação pela positiva, diríamos hoje que a esquerda socialista defende: a) mercados de trabalho regulamentados a favor dos assalariados, e eficazmente fiscalizados; b) apertada regulamentação da esfera monetária da economia e controlo democrático da política monetária; c) regulamentação do comércio e dos pagamentos internacionais que tenha em conta a especificidade do desenvolvimento de cada país e a autonomia da respectiva política económica.

É verdade que as políticas de redistribuição do rendimento através de uma tributação progressiva, e o conjunto das políticas sociais que caracterizam o essencial do Estado Social europeu, integram o património da esquerda socialista. No entanto, situam-se num segundo anel em torno do núcleo central acima enunciado; são uma aquisição histórica decorrente das lutas sociais, culturais e políticas em torno de princípios que visam moldar a própria economia. Muitas dessas políticas sociais foram assumidas por governos europeus de diferente matriz ideológica durante a segunda metade do século XX e hoje fazem parte da chamada Estratégia de Lisboa.

Quer isto dizer que hoje somos todos socialistas? Evidentemente que não, e a explicação é simples: as políticas de redistribuição do rendimento e as políticas sociais são políticas de reparação dos efeitos do funcionamento da economia segundo princípios mais ou menos (neo)liberais. No essencial, as políticas sociais são compatíveis com os três princípios liberais acima enunciados. O próprio VM o reconhece em "Adeus socialismo"? ao defender que o socialismo contemporâneo também é liberal na economia.

Como Karl Polanyi bem mostrou, a mercantilização do homem, da natureza e da moeda na primeira metade do século XIX criou na Grã-Bretanha uma “economia de mercado”, um sistema de mercados totalizante que impôs as suas exigências (e ideias) ao resto da sociedade. O desastre económico, social e ambiental que se seguiu deu origem a um poderoso movimento social de sentido contrário que rapidamente se estendeu ao Continente europeu. Desde então os socialistas lutam contra a mercantilização geral das relações sociais e procuram, através de reformas democráticas, reinstitucionalizar a economia colocando-a ao serviço da sociedade. Nunca defenderam a abolição dos mercados e a estatização da economia. Mas VM tem parcialmente razão: sempre foram antiliberais no que toca aos mercados do trabalho, dos recursos naturais e da moeda.

As crises que hoje vivemos (internacional, UE) vão certamente impulsionar uma actualização do pensamento socialista sobre o modo como nos nossos dias a economia deve estar ao serviço do bem público. Nesse processo, o núcleo ideológico originário continuará a ser inspirador: trabalho humano, natureza e moeda não são mercadorias. E, mais cedo ou mais tarde, VM vai ter de reconhecer que o seu “socialismo liberal” não é mais que um liberalismo com sensibilidade social, um social-liberalismo.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Sono ou sonho?

Goya escreveu: «El sueño de la razon produce monstros». O que é que na realidade quis dizer?

Que força é esta?

Primeiro foi Van Zeller da CIP: este governo fez melhor do que a direita (Jornal de Negócios). Ontem foi o Fundo Monetário Internacional (FMI): o putativo código Vieira da Silva representa um grande passo em frente (Público). Tendo em conta o historial do FMI, todos sabemos onde é que terminam estes passos em frente. Finalmente, a prestável UGT acusa hoje o governo de nem sequer respeitar o acordado (Manuel Esteves no DN). Como seria de esperar, as discrepâncias não são favoráveis aos trabalhadores. Há muito que o governo deixou de ser árbitro. Se é que alguma fez o foi. Aposta agora numa coligação contra o trabalho organizado. As desigualdades salariais, o despotismo patronal e a pressão para o empobrecimento de amplos segmentos das classes trabalhadoras prosseguem dentro de momentos.

Mercado e Estado V

Penso que a oposição Mercado-Estado é fictícia – um hábito de pensamento que esconde mais do que aquilo que permite ver. Sugeri (em I, II, III e IV) que antes do mercado e da azáfama dos produtores e consumidores é preciso definir: (a) o que é e o que não é um bem susceptível de provisão e apropriação mercantil; (b) normas respeitantes à provisão e utilização do bem; (c) quem pode e quem não pode participar no mercado.

Estas definições todas incumbem ao Estado. É o Estado que sanciona o entendimento moral prevalecente relativamente ao bem e às suas condições de provisão e consumo.

Convenhamos assim que não será um exagero dizer que «o mercado», a esta luz, pode ser visto como um «jogo» com regras definidas pelo Estado (mas também pelo costume). Como acontece em todos os jogos, as regras são o que constitui o próprio jogo.

