quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Passos para novas oportunidades?


Luís Filipe Pereira, qual pêndulo, tem oscilado entre o grupo Mello e outros cargos políticos, sim que a política não pára à porta do grande grupo empresarial, tendo sido, por exemplo, Ministro da Saúde. Não me surpreende nada que tenha escrito esta semana um artigo no Negócios significativamente intitulado “a oportunidade no corte das despesas do Estado”, defendendo, entre outras predações, a multiplicação de “contratualizações” na área da saúde, ou seja, dinheiros públicos a financiar provisão privada, o que também envolverá renovadas entregas de hospitais públicos à gestão privada, na linha da experiência de gestão do hospital Amadora-Sintra pelo grupo Mello, que acabou como se sabe.

O seu ponto de partida é o argumento estafado e rebatido de que o Estado “absorve” 50% da riqueza do país. Uma parte das “absorções” são todas as prestações sociais com uma componente redistributiva. Outra parte, por exemplo, é criação de riqueza e de emprego, cujo pagamento é socializado através dos impostos, fazendo ainda menos sentido dizer que o Estado vive à custa do resto da economia do que dizer que qualquer empresa privada vive à custa do resto da economia, “absorvendo” riqueza, até porque o Estado “constitui” a economia capitalista privada, garantindo, pior ou melhor, os seus fundamentos legais e institucionais. A escola pública ou o serviço nacional de saúde, entre outros, são serviços públicos com valor, claro, tendo uma maior capacidade para combinar eficiência e igualdade do que a provisão privada.

Conhecemos bem a lógica geral de um certo tipo de estratégia empresarial: lucro garantido à custa do Estado e dos utentes, captura de recursos públicos, desperdício lucrativo. É toda uma cada vez mais transparente economia política que assim se reforça. Uma economia política onde os grupos económicos têm muito poucos incentivos para dar mais peso às suas EFACEC, aos bens transaccionáveis para exportação, e demasiados para se concentrarem nas auto-estradas, nas parcerias, nas rendas. Como temos repetido, a mensagem para estes grupos económicos deve ser só uma: ide trabalhar para os bens transaccionáveis para exportação e deixem os serviços públicos em paz, malandros…

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Dicionário actualizado

«Falhar não é opção, falhar não existe no dicionário do governo», assegurava no início de Agosto o ministro Álvaro Santos Pereira, numa genuina profissão de fé na via austeritária. Mas hoje, na entrevista à RTP, Passos Coelho revela, em duas passagens, estar consciente de que trilha o caminho que conduz ao abismo: quando admite que, daqui a quatro anos, as contas podem estar equilibradas mas a economia de rastos; e quando reconhece a possibilidade de vir a ser necessário um reforço da «ajuda» financeira externa.

A palavra «falhar» começou portanto, oficialmente, a fazer parte do dicionário do governo, ocupando talvez o espaço até aqui reservado à promessa de «conciliar austeridade com crescimento económico». Aliás, a entrevista sintetiza-se em cinquenta minutos de equilíbrio orçamental, a despesas e receitas, a cortes e impostos, sem lugar para uma referência digna à «estratégia do governo para o emprego e o relançamento da economia», outra expressão que - definitivamente - não consta do seu dicionário.

Lançamento


Em 2010, Portugal era o terceiro país da União Europeia com maior índice de precariedade laboral. Cerca de 23,2% dos trabalhadores por conta de outrem estavam ligados à sua entidade patronal por um contrato a termo ou por outro tipo de vínculo precário. Ao longo deste livro focam-se diversos casos que reflectem uma realidade que se impôs progressivamente nas mais diversas esferas laborais, da fábrica ao call center, do trabalho doméstico aos centros comerciais. Mais do que um mero reflexo de uma «batalha entre gerações», apresentamos aqui um conjunto de investigações que procuram interpretar o fenómeno da precariedade no quadro da evolução das relações de trabalho no nosso país.

Um livro, organizado por José Nuno Matos, Nuno Domingos e Rahul Kumar, que reflecte bem a atenção que tem sido dada a este crucial tema no Le Monde diplomatique - edição portuguesa.

Tiro-lhe o chapéu


Há um escrito do João Galamba no Jugular , já com alguns dias, que não deve passar sem a devida chamada de atenção. Além do mais contém uma interessante inconfidência que nos proporciona um vislumbre do que é a mente de um funcionário do BCE.

Realismo

O realismo é uma coisa muito bonita, seja à esquerda, seja à direita, sobretudo perante a desgraçada “eurite” nacional, apropriada designação cunhada por Luciano Amaral para descrever criticamente a miopia das elites políticas e intelectuais governamentais, mas também de uma grande parte da paralisada oposição de esquerda. Recupero então o seu artigo no Económico. Não é todos os dias que se vê uma ruptura tão clara, em particular na direita dita liberal, com a moralista sabedoria convencional em matéria de integração europeia e de austeridade.

Entretanto, o economista político Costas Lapavitsas, um dos principais dinamizadores do presciente Research on Money and Finance, publicou mais um artigo no The Guardian –“Grécia tem de entrar em incumprimento e sair do euro: o debate real é como”: “Incumprimento e saída causariam instabilidade a nível internacional. A dívida grega pode não ser suficientemente importante para ameaçar directamente os bancos europeus, mas o sistema bancário mundial está fragilizado. Uma acção grega perturbaria os mercados secundários da dívida soberana, gerando uma crise de grande amplitude. No entanto, as instituições europeias só podem culpar-se a si mesmas porque as suas políticas estão a fazer com que a Grécia saia da Zona Euro.”

