No último programa Prós e Contras, em que se criticava o escândalo que representa a evolução relativa das remunerações dos gestores de topo portugueses nos últimos anos, Fátima Campos Ferreira, num aparte, observava que tal situação se passava no sector privado da economia. Quereria a jornalista dizer que a situação não merecia uma tão intensa condenação moral até porque os custos dessas remunerações não são suportados pelo erário público, antes resultam de decisões privadas «voluntárias» menos passíveis de crítica política e de avaliação moral. Esta ideia, que funda a artificial separação entre o domínio dos assuntos do Estado, sujeita a avaliação política e moral, e um suposto domínio privado, apolítico e amoral, das empresas e do mercado merece a nossa contestação. Só através da superação desta dicotomia é possível colocar a discussão no terreno certo, que é o do tipo de valores que devem definir as relações económicas entre os indivíduos e os resultados que eles assim obtêm, no público ou no privado. Até porque o que se passa na economia, em toda ela, afecta o que cada um de nós é capaz de ser e de fazer nas outras esferas da vida social.
Em primeiro lugar, é bem lembrar, é o Estado que em larga medida institui a economia. O que se passa no sector privado é o resultado de decisões políticas, enquadradas por valores, que estabelecem as «regras do jogo» que influenciam quem se apropria do quê e porquê. Ou seja, o facto de os gestores das empresas privadas portuguesas ganharem o que ganham não é independente da maneira como o Estado enquadra a actividade das empresas privadas, de como estrutura os direitos e obrigações que regem o que se passa para lá do portão onde está inscrito «proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço». O mercado e a propriedade privada não são instituições de geração espontânea e a forma como são enquadradas pela comunidade política influencia o que cada um de nós obtém nas suas «actividades privadas». É por isto que entre os países capitalistas temos situações tão variadas em termos de desigualdade salarial. Em segundo lugar, o que se passa nas empresas privadas afecta as capacidades, os recursos e o poder que cada um de nós detém fora do seu horário de trabalho. A concentração excessiva de dinheiro e de propriedade tende a converter-se em concentração de poder político, em capacidade para influenciar e moldar decisões que dizem respeito a toda a comunidade.
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1 comentário:
Muito bem. É indispensável desmistificar que o escândalo de certas remunerações milionárias por ocorrerem no privado não é escândalo.
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