É por isso que separar e opor Mercado e Estado pode ser tão enganador como tentar interpretar as acções dos jogadores de qualquer jogo no desconhecimento das regras que o constituem. Identificar mercado com laissez-faire ou falar de um «mercado desregulado» é tão absurdo como falar de um jogo de futebol sem regras. O ponto é simples: se não há regras, não há jogo. Igualmente absurdo é associar «Estado» a planeamento central. Será que a instituição que estabelece e modifica as regras do futebol (suponho que é a FIFA) planeia os jogos e as jogadas?

Não existe, nem nunca existiu, um «mercado desregulado». Existem, no entanto, diferentes modos de regular o mercado. Podemos conceber num extremo um modo de regulação que reconheça (e proteja) direitos de propriedade irrestritos e ignore os que são potencialmente afectados pelo uso que damos à propriedade. Neste caso, poderiamos fazer tudo o que quiséssemos com aquilo a que chamamos nosso ou com o que pensamos adquirir com o nosso dinheiro. E o Estado protegeria esses direitos ao mesmo tempo que deixaria expostos todos os outros. Podemos conceber também modos de regulação que estabelecem limites aos direitos de propriedade e obrigações, por forma a proteger os direitos de outros que podem ser afectados pelo uso que é dado à propriedade. Em todos os casos o Estado está presente.

Ponto importante: nada indica que esta presença seja menor no primeiro caso. Proteger direitos de propriedade irrestritos, ignorando os públicos lesados pelo uso irrestrito dos direitos de propriedade, pode exigir uma intervenção do Estado muito activa … e um aparelho muito caro.

Num momento de crise e de elevados preços da gasolina, aumentam as vendas de automóveis. Conclusão: é preciso taxar os ricos

Segundo os dados do INE, entre Janeiro e Abril o valor das importações de mercadorias cresceu 13.7 % face a igual período do ano passado. Parece um paradoxo que as importações cresçam tanto num momento de crise económica, mas não é: uma boa parte desse crescimento é explicado pelo aumento dos preços do petróleo e dos bens alimentares, os quais se reflectem na factura que o país tem de pagar ao exterior.

Esta evolução dos preços internacionais, no entanto, não explica tudo. A julgar por esta notícia publicada no Diário Económico de ontem, os portugueses continuam a comprar carros novos como poucos povos na Europa. Ora, uma vez que a maior parte dos carros adquiridos em Portugal vem do exterior ( a moda de só comprar o que sai da Autoeuropa ainda não pegou...), o fascínio pelo carro novo continua a contribuir para o desequilíbrio das contas externas portuguesas.

Acontecendo isto num momento em que os preços dos combustíveis atingem máximos históricos, em que surgem sinais de um aumento da utilização dos transportes públicos como resposta à perda de poder de compra de grande parte dos automobilistas, e em que o nível das taxas de juro desencoraja as compras através de empréstimos, há motivos para acreditar que o crescimento das vendas automóveis é mais um sinal da grande assimetria na distribuição de rendimentos no nosso país. Não tenho dados sobre isto, mas não me admiraria que a quase totalidade do recente aumento das importações de automóveis em valor se ficasse a dever a carros de gama elevada.

No relatório preliminar que o FMI acabou de publicar sobre Portugal, sugere-se a introdução de uma contribuição semi-obrigatória dos trabalhadores para complementos de pensão, como forma de aumentar o nível de poupança e assim diminuir as necessidades de financiamento da economia portuguesa. Faço uma sugestão alternativa - aumentem-se as taxas sobre a importação de automóveis de gama alta - faz-se um favor ao ambiente, à justiça social e ao desequilíbrio externo da economia portuguesa.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Não se pode parar à porta das empresas II

Os teóricos socialistas não podem mais recusar-se a escrever «as receitas para as cozinhas do futuro». Ou, pelo menos, não podem recusar-se a tentar escrever rascunhos. Para quem quiser discutir e usar. Erik Olin Wright, importante sociólogo norte-americano, tem juntado, desde meados dos anos noventa, destacados economistas, sociólogos, cientistas políticos e filósofos em torno de temas que muitos gostariam de arredar da agenda académica e política: pensar em configurações institucionais que assegurem redistribuições igualitárias e eficientes dos activos da economia, formas de realizar objectivos socialistas em economias em que os mercados, moldados por novas regras, têm um lugar de relevo, formas de expandir a democracia e a participação a novos espaços, criação de mecanismos de controlo democrático do investimento. Utopias reais. E uma série de bons livros. Wright está agora a escrever um livro de síntese. Os rascunhos dos capítulos estão aqui.