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O novo paradigma do Dr. Medina Carreira


O Dr. Medina Carreira voltou noutro canal. Um longo tempo de antena, sem contraditório. Na primeira parte nada de novo: sangue, suor e lágrimas sem saída como dantes. Pelo meio a mesma crítica fácil ao que ele pensa ser o keynesianismo: não funciona em economia aberta [o que é interessante porque significa que pode ser verdadeiro num mundo que até ver é uma economia fechada].

Mas, na segunda parte uma descoberta extraordinária. Uma coisa – diz o Dr. Medina Carreira - “de que ninguém fala”: a globalização, a mobilidade dos capitais e a consequente desindustrialização e decadência do ‘Ocidente’. Contra isso tudo ouvi-o mesmo proferir a palavra tabu - ‘proteccionismo’.

Satisfação com esta evolução anti-liberal do Dr. Medina Carreira? Pelo contrário. A mistura de austeridade e de anti-liberalismo não anuncia nada de bom.

Há causas estruturais para a crise

"A Alemanha, em particular, necessita de reconhecer que, se as outras nações europeias vão pedir menos emprestado, vai ter que emprestar menos, e, como mostra a aritmética, tal significará um excedente comercial mais pequeno."

Lawrence Summers no FT.

Eu acrescento que isso significa maior investimento interno e salários mais elevados para os trabalhadores alemães.

Diz-me onde não cortas dir-te-ei o que está a passar-te pela cabeça

Em tempos de cortes a torto e a direito (‘transversais’) pode ser mais revelador olhar para o que não se corta do que para aquilo que é cortado. O governo diz que não cortar na ‘segurança’ é estratégico para o país. Evoca-se o turismo e a vulnerabilidade dos mais fracos.

Mas será mesmo isto? Ou pelo contrário, há uma fina pelica ‘democrática’ que está já a abrir fendas para deixar ver o que na realidade sempre esteve lá dentro?

Bater a concorrência

Os Ladrões de Bicicletas ganharam a "caixa" ao Financial Times.

domingo, 18 de setembro de 2011

Planos

A integração europeia não teria arrancado como arrancou sem o empurrão imperial dos EUA no pós-guerra, decisivo sob todos os pontos de vista. Agora a desintegração europeia não será evitada se não se seguir o conselho norte-americano: “O secretário norte-americano do Tesouro, Timothy Geithner, exortou hoje os ministros das Finanças da Zona Euro a darem mais estímulos à região”. O míope centro europeu, que pode contar com periferias subalternas, recusou a sugestão de um governo norte-americano que quer tudo menos a desintegração europeia, obra da austeridade, claro. Continuaremos sem um mecanismo político decente de reciclagem dos excedentes dentro da Zona Euro, não se vislumbrando por aí qualquer plano Marshall...

À procura de futuro


Aproxima-se a data da Conferência “Economia Portuguesa: uma Economia com Futuro” (Lisboa, 30 Setembro 2011, 9.00 horas, Auditório 2, Fundação Gulbenkian).

Como se pode ler no sítio onde se encontram todas as informações: “A Conferência é promovida pela rede Economia com Futuro - uma rede de investigadores e professores de economia e de outras ciências sociais que procuram contribuir para a renovação do pensamento e discurso económicos, para a melhoria do conhecimento sobre a economia portuguesa e dos seus problemas e para a participação na descoberta de soluções com futuro em diálogo no espaço público”.

O programa está aqui. E a inscrição (gratuita) aqui.

sábado, 17 de setembro de 2011

Saída grega?

No último post aludi ao destino grego, a obra da austeridade europeia: 7% de quebra do PIB, taxa de desemprego superior a 16%, défice, a tal variável endógena, que não pára de aumentar, o mesmo naturalmente se passando com a dívida. Entretanto, mão amiga fez-me chegar um estudo de Nouriel Roubini pelo qual teria de pagar para ler, um economista próximo da linha FMI, mas que até tem tido surpreendentes formulações e que encara de frente um debate inadiável. Sublinho alguns dos principais pontos.

Em primeiro lugar, Roubini denuncia as engenharias financeiras que estão sendo preparadas para supostamente aliviar o fardo da dívida grega, mas que, na realidade, apenas protegem os credores privados, socializando, através das instituições europeias, as futuras perdas de uma reestruturação grega e transferindo a dívida pública grega do quadro legal nacional para o internacional, o que vulnerabiliza o Estado grego em futuras disputas. A dívida é tipicamente emitida na moeda com curso legal no país...

Em segundo lugar, e partindo de cálculos que apontam para a indispensabilidade de a Grécia ter um alívio do fardo da sua dívida da ordem dos 50%, Roubini defende que o Estado grego use a ameaça do incumprimento para forçar uma solução europeia decente que implique um alívio dessa ordem. No entanto, mesmo que isso seja alcançado, o problema económico grego não ficaria resolvido porque a sua inserção externa permaneceria intocada e disfuncional e a austeridade europeia não desapareceria. Esta é a hipótese crucial.