Este livro, com os contributos centrais da minha dupla preferida de economistas – Samuel Bowles e Herbert Gintis – é um bom exemplo. Com muita economia pós-walrasiana à mistura (informação assimétrica e economia comportamental), argumentam que os famosos problemas do principal-agente (quem manda tem que gastar tempo e recursos a monitorizar, sempre de forma imperfeita, quem obedece) e das correspondentes «transacções contestadas», podem ser atenuados com uma redistribuição de activos. Eficiência e igualdade.

Eu e o José M. Castro Caldas tivemos uma ideia. Contrastar esta contribuição com as preocupações «socialistas-liberais» e morais de um dos últimos economistas políticos clássicos – John Stuart Mill – e com a sua defesa das virtudes da empresa democrática. Mill não se sai nada mal desta comparação. O resultado deste exercício é um artigo que está no sempre moroso processo de submissão a uma revista académica britânica de economia política. Se tudo correr bem, será publicado lá para o final de 2009. Entretanto, podem ler uma versão que saiu na oficina do CES.

Acho que temos algumas preocupações convergentes com os economistas libertários de esquerda. Por isso, talvez isto possa interessar, por exemplo, a Miguel Madeira, que é, tanto quanto leio, o mais consistente defensor desta linha na blogosfera. Como diz Boaventura de Sousa Santos: «temos de ter a infinita paciência de quem constrói utopias». Utopias como configurações realizáveis que ainda não existem ou que existem em embrião nos interstícios. Devemos usar algum engenho e alguma ciência para afastar utopias que não existem, nem nunca existirão, porque vivemos em sociedades humanas complexas e a hipótese da abundância torna tudo demasiado fácil...

Não se pode parar à porta das empresas

Pedro Sales é um rigoroso jornalista de combate na blogosfera. Investigação rima sempre com excelentes postas. O zero de conduta, para além de outras coisas, tem informação importante que, muitas vezes, não encontramos nos jornais convencionais portugueses. É o caso desta notícia sobre a Nestlé. Uma empresa é capaz de muitas coisas para preservar o seu negócio. Até pagar para espiar activistas da ATTAC suiça (Associação para a taxação das transacções financeiras para ajuda ao cidadão) que estão a escrever um livro sobre a Nestlé. Muitos param o seu escrutínio ético-político à porta das grandes empresas. Não convém conhecer os «segredos íntimos» de muitas das suas práticas e relações sociais de produção e de distribuição. É esta a diferença. Nós queremos transparência. Em muitas áreas, em cada vez mais áreas, as empresas não podem ter segredos. Questão de democracia.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

O neoliberalismo é mais do que um slogan

Durante demasiado tempo, mostrando o provincianismo e o preconceito que ainda marcam o debate das ideias em Portugal, muitos foram os que consideraram que a expressão neoliberalismo não passaria de um slogan sem qualquer dignidade intelectual, usado apenas pela "extrema-esquerda" para efeitos de propaganda. No entanto, um olhar de relance por alguma literatura académica, sobretudo anglo-saxónica, nas áreas da economia política, da sociologia, dos estudos de desenvolvimento ou da história das ideias facilmente revela que este termo é há muito usado de forma rigorosa e bem fundamentada. Para além da ênfase nos processos de privatização, de liberalização financeira e comercial ou de desregulamentação das relações laborais, uma das dimensões que tem sido recentemente sublinhada nos estudos sobre o neoliberalismo, como conjunto de ideias que inspiram as políticas públicas, é a sua aposta numa profunda reconfiguração do Estado e das suas funções. O resto pode ser lido no meu artigo mensal no Jornal de Negócios.

Nota: já sei que os neoliberais vão dizer que não, que o que eles realmente querem é reduzir o «monstro». Se calhar até são capazes de invocar o nome dos santos da casa. F. A. Hayek pode vir à baila. Desculpem a obsessão, mas não é em vão que se está investigar este economista político neoliberal (ele até usa a expressão algumas vezes...). Pois bem, foi Hayek que afirmou: «é o carácter e não o volume da actividade governamental que é importante» visto que «uma economia de mercado funcional pressupõe certas actividades por parte do Estado» (Constituição da Liberdade, 1960, p. 194). Quais? Onde é que se traça a linha? As que forem necessárias, onde for preciso, para servir os interesses das elites e acabar com todos os «atavismos» socialistas. Desde Pinochet até Bush, passando por Thatcher ou por Reagan, que é, na prática, assim. Muita, digamos, flexibilidade. De resto, acho que há muito menos diferenças entre as teorias e as práticas do que se diz.

Fazer melhor

«Vieira da Silva fez melhor do que um governo de direita». Não somos nós a dizer. É Francisco Van Zeller, o «patrão dos patrões», que decidiu ser transparente em entrevista ao Jornal de Negócios. Nem mais, nem menos. Este ministro e esta equipa percebem do assunto e souberam muito bem até onde podiam ir. Isto é mérito de especialistas. Alterações, aparentemente pequenas e subtis, fazem toda a diferença na evolução das relações laborais. Reduzir os salários, perdão os custos, por via da adaptabilidade, minar a única central sindical que ainda tem peso (partir a espinha à CGTP voltou a ser uma orientação de política) e promover todos os oportunismos laborais. Leiam o dossiê sobre trabalho e sindicalismo na ops! se quiserem perceber para onde nos estão a levar. É que tudo começa no trabalho. Tudo o que nos importa na política: Estado Social, democracia, igualdade.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Os resultados da utopia dos mercados financeiros «livres» III

A mão visível, que os neoliberais, com evidente desfaçatez e desonestidade, nunca hesitam em morder em tempos de acalmia, lá vai gerindo, como pode, os danos sistémicos do seu capitalismo financeirizado em tempos de turbulência. Os EUA não eram o modelo a seguir? Pois chegou a hora da socialização das perdas. Fora dos círculos onde o mercado é uma fé que não se discute, é agora evidente que o capitalismo, na sua actual configuração, não tem como sair espontaneamente da crise sem causar devastação económica e sofrimento social assimetricamente distribuídos. É também por isto que são cada vez mais os que reconhecem que chegou a hora das reformas estruturais. É preciso um sector financeiro com rédea mais curta, muito mais curta. Quantas mais crises financeiras teremos de suportar?

Os resultados da utopia dos mercados financeiros «livres» II

É claro que os neoliberais de blogoesfera podem continuar entretidos com as suas patuscas teorias monetárias e com as suas fantasias anarco-capitalistas. Para nós, à esquerda, até é melhor assim. Esquecem-se, claro, que a inflação não é, no actual contexto, um fenómeno monetário, que o problema da deflação dos activos, e sua interacção com a dívida, está aí e que a criação de moeda, em sentido amplo (o que interessa), num sistema capitalista com instituições financeiras sofisticadas, é também um processo endógeno à finança, relacionado com as operações dos bancos nas suas inovadoras actividades de concessão de crédito. Minsky, um dos melhores discípulos de Keynes, explica tudo isto. Talvez por isso é agora popular no Financial Times ou em algumas boas instituições académicas. Aliás, não é por acaso que os bancos centrais desistiram de seguir a evolução dos agregados monetários e muito menos de os controlar. O monetarismo, em sentido estrito, já foi enviado há algum tempo para um sítio onde está bem: o caixote do lixo das ideias testadas e falhadas.

Os resultados da utopia dos mercados financeiros «livres»

«Em mais uma acção concertada, Tesouro e Reserva Federal dos Estados Unidos tomam medidas para impedir as dolorosas liquidações necessárias à limpeza do mercado». Via blasfémias. Podemos todos imaginar a natureza da limpeza que «o mercado» faria se a Fannie Mae e a Freddi Mac, duas empresas que detêm ou garantem cerca de 5,2 biliões dólares de crédito hipotecário (40% do total), fossem à falência (dados no Público). Até Ben Bernanke, que começou o seu mandato a elogiar o dinamismo do mercado sem fim em discursos no Cato Institute, já fala em reforçar a regulação para diminuir a miopia face ao desastre que a «coerção da concorrência», em agentes dopadas a incentivos pecuniários, inevitavelmente gera. «Mais vale fracassar com as convenções do que ser bem sucedido contra elas» já dizia Keynes, que conhecia como ninguém a lógica mimética dos mercados financeiros, o jogo das expectativas em contexto de incerteza sobre o valor fundamental dos activos e as perversidades da busca de liquidez em momentos de pânico.

Nota: este é o novo livro de Larry Elliott, o excelente editor de economia do The Guardian.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

O jornal de toda a esquerda

O número de Julho do Le Monde Diplomatique – Edição Portuguesa tem um artigo que escrevi em co-autoria com o Nuno Teles: «Portugal e o neoliberalismo como intervencionismo de mercado». É parte de um dossiê sobre o futuro do Estado que conta também com um artigo de Jorge Sampaio: «O mundo em mutação e o Estado – em crise?». Destaque ainda, na componente portuguesa do jornal, para o artigo de Joaquim Dionísio, dirigente da CGTP, sobre as mudanças em curso na legislação laboral. Podem encontrar aqui o editorial, mais informação e excertos de alguns artigos.