Aqui chegados, e em terceiro lugar, Roubini defende a saída do euro, como alternativa ao cenário de austeridade sem ajustamento cambial. Esse cenário europeu implicará uma década de intenso retrocesso económico e social, num cenário como o argentino até Dezembro de 2001. A partir daí, a Argentina abandonou a paridade fixa com o dólar, reestruturou a sua dívida, desvalorizou a sua moeda e começou a crescer rapidamente, mesmo tendo um peso das exportações inferior ao grego, conseguindo melhorias substanciais nas condições de vida.

Em quarto lugar, Roubini defende o óbvio: em caso de saída, todos os passivos e activos internos seriam denominados na nova moeda. As dívidas das pessoas, para compra da habitação, por exemplo, passariam para a nova moeda.

A desvalorização cambial teria repercussões negativas sobre o poder de compra dos salários ou das pensões, claro, mas este processo automático, digamos, parece preferível aos cortes nos salários que estão a ser promovidos pela troika, até porque é mais rápido e mais facilmente reversível. Uma nota de rodapé minha: em regime de capitalismo essencialmente descoordenado, o corte de salários só se consegue através da pressão do desemprego de massas duradouro, da desregulamentação acrescida das relações laborais, da destruição do que resta da negociação colectiva e do medo adicional na economia que também se consegue com o despedimento mais fácil e barato. Este é um processo deflacionário lento e com encadeamentos económicos perversos, sobretudo estando as famílias tão endividadas, que deixa um lastro duradouro na economia política de um país, alterando estruturalmente correlações de forças sociais. É o plano da troika para as periferias, já o sabemos.

E a dívida externa? Roubini, traçando um paralelismo com a Argentina, defende a sua renegociação. É evidente que para almofadar a transição, terão de ser instituídos controlos de capitais e o sistema financeiro terá de ser alvo de controlo político apertado. As dificuldades das finanças públicas seriam atenuadas pela recuperação da soberania monetária e pela articulação entre o “Tesouro” e o Banco Central, a capacidade de financiar monetariamente o Estado com conta, peso e medida.

De resto, e em último lugar, Roubini, acha que se os restantes países da Zona Euro e as instituições financeiras internacionais tiverem juízo, a saída grega será financeiramente suportada, ao contrário do que aconteceu na Argentina, a quem o FMI tirou o tapete, o que não impediu a recuperação, mas impôs alguns custos de transição adicionais.

Com o tempo a passar, a economia grega a colapsar e sem solução europeia à vista, já aqui tantas vezes defendida, este impossível cenário de saída, com muitos riscos políticos, que é o que a mim mais me preocupa, tornar-se-á inevitável.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

O capital da troika

A austeridade fracassou. O que propõe a troika? Austeridade reforçada, mas com a redução dos juros cobrados para tentar aliviar a pressão financeira. Tenta-se desta última forma evitar o destino grego, ao mesmo tempo que se insiste na economia de austeridade que o torna cada dia mais provável. No meio desta flagrante contradição, o “acordo” com a troika, tão celebrado na altura pela brigada do reumático em que se transformou a “elite” económica, política e intelectual nacional dominante, já não vale o papel em que está escrito, não pode comprometer ninguém passado menos de meio ano da sua assinatura, tantas foram as mudanças.

No fundo, confirma-se que pouco se aprendeu com todos os fracassos dos programas de ajustamento estrutural no “Sul global”. Estamos perante instituições que foram desenhadas para não aprenderem. CE, BCE e FMI são instituições políticas com muito poder, mas que prescindem da democracia e dos seus ingredientes – debate e escrutínio públicos, sociedade civil activa, participação e eleição. Por muito fragilizados que estejam, estes mecanismos, de base ainda essencialmente nacional, são a nossa melhor esperança para reconhecer e corrigir os erros colectivos e, elemento crucial deste processo, para que possam emergir e afirmar-se contrapoderes às facções do capital com escala internacional e com toda a influência nestas instituições.

Sem este elemento de economia política, não se compreende o sistemático enviesamento de classe das políticas que são prescritas pelas troikas: da pilhagem dos bens públicos através de ruinosos processos de privatização às políticas regressivas de concorrência internacional pela desvalorização directa e indirecta do trabalho, reduzido a um custo, e pela taxação cada vez mais baseada nos impostos sobre o consumo, os impostos que penalizam mais os que não podem deixar de consumir todo o seu cada dia mais parco rendimento. Os austeritários não precisam de estudos sérios para tomar decisões que afectam a economia política dos países. Precisam apenas de manter o seu poder, tarefa facilitada quando têm à sua frente um governo subalterno, formado por crentes ingénuos no romance de mercado ou por realistas testas de ferro do capitalismo internacional, um governo que exprime a extensão da crise da democracia, a extensão do seu esvaziamento pela ressurgência política de um certo tipo de capital nas duas últimas décadas.

Momento federador ou refundação da Europa?

Durão Barroso parece ter encontrado uma fórmula mágica para disfarçar - de tempos a tempos - a forma vegetativa, incapaz e sumbissa com que tem exercido o cargo de presidente da Comissão Europeia.

Há pouco mais de um mês anunciava - num momento de inspirada alucinação - um «novo plano Marshall» para a Europa. Como o Ricardo Paes Mamede aqui assinalou na altura, essa iniciativa «excepcionalmente ousada» resumia-se à antecipação de fundos comunitários já aprovados e à revisão pontual das taxas de comparticipação nacional. O que, em termos financeiros, corresponderia - na melhor das hipóteses - a um impacto duzentas vezes menor que o do verdadeiro plano Marshall, que Barroso tomou como referência.