Entretanto, o nosso artigo já mereceu resposta da direita intransigente. Chamem-me conservador, mas eu tenho o hábito de só criticar textos que leio. Preferências chamar-lhe-ão alguns, rendidos ao subjectivismo radical a que uma certa blogoesfera é atreita. Valores dirão outros, que sabem que o debate intelectual não progride sem regras e tradições partilhadas. Tudo isto para me referir ao facto de jcd do blasfémias achar que pode «criticar» um texto de 16000 caracteres pelo resumo de duas linhas, que nem sequer é nosso, que recebe no e-mail de divulgação do jornal. O resto é o que se pode esperar destas práticas intelectuais: uma caricatura das nossas posições. E que tal comprar o jornal?

Mercado e Estado IV

Antes de poder concluir (ver I, II e III) devo ainda lembrar que na nossa sociedade o acesso a alguns mercados é condicionado. O Estado estabelece muitas vezes quem pode e quem não pode oferecer serviços ou produtos, e mesmo quem pode e quem não pode adquiri-los com dinheiro. O caso de profissões como a medicina, a advocacia, o ensino… permite ilustrar este ponto com clareza. Não «vende» serviços de saúde ou assistência judiciária, quem quer. Há uma qualificação, sujeita a reconhecimento, que condiciona o exercício da profissão. E, nos casos que estão a servir de exemplo, há mesmo uma obrigação de pertença a uma ordem profissional e de adesão a um código deontológico. Será isto uma mera sobrevivência corporativa, sem nenhuma razão de ser, ou antes uma pré-condição da existência destes mercados?

O que há de particular nestes mercados que os torna diferentes do mercado municipal da minha terra? Distintos economistas contemporâneos como Arrow e Ackerlof falam a este propósito de «assimetria de informação». O meu médico ou o meu advogado sabem muito mais da minha saúde, ou da alhada em que me estou a meter, do que eu próprio. Se assim não fosse, eu nem sequer recorria aos seus serviços. E se recorro é na presunção de que: (a) têm as qualificações necessárias; (b) não vão manipular a minha ignorância em seu benefício. Saber que a qualificação é certificada ajuda-me a acreditar em (a). Saber que existe o juramento de Hipócrates, alivia a minha inquietação quanto a (b). Se eu deixar de confiar em (a) e em (b) pura e simplesmente deixo de recorrer a estes serviços especializados. Perspicaz como sempre Arrow notava: a troca depende da confiança. E a confiança é um bem que não pode ser adquirido no mercado – se tenho de a comprar já tenho dúvidas quanto ao que está a ser adquirido.

Enquanto consumidor também tenho de estar preparado para limitações de acesso (mais ou menos contestáveis). Quem pode e quem não pode comprar tabaco e bebidas alcoólicas? Quem pode e quem não pode comprar explosivos? Quem pode e quem não pode comprar armas de fogo?

Aos pontos de I, II e III venho portanto acrescentar (d): o acesso a alguns mercados é condicionado por um entendimento (sancionado pelo Estado) das capacidades requeridas para prover certos bens e serviços ou para os usar.

A lógica da adaptabilidade II

Manuel Esteves do DN continua o seu importante trabalho de investigação ao «acordo» para um novo código de trabalho. Agora são as «férias forçadas». O que é que se esconde por detrás da adaptabilidade? Quem é que tem de se adaptar a quê? Algumas perguntas que temos de fazer. As novas regras dão mais poder aos patrões, perdão, às empresas. Francisco Van Zeller, que desde o início deste processo tem mostrado uma notável confiança, parece assim ter razões para estar satisfeito com o acordo que assinou. E a UGT? Quais são as suas razões?

domingo, 13 de julho de 2008

Só a opinião conta

Já aqui defendemos várias vezes esta tese, mas acho que nunca é demais repetir: na luta das ideias, a esquerda socialista tem muito a aprender com a «direita gramsciana» e em particular com F. A. Hayek, um dos seus mais brilhantes economistas políticos. Temos então de agir como se fosse totalmente verdade o que ele disse um dia: «nada é inevitável na existência social e só o pensamento faz que as coisas sejam o que são». Só a opinião conta na condução dos assuntos humanos. Em Portugal, essa opinião tem que ser cada vez mais socialista. Quebrar a hegemonia neoliberal é tarefa para todas as esquerdas.

Assim, só podemos saudar o aparecimento da ops! Revista de Opinião Socialista. O lançamento é amanhã. A avaliar pelos editores e pelos colaboradores e temas do primeiro número, isto promete: «Manuel Alegre e a Corrente de Opinião Socialista em Lisboa lançam dia 14, segunda-feira, no Hotel Altis, às 18h30, a ops! – REVISTA DE OPINIÃO SOCIALISTA –, com o primeiro número dedicado ao tema Trabalho e Sindicalismo. A apresentação da revista inclui a realização de um debate sobre Trabalho e Sindicalismo, com Manuel Alegre, Manuel Carvalho da Silva, João Correia e José Leitão, com moderação de Elísio Estanque.Neste número, a actualidade da reforma do código do trabalho, a crescente conflitualidade social e o papel do sindicalismo pontificam o dossiê editado por Elísio Estanque, tendo como convidados André Freire, Ana Paula Marques, Patrícia Jerónimo, entre outros. A revista inclui ainda uma extensa entrevista com Manuel Carvalho da Silva, sobre o processo negocial do código do trabalho e as dificuldades do sindicalismo em Portugal».

Elas encantam, mas quem é que lhes limpa o camarim na Europa de Trichet?

«É bem provável que Amy Winehouse ou Cat Power nem sonhem que por detrás dos seus camarins de cinco estrelas, em cubículos de cimento, estejam a repousar os homens e mulheres que acabaram de lhes limpar o quarto. Muito menos suspeitarão que quem lhes trata do conforto trabalhe em turnos contínuos de 12 horas, com 30 minutos de intervalo não pagos, quanto basta para uma sanduíche mal amanhada…». Leiam esta reportagem, como jornalismo de combate, da autoria de Miguel Portas. Tornar visível a exploração e a miséria que se escondem na sociedade do espectáculo neoliberal. Passou-se na Irlanda. Já agora, também vale a pena ler este seu artigo de opinião sobre os problemas da UE: «Na Europa, quem manda é o senhor Trichet e não um presidente que por aí passe. Se alguém quiser perceber por onde deveria começar a mudança na União, aqui tem a minha resposta: pelo retorno da política ao posto de comando».

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Ele há coisas que fazem perder a compostura…

É triste que do debate do estado da nação no parlamento vá ficar como memória (efémera) um «tenha tento na língua» dirigido por um primeiro-ministro a um deputado. Os «porque não te calas?» por parte de figuras de autoridade parecem estar a tornar-se frequentes. O exemplo vem de «cima». Parece até que em França houve um jornalista que foi efectivamente calado.

Não há engenharias mercantis grátis

A desorientação e demagogia políticas do PSD tornam a vida demasiado fácil ao governo e aos seus intelectuais orgânicos na questão dos investimentos públicos e do seu financiamento. Afirma Vital Moreira: «para haver investimento em infra-estruturas públicas não é necessário ter dinheiro público disponível nem sequer recorrer ao endividamento público, bastando optar pelo investimento privado no quadro de parcerias público-privadas». E diz mais: «a quase totalidade dos investimentos previstos - novo aeroporto, nova travessia do Tejo, rede ferroviária, estradas, barragens, portos, e mesmo hospitais, escolas e prisões - será feita com dinheiro privado».

Dinheiro privado e muito dinheiro público à mistura, controlo privado de mais sectores estratégicos, lucros (rendas talvez seja uma expressão mais apropriada) garantidos pelo Estado, diminuição da transparência nas contas públicas, subordinação do Estado aos interesses dos grupos privados rentistas cada vez mais incentivados a investir em «negócios» sem risco. De facto, nestas «parcerias» do bloco central de todos os interesses, o risco dos projectos de investimento, dada a natureza dos equipamentos, é suportado integralmente pelo Estado. Os privados investem sabendo de antemão qual a rendibilidade que podem esperar. Assim se supera, com a ajuda dos contribuintes, a principal fonte de incerteza em capitalismo. Não há mesmo engenharias mercantis grátis. Como Vital Moreira aliás reconhece.

Alternativas? Assumir que os investimentos são públicos e que público deve ser o controlo de infra-estruturas e de equipamentos tão necessários para o desenvolvimento do país. A dívida pública deve servir para financiar investimentos que ajudarão a aumentar a produtividade futura da economia e que também beneficiarão as gerações futuras. É justo e racional que os encargos sejam repartidos ao longo do tempo. A solidariedade intergeracional é muito mais simples e transparente. Os grupos privados que vão investir para os sectores dos bens transaccionáveis onde as suas capacidades empreendedoras podem ser melhor testadas. É preciso traçar linhas. O PS tem vindo a apagá-las. Vamos pagar um preço elevado por isto.