Há dois dias, o presidente da Comissão Europeia tentou um truque de ilusionismo idêntico, ao apelar a um «novo momento federador» na Europa, capaz de resolver a crise do euro. Mas não explicou, concretamente, em que medida esse «impulso federativo» permitiria encarar os verdadeiros problemas que persistem. Entre eles, uma governação económica europeia disfuncional, a subjugação da política aos interesses e humores especulativos do capital financeiro, ou a imposição camuflada de agendas ideológicas liberais obsoletas (que estiveram de resto na génese da crise), através dos programas de «assistência financeira» aos países com défice excessivo. O reforço dos poderes dos órgãos comunitários (nomeadamente da própria Comissão) não é, de facto, um bem em si mesmo.

Barroso sabe que as coisas não estão a correr bem. E saberá até muito bem porque é que as coisas não estão a correr bem. Por isso, em vez de lançar efémeras cortinas de fumo, seria bom que assumisse com algum rasgo e coragem o lugar que ocupa. Reconhecer, por exemplo, que o fracasso do modelo de «cooperação intergovernamental» muito deve ao facto de se restringir - na prática - a uma cumplicidade (aliás pouco edificante) entre a França e a Alemanha, que impõem aos seus congéneres o rumo a seguir. Ou, perante a evidência cada vez mais indisfarçável do abismo a que a via austeritária está a conduzir a Europa, instar os estados-membros a um balanço sério sobre as opções de combate à crise adoptadas nos últimos dois anos. Ou ainda, num plano simbólico (mas relevante), dar o sinal de que comissários como Guenther Oettinger não podem continuar à frente dos destinos da União, nem sequer a meio-tempo.

Lição de Economia

Maria da Conceição Tavares é uma das mais destacadas economistas no Brasil. Por sinal, nascida e criada em Portugal... Vale a pena assistir a este breve vídeo, onde aconselha os jovens estudantes de Economia. Conselhos com pertinência adicional no nosso país, devido à crise intelectual e económica que atravessa.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Este Banco é de Portugal?

Carlos Costa garantiu ontem que, com ele à frente do Banco de Portugal, os bancos terão dinheiro público a entrar para a sua inevitável capitalização, já que a terceira fase da crise gerada pela austeridade acentua ainda mais a fragilidade financeira, mas sem que isso dê ao Estado qualquer direito de intervir na sua gestão, tentando assim não incomodar o poder accionista privado, permanecendo como espectador passivo no que conta, esconjurando o malvado “estatismo”. É capitalizar, garantir e calar porque o Estado tem de ser selectivamente passivo e activo, de acordo com as conveniências da facção mais poderosa do capital, o financeiro, a que Carlos Costa dá voz sem qualquer pudor. É tudo transparente porque esta gente sente-se com força política, apesar de ainda haver alguma insistência em ficções de mercado só para entreter distraídos ou para tentar justificar investimentos ideológicos anteriores. Falta só saber até quando é que a maioria dos cidadãos vai aceitar este confiante e organizado capitalismo de pilhagem.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Populismo económico

Silva Lopes deixa-se tentar, apesar da sua experiência, pelo moralismo das finanças públicas dominante: precisamos de penalizar os «políticos» que furem os objectivos orçamentais, retirando-lhes direitos por um período. Como se este fosse o problema. Por que é que não se fala antes das consequências danosas da privatização de muita actividade política, da sua captura por um certo poder económico, em especial o financeiro? Por que é que não se fala também da futura capitalização, à custa de todos, dos bancos sem qualquer controlo público associado? De resto, como Silva Lopes no fundo sabe, o essencial dos furos nas finanças públicas resultou da crise gerada pela finança de mercado e é aprofundado pelo círculo vicioso de uma austeridade que foi por si apoiada. O populismo só serve para desviar as atenções do grande problema que está à nossa frente, para distrair do desastre em curso e da ideologia que o está a gerar.

Como este artigo de três economistas pós-keynesianos alemães, baseado na abordagem dos balanços financeiros sectoriais, nos indica, a soma dos saldos dos sectores externo, público e privado, os três sectores em que se pode dividir uma economia, é sempre igual a zero e num contexto de crise, como a que se inicia em 2008, com o saldo do sector externo mais ou menos constante, é evidente que o esforço dos privados para reequilibrar os seus balanços, com cortes no consumo e no investimento, gerou inevitavelmente um aumento do défice público. Inevitavelmente. O défice é uma variável endógena, para usar a formulação de um Cavaco que decidiu, por uma vez, ser rigoroso. A estratégia oficial é agora a de corrigir apressadamente o saldo negativo do sector público, ao mesmo tempo que os privados continuarão a comprimir despesas, apostando tudo no milagre das exportações, que corrigiria o saldo externo desfavorável. Isto está condenado ao fracasso até porque os países não podem exportar para Marte. Algo vai ter de ceder: será também uma política democrática cada vez mais esvaziada, cada vez mais erodida pelo capital financeiro?