Do cherne ao BCE: o desastre europeu

Através do Beat the Press do norte-americano Dean Baker, um dos melhores blogues de economia que eu conheço, fiquei a saber que, em Bruxelas, o cherne lamentou o dólar fraco, que prejudica, e muito, a competitividade das exportações europeias, ao mesmo tempo que manifestou o seu apoio à irresponsável subida das taxas de juro efectuada pelo BCE. Acentua-se assim o diferencial das taxas de juro dos dois Atlântico. É evidente que isto só vai contribuir para a fraqueza, até agora bem controlada, do dólar. Os norte-americanos agradecem que seja a Europa a suportar os fardos da correcção dos seus desequilíbrios externos. Dean Baker expõe certeiramente a lógica que subjaz à decisão do BCE: a subida das taxas de juro «combate a inflação diminuindo o crescimento nas economias europeias, aumentando o número de desempregados e reduzindo o poder reivindicativo dos trabalhadores». Já sabemos quem anda a pagar os custos do enviesamento deflacionário da política monetária do BCE. Depois ainda há quem tenha a lata de dizer que os problemas de desemprego na Europa se devem à «rigidez do mercado de trabalho». Como se defende neste excelente relatório, o BCE devia ter descido as suas taxas de juro em meio ponto percentual. Uma taxa de inflação moderada, e cujo agravamento é, em larga medida, importado, representa uma brincadeira de crianças ao pé dos riscos de um período prolongado de estagnação ou de recessão. A crise financeira parece estar longe de ter terminado. A especulação que a gerou combate-se com mais regulação, taxação e controlo de capitais. Sobre isto o BCE nada tem a dizer. O fundamentalismo de mercado em todo o seu esplendor. Até quando?

quinta-feira, 10 de julho de 2008

A lógica da adaptabilidade

Manuel Esteves, um atento jornalista económico do DN, mostra hoje como a «adaptabilidade horária rima com redução do custo do trabalho suplementar». Para além de manter o essencial do Código Bagão Félix, justamente criticado por Vieira da Silva quando era um consequente dirigente socialista na oposição, a nova proposta de Vieira da Silva, agora ministro de Sócrates, cria as condições para que os patrões - hoje numa posição de maior força devido, entre outros factores, ao desemprego elevado - possam reduzir os custos do trabalho. A competividade por via da contracção dos salários. Temos ido longe com esta estratégia. A política do «socialismo moderno» é mesmo a política da austeridade assimétrica permanente. É por estas e por outras que o governo é aplaudido pelo chamado Compromisso Portugal. É evidente que isto só pode deixar os intelectuais «liberais» do PS muito satisfeitos.

A importância da provisão pública

«A Câmara de Paris decidiu remunicipalizar o abastecimento de água (. . .) O presidente justifica esta opção com a necessidade de melhor gestão e controlo dos sistemas de abastecimento, conseguindo ganhos de produtividade e garantindo um produto de alta qualidade com um custo controlado e mais estável, uma resposta aos sucessivos aumentos de preço. Um relatório da Assembleia Nacional concluiu que a água tem um preço 33% mais elevado quando os serviços são concessionados a privados. Em Paris os distribuidores privados obtiveram um lucro de 28%. Não deixa de ser irónico constatar que a remunicipalização se dá no país de onde são originárias as grandes multinacionais do sector da água, que operam também entre nós. Portugal costuma copiar as modas com algum atraso. Ainda estamos na fase das concessões aos privados, àqueles que na sua terra as estão a perder. Paris sempre esteve um pouco à frente». Excertos de um oportuno artigo de Renato Soeiro. Não sei quem foi o liberal que afirmou um dia: «pior do que um monopólio público só mesmo um monopólio privado». Tinha toda a razão.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Desgoverno da política económica é o principal inimigo da UE

O BCE tornou-se um aliado do Não irlandês ao Tratado de Lisboa. No meio de uma crise do imobiliário, os Irlandeses vêm os seus empréstimos tornarem-se mais caros e sabem que isso se deve à política monetária da UE. Depois da última subida da taxa de juro é preciso ser muito optimista para acreditar que a Irlanda aprovará o Tratado dentro de um ano, mesmo que acompanhado de um anexo clarificador de aspectos polémicos.

Por outro lado, este aumento da taxa de juro vai reforçar a corrente de opinião que na Itália pondera o abandono do euro. Uma eventual recessão na Zona Euro em 2009, em boa parte imputável à orientação do BCE, poderia criar um clima favorável ao aparecimento deste mesmo debate noutros países. Neste contexto, só espanta que analistas encartados e governantes continuem a insistir na tese de que o problema da UE está na falta de “comunicação” entre as elites e os cidadãos.

Em Portugal a esquerda (ainda) não foi capaz de questionar o argumento da “espiral inflacionista” que o BCE utiliza para justificar a sua política restritiva. Num tempo de estagnação económica na Zona Euro, e após décadas de terciarização das economias acompanhada de um enfraquecimento generalizado do sindicalismo, o BCE gere a política monetária com se estivesse nos anos 70. Não reconhece que as estruturas económicas e sociais de hoje estão longe de favorecer a conversão de uma inflação importada numa inflação puxada pelos salários. Segundo George Irvin, “é altamente improvável que venhamos a assistir à repetição de uma estagnação acompanhada de inflação a dois dígitos (estagflação). O que é mais provável é uma estagnação com baixa inflação. O pior cenário para a UE é que o excessivo zelo anti-inflacionista [do BCE] nos conduza a uma deflação de tipo japonês por uma década ou mais.”
É caso para dizer que o monetarismo do BCE se tornou num perigoso incendiário das sociedades europeias (ver a análise de Patrick Artus, professor de política monetária na Sorbonne).

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Mercado, socialismo e o crescimento chinês

Há quem diga que a receita para o crescimento exponencial da China nos últimos 30 anos está mais nos elementos socialistas do seu modelo do que nos elementos mercantis. O herege, desta feita, é um professor universitário associado à 'nova esquerda' chinesa. Diz Cui Zhiyuan que a propriedade pública da terra, as empresas colectivas no mundo rural e o controlo estatal de empresas estratégicas têm sido centrais na estratégia chinesa. Eu acrescentaria o controlo dos movimentos de capitais - e não esqueceria a nada socialista repressão feroz dos movimentos sindicais. Por outro lado, não menosprezaria a importância do funcionamento dos mecanismos de mercado na afectação de grande parte dos bens e serviços. A ilusão das receitas do 'pós-consenso de Washington' (que se resumem quase sempre a «liberalizar, desregulamentar, privatizar», com preocupações sociais ou institucionais num ponto ou noutro) é que dificilmente sobrevive a esta história.

Mercado e Estado III


Sugeri anteriormente (I e II) que: (a) por detrás do conceito abstracto de «mercado» existem na realidade mercados que diferem em qualidade; (b) a existência de um mercado particular depende de um entendimento (de natureza moral) acerca do bem em causa.

Ilustrei (b) com o caso extremo de mercados repugnantes (seres humanos, órgão humanos) que o Estado interdita. Quero agora passar dos casos extremos a outros mais corriqueiros.

Tomemos o caso do trabalho. Na nossa sociedade, o trabalho, ou a capacidade de trabalho, é uma mercadoria. Toda a capacidade de trabalho? Supostamente a capacidade de trabalho das crianças não deve ser uma mercadoria. Trabalho em quantidade ilimitada? Supostamente apenas dentro de limites diários, semanais, anuais… A ausência de restrições nestes aspectos tornaria o mercado de trabalho, num mercado repugnante.

Mas vejamos em mais detalhe o que acontece quando compramos capacidade de trabalho? Adquirimos o poder de dirigir os actos de outrem em nosso benefício durante um período limitado de tempo. Quem vende trabalho cede parte da sua autonomia pessoal. A relação de trabalho difere portanto da relação de prestação de serviços com que muitas vezes se procura confundir. Mas será que com a aquisição do trabalho de outrem adquirimos um poder absoluto sobre a pessoa que o transporta? De modo nenhum, existem limites (sempre contestáveis). Se assim não fosse o mercado de trabalho seria um mercado repugnante.

Sabemos, por outro lado, que há animais que são objecto de compra e venda. Mas o direito de propriedade sobre animais não confere o direito irrestrito de poder dispor deles em total liberdade. Se assim fosse o direito de propriedade e o mercado de animais seria repugnante. E a terra? Se fosse possível para o seu proprietário dispor dela de forma irrestrita – deixa-la ao abandono ou urbaniza-la livremente, impedir a passagem a todos reduzindo a liberdade, inclusive de outros proprietários… – isso não retiraria legitimidade à propriedade privada e ao mercado de terra?

Há ainda outros casos tão vulgares como os anteriores que merecem consideração. Pensemos em bens cujo uso pode acarretar consequências (riscos) que não são rigorosamente conhecidas e antecipáveis. É evidentemente o caso de muitos medicamentos, mas também telemóveis, energia nuclear, organismos geneticamente modificados … Nestes casos a existência dos mercados (sempre contestável), a própria produção dos bens, está sujeita a um conjunto muito detalhado de normas legais que supostamente permitem controlar os riscos dentro de limiares aceitáveis. Na ausência destas regras (e quem sabe muitas vezes apesar delas) estes mercados seriam (moralmente) repugnantes.

Quero portanto acrescentar agora (c) que o entendimento moral acerca do bem, com base no qual o Estado permite ou impede as transacções mercantis, pode não depender só da natureza do bem, mas também das regras que enquadram a sua produção e utilização.