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Qi económico

Mudar

Yanis Varoufakis resume numa frase a bizarra abordagem convencional à crise na Grécia: “a economia grega, ou o que resta dela, deve ser arrasada para que possa ser salva da bancarrota”. Não resulta, claro, mas é a abordagem que também está ser seguida em Portugal, perante a passividade bovina das nossas elites, as que ainda designam por ajuda este crime económico. O que deve o governo grego fazer? Usar a arma dos fracos e declarar que, na ausência de uma solução decente para a espiral depressiva concebida entre Bruxelas e Frankfurt, todos os pagamentos aos credores terão de ser suspensos (entre pagar salários e pagar aos credores, não há como hesitar…), preparando assim uma reestruturação da dívida por sua iniciativa. Assim que um governo deixar de participar no bombardeamento económico do seu próprio povo, a crise muda de figura.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Para ir mais além

Operação Mais Além (O.M.A.) parece-me ser uma designação apropriada para a missão assumida pelo governo de Pedro Passos Coelho. O «mais além» resulta do empenho em ultrapassar os mandamentos da troika nos cortes, nas privatizações, nos impostos e nas taxas; o «operação» do tónus marcial imposto à sua execução − avançar, em passo de corrida, sem desfalecimentos, hesitações ou consideração da extensão dos danos colaterais.

A O.M.A. entra neste mês de Setembro numa fase vertiginosa que é enfrentada com entusiasmo pelos seus protagonistas. «Vamos fazer um corte na despesa histórico, de uma maneira que nunca foi feita desde 1950», afirmava há dias na televisão um extasiado ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira, deixando o espectador a adivinhar o que pode haver de tão empolgante em cortes tão desproporcionados e sangrentos.

É evidente que se a O.M.A. fosse a simples operação de consolidação orçamental que diz ser, destinada apenas a dar confiança aos credores, não suscitaria nenhum entusiasmo. Deste ponto de vista, como todos sabemos, até o extasiado ministro, os seus resultados são bem mais do que incertos. O mais certo é sairmos dela mais pobres e ainda menos consolidados.

Mas acontece que a O.M.A. é sobretudo uma gigantesca «reforma estrutural» orientada para a desvalorização do trabalho, a privatização para lá de todos os limites, a erradicação da universalidade e da tendencial gratuitidade dos serviços públicos − a grande oportunidade de concretização de um programa político que é há muito desejado sem poder ser publicamente apresentado e sujeito a sufrágio.

A razão pela qual o programa implícito da O.M.A. não pode ser confessado é evidente: a maioria preza os valores do Estado Social e quer preservá-los. Este programa nunca seria sufragado em eleições democráticas, nem seria exequível em condições de normalidade democrática; a sua exequibilidade depende de circunstâncias excepcionais, de uma espécie de estado de excepção.

O estado de excepção, por enquanto apenas financeiro, está aí. Carpe diem. É agora. Daí o empolgamento.

O resto do artigo do José Maria no Le Monde diplomatique - edição portuguesa deste mês pode ser lido aqui.

À espera?

Almunia, o vice-presidente da Comissão Europeia, o fim da social-democracia personificado, declarou que não estava à espera desta última fase da crise. Se calhar não estava mesmo à espera, assim comprovando o poder das ficções alimentadas por tantos economistas. Andavam e andam por aí a dizer, e em Portugal num monólogo sem fim, que a austeridade “acalmaria” os mercados. Esqueceram-se que a política económica só faz sentido se controlar e disciplinar os mercados, afirmando o primado da política democrática, o primado do emprego e da protecção social, o primado do investimento público que gera confiança e que, na realidade, nunca se dinamizou e coordenou na escala relevante, a da moeda que se partilha, como defendemos neste manifesto há dois anos atrás.

Já que estou a falar de um ex-dirigente do neoliberalizado PSOE, aproveito para mencionar o post de Paul Krugman, baseado num trabalho de Paul De Grauwe a que já fiz referência, onde se retoma a esclarecedora comparação entre o Reino Unido e a Espanha num contexto de crise. Apesar de ter uma dívida pública superior, o primeiro país paga taxas de juro inferiores ao segundo porque se financia numa moeda que controla, não tendo sido reduzido ao estatuto de uma região. A austeridade é aí um puro produto ideológico: a articulação entre as Finanças e o Banco Central dá uma outra margem de manobra a um Reino Unido que também faz uso da arma da desvalorização cambial.

Já a Espanha, como as outras “regiões” em regime de “bancarrotocracia” do Euro, tem de se libertar desta prisão monetária, seja através da correcção da assimetria do Euro, com reforçado orçamento e fiscalidade comuns e uma parte da dívida pública emitida e garantida por um BCE com outras prioridades, as verdadeiras euro-obrigações suportadas por um verdadeiro Banco Central, seja através da recuperação da soberania monetária e de tudo o que se segue. Estes são os dois caminhos para se poder começar a superar a austeridade, a política de aprofundamento da crise, a política do capitalismo de pilhagem e da minoria que dele beneficia. Pelo meio uma parte da dívida pública, a começar pela Grécia, terá de ser reestruturada e as instituições financeiras atingidas terão de ser capitalizadas e, se forem privadas, nacionalizadas sem apelo nem agravo. É claro que o programa político das elites é tentar minimizar as perdas dos accionistas e dos credores, a aliança rentista hegemónica, à custa da maioria dos cidadãos, em especial das periferias, mantendo um sórdido e insustentável statu quo financeiro.

Qualquer uma das duas saídas conhecidas pressupõe governos com outro tipo de atitude, com uma consciência mínima dos interesses dos povos, o que só acontecerá com um recrudescimento das lutas sociais. Caso contrário, as elites políticas permanecerão paralisadas. Paralisadas pelo poder do capital financeiro que ajudaram a reconstruir depois da crise, paralisadas pelas ficções de mercado que continuam a dominar na Economia, em suma, paralisadas pelas ideias e pelos interesses. O défice é sobretudo político porque a economia é irremediavelmente política, ou seja, é sobre quem tem poder e sobre quem está exposto a esse poder.

Entretanto, recupero uma análise da ONU que, através da UNCTAD, decidiu começar a denunciar a economia política da austeridade:

“O argumento mais avançado para apoiar a contracção orçamental é a necessidade de restaurar a confiança dos mercados financeiros. Isto é percebido, geralmente, como a chave da recuperação económica. Contudo, é importante ter em conta que a crise foi gerada pelo comportamento irresponsável de actores privados nos mercados financeiros, e que isso exigiu intervenções públicas muito onerosas. Portanto, é surpreendente que um largo segmento da opinião pública e dos decisores políticos esteja, de novo, a colocar a sua confiança nessas instituições, incluindo as agências de notação financeira, acerca daquilo que constitui uma gestão macroeconómica correcta e finanças públicas sólidas.”

A mensagem tem de ser clara e ir ao cerne do problema: a austeridade, num contexto de um sistema financeiro intocado, levará a economia mundial para a recessão e destruirá a Zona Euro. Almunia e o resto das elites estarão à espera deste desfecho?

domingo, 11 de setembro de 2011

Onzes de Setembro



Duas das onze curtas-metragens do filme «11'09''01» de Alain Brigand (2002), que juntou onze realizadores de onze países, em onze perspectivas sobre o 11 de Setembro. As propostas de Ken Loach (Reino Unido) e Alejandro González Iñarritu (México).

Economia das pensões

Se há tema socioeconómico em que a economia do medo é mais intensa nos seus investimentos dramáticos é a segurança social, em geral, e as pensões, em particular. O objectivo do discurso catastrofista sobre a pensão pública deve ser claro e os interesses que dele beneficiam também: esfarelar o laço social, que tem no sistema público de repartição uma das suas mais importantes expressões e na confiança social dos trabalhadores assalariados o seu cimento, e substituí-lo por esquemas privados de capitalização, intrinsecamente regressivos e promotores de um ensimesmamento possessivo, mas potencialmente lucrativos para quem tem poder nos mercados financeiros liberalizados, cuja expansão é assim politicamente organizada. Perante o fracasso desta última instituição, perante a mediocridade de um regime macroeconómico assente na economia de casino, o discurso normativo sobre a bondade da capitalização é hoje muito mais problemático. Daí que só reste aos neoliberais um discurso determinista, assente em evoluções demográficas apresentadas como inelutáveis, que condenariam os sistemas públicos de repartição ao definhamento.

O contexto intelectual e político é, assim, ainda marcado por uma grande intoxicação da opinião pública, exposta à ciência oculta das previsões e vulnerabilizada por políticas públicas neoliberais que asseguram uma certa performatividade ao discurso catastrofista, criando a realidade, que este supostamente se limita a descrever, através, por exemplo, das reduções das contribuições para a Segurança Social, de reformas que reforçam o assistencialismo onde devia vigorar a solidariedade e, sobretudo, de politicas de austeridade que geram desemprego e definhamento da capacidade de produção. Neste contexto adverso, o livro da economista Maria Clara Murteira, Professora na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e estudiosa destes temas, é um muito bem-vindo contributo, sereno, informado e informativo sobre o tema das pensões, combinando factos e valores, judiciosamente entrelaçados e servidos por uma escrita escorreita e por uma estrutura clara. Inserindo-se na colecção da editora angelus novus, “o essencial sobre”, estamos perante um livro de divulgação que cumpre o objectivo da colecção e assim tem um efeito político da maior importância: imunizar eficientemente, já que é de um pequeno livro de bolso que se trata, os cidadãos contra a economia do medo, indicando através de uma argumentação rigorosa que são as escolhas sociais a determinar o futuro das pensões, ou seja, das regras de divisão da riqueza entre activos e reformados, mas também dentro de cada uma destas duas categorias. Qualquer que seja o regime de pensões é sempre sobre isto que estamos a falar, como a autora nos recorda frequentemente.

O resto da minha recensão pode ser lido no Le Monde diplomatique - edição portuguesa deste mês.

sábado, 10 de setembro de 2011

Está na hora de fazer o debate todo

Michel Husson publicou um artigo, traduzido pelo esquerda, em que procura superar um dilema potencialmente anulador da unidade popular e das convergências políticas necessárias para a criar – sair do euro ou apostar tudo numa “harmonização utópica” –, indicando como um debate aberto sobre estas questões, indispensável em Portugal, pode permitir fazer evoluir e afinar posições.

Husson parte de uma posição favorável a uma coordenação com escala europeia. Se for comparada com a posição aparentemente mais “soberanista” de um Jacques Sapir, que muitos de nós seguem com especial atenção, concluir-se-á que as divergências económicas, centradas na questão da importância da variável cambial e da capacidade de encontrar soluções decentes que a substituam numa Zona Euro atravessada por tão grandes desníveis de apetrechamento económico, podem ser, até certo ponto, politicamente conciliáveis. Conciliáveis em parte porque Sapir sabe bem o que a saída do euro implica em termos de transformação institucional profunda da economia para almofadar uma ruptura que surge como uma das alternativas ao impasse neoliberal europeu e às políticas recessivas. Isso leva-o a convergir com Husson, por exemplo, na questão dos controlos de capitais, da socialização do sector financeiro ou da reestruturação da dívida que são requeridas pela situação.

Tanto Husson como Sapir indicam-nos que uma melhor articulação nacional-europeia terá de partir da acção de governos nacionais progressistas, sozinhos ou em aliança com outros, que comecem por desafiar as regras europeias neoliberais, bloqueadoras do controlo do sector financeiro ou da política industrial, só para dar dois exemplos, e que estejam dispostos a ir até às últimas consequências nesse desafio porque, uma coisa é certa, não são possíveis políticas progressistas, políticas civilizadas, políticas de saída da crise, nesta configuração do euro, mesmo que Husson considere que já se ultrapassaram com facilidade obstáculos “formais” que há pouco tempo pareciam intransponíveis.


Ir até às últimas consequências é então aceitar a formulação de Husson e usá-la abertamente na intervenção política: “não se exclui um braço de ferro e usa-se a ameaça de saída do euro”, tal como aqui temos defendido e tal como Sapir defende, até porque na ausência de mudanças europeias relevantes, que aqui também tempos apontado, a saída do euro é o que resta a qualquer governo, periférico ou não. Mas continuemos a dar a palavra a Husson: “Este esquema reconhece que não se pode condicionar a implementação de uma ‘boa’ política à constituição de uma ‘boa’ Europa. As medidas de retaliação de qualquer espécie devem ser antecipadas por meio de medidas que, efectivamente, fazem apelo ao arsenal proteccionista. Mas não se trata de proteccionismo no sentido habitual do termo, porque este proteccionismo protege uma experiência de transformação social e não os interesses dos capitalistas de um dado país face à concorrência dos outros. É pois um proteccionismo de ampliação, cuja lógica é desaparecer a partir do momento em que as ‘boas’ medidas forem generalizadas.”

Tenho pelo menos duas questões prévias: interesses capitalistas internos, como sabemos, há muitos e as suas contradições estão mesmo muito longe de estar convenientemente exploradas do ponto de vista político; interesses capitalistas externos divergentes nem se fala: as economias têm desníveis de desenvolvimento e diferentes necessidades de recorrer à variável cambial para ajudar nas políticas de transformação estrutural. O capital não pode ser pensado, a um nível de abstracção relevante para as políticas públicas de transformação, como realidade homogénea num país e fora dele. Nenhuma estratégia ganhadora de governo progressista pode deixar de incorporar activamente sectores do empresariado industrial/produtivo/exportador que, ao contrário do que se possa pensar, não esgotou as suas capacidades. Os verdadeiros adversários políticos de um amplo bloco social transformador são o capital financeiro, os grandes grupos rentistas que com ele estão imbricados e os seus ideólogos, ou seja, os que vivem da “expropriação financeira” e da pilhagem de bens comuns e os que as legitimam à sombra de romances de mercado. Husson e todos os que querem construir uma aliança progressista “anti-liberal” devem ter isto em conta.

Entretanto, veja-se também a resolução do Partie de Gauche sobre o euro. Este partido integra, com o PCF, uma Front de Gauche que tem em Jean-Luc Mélenchon um candidato presidencial forte. As marcas deste debate francês, que a esquerda portuguesa que não desiste faria bem em transpor com toda a intensidade para a realidade nacional, estão aí bem patentes, assim como o necessário trabalho colectivo de reflexão, por exemplo, para pensar também em soluções intermédias de moeda comum, entre a moeda única e o regresso às moedas nacionais, para as quais Jacques Sapir tem igualmente chamado a atenção.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Pela independência do poder político democrático


Imagino que a primeira coisa que os governos italiano e espanhol fazem ao despertar seja consultar a página da Bloomberg respeitante à cotação e juros da dívida pública nos mercados secundários. As variações dependem agora de decisões e de intervenções discricionárias do Banco Central Europeu. Os juros estão a subir? Oh diabo, hoje o Trichet não está a comprar. Estão a descer? Menos mau, hoje o Trichet acordou bem disposto.

Como podem calcular esta situação dá ao presidente do Banco Central um enorme poder. Ele acha que o que é preciso é austeridade a torto e a direito. Não interessa se tem razão ou não. Com ou sem ela, ele tem nas mãos o poder suficiente para obrigar o governo e até os parlamentos italiano e espanhol a fazer precisamente o que ele acha que deve ser feito. Se não, passa dois dias sem comprar e os juros disparam.

Assistimos assim a uma extraordinária cambalhota. Quis-se, e conseguiu-se, que os administradores dos bancos centrais fossem independentes para pôr a política monetária a salvo de “políticos irresponsáveis”. Agora temos governos e parlamentos democraticamente eleitos inteiramente dependentes de decisões arbitrárias (e como temos visto, irresponsáveis) de burocratas inamovíveis e um tanto ou quanto dependentes, não dos governos, mas das dores da banca.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Acreditar até ao dia do juízo final?



Apesar de a maioria dos portugueses ainda acreditar que a austeridade é inevitável, entendo que um discurso de oposição ao governo deve insistir em dois pontos: a austeridade leva o país ao desastre; existe uma política alternativa defendida por economistas com elevada qualificação académica. Para executar esta política, precisamos de um governo que rompa com o Memorando, recupere a tutela do Banco de Portugal e ponha em execução um controlo eficaz do sistema financeiro. Recorrendo à monetarização da dívida, esse governo lançaria um programa de estímulo ao crescimento da economia e um programa de criação imediata de emprego em colaboração com autarquias, agências de desenvolvimento local e organizações de solidariedade social. Que fique claro: mesmo uma austeridade mais justa não serve.

Da minha coluna no jornal i

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Reescrever a História

Para quem se interessa pelo debate em torno do cheque ensino e dos modelos educativos assentes na concorrência entre escolas, o excelente post de Hugo Mendes no Jugular, «o "milagre sueco" não aconteceu», é de leitura imprescindível. Nele constam o gráfico que aqui se apresenta, relativo à evolução dos resultados escolares de Portugal e da Suécia na avaliação PISA (clicar para ampliar, embora as linhas de evolução sejam perceptíveis a olho nu) e a referência à recomendação de prudência de Per Thulberg, director geral da Agência Nacional Sueca para a Educação, dirigida sobretudo a quem toma fervorosamente esta iniciativa das free schools como o exemplo a seguir.

Respondia assim Thulberg a Michael Gove (actual ministro da Educação inglês que, em 2008, considerava que a Suécia apontava para o futuro desejável da política educativa em terras de sua majestade): «esta concorrência entre escolas, que foi uma das razões para introduzir as novas escolas, não conduziu a melhores resultados. A lição que retiramos é a de não ser fácil encontrar o caminho que assegure a melhoria contínua da educação. Os alunos destas novas escolas têm, em geral, melhores resultados, mas isso tem que ver com os pais e o contexto familiar. Eles provêm de famílias com elevados níveis de escolaridade». Na verdade, acrescenta Thulberg, «os alunos ingleses encontram-se melhor posicionados que os alunos suecos nas áreas da Matemática e do conhecimento científico».

Entre nós, seria bom que - numa próxima aparição em debates públicos - os defensores militantes do cheque ensino (como José Manuel Fernandes, Helena Matos, Henrique Monteiro e João Carlos Espada, entre outros) não mais pudessem perorar impunemente sobre os milagrosos efeitos da política de concorrência entre escolas - referindo-se ao caso da Suécia como um exemplo a seguir - sem serem confrontados com os factos que o Hugo Mendes assinala no seu post.

Aliás, vale a pena relacionar o mais recente texto de João Carlos Espada sobre este assunto (no Público de segunda-feira) com o artigo delirante da semana anterior («Impostos e criação de riqueza»), em que JCE tenta reescrever a história económica da segunda metade do século XX, rasurando por completo qualquer referência ao papel do Estado Providência e das políticas sociais públicas no esbatimento das desigualdades e no aumento generalizado dos níveis de bem-estar. Para Espada, «a riqueza da Europa e do Ocidente - que ainda hoje merece admiração no resto do mundo - não foi produto da redistribuição da riqueza dos ricos para os pobres através dos impostos. Foi produto da criação de riqueza num ambiente de liberdade económica, em regra associada a baixos impostos, justiça célere, e, sobretudo, à ausência de barreiras à entrada de novos competidores». O modelo social europeu, portanto, não existe nem nunca existiu. Notável, não é?

Voltaremos brevemente a este texto, em que a social-democracia é apagada da história europeia recente à boa moda estalinista. Por agora, vale a pena tomar nota de uma outra passagem do post de Hugo Mendes. Quando assinala que «não teremos aprendido nenhuma lição do que se passa na Suécia sem perceber que o seu modelo de educação está encastrado num país que tem dos níveis mais baixos de desigualdade socioeconómica e de pobreza infantil do mundo, que tem uma invejável rede de educação pré-escolar pública, e cujos adultos - isto é, os pais dos alunos de hoje, que foram formados no tal terrível modelo "socialista" do passado - colocavam a Suécia no topo dos rankings internacionais dos estudos sobre literacia de adultos na década de 1990 e no início desta».

Ring a bell, Professor Espada?

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Naturalmente

Os labirintos intelectuais que inspiram a política de austeridade em curso têm de ser lembrados. João Galamba assinala a extraordinária declaração de Vítor Gaspar, que parece que anda a tentar “naturalizar a catástrofe” de um desemprego de dois dígitos: “Na audição parlamentar de sexta feira, Vítor Gaspar disse que em 2015 a economia portuguesa estaria no pleno emprego. Donde se conclui que este governo acha que 12.3% é a nova taxa natural de desemprego.” A chamada taxa natural de desemprego foi pensada para impedir qualquer política económica de combate sério à crise, agitando o papão da geração de inflação e atribuindo o desemprego, no fundo, a um misto de falta de fibra das vítimas da crise, o vão trabalhar malandros, mimadas por direitos laborais e por sindicatos, a tal “rigidez”. As palavras são todo um programa. Bom, depois de todas as reformas da troika, o pleno emprego será, uma vez mais, o que a ficção labiríntica do mercado quiser. Centenas de milhares de desempregados? Seja. Nunca se esqueçam que a taxa de desemprego nacional era de 4% no fim do milénio e que desde aí tivemos uma série de contra-reformas laborais. O desemprego triplicou? É porque não retiramos direitos aos trabalhadores, para os dar aos patrões, com a velocidade requerida e de forma tão natural quanto a sede da utopia do trabalho reduzido a mercadoria descartável e cada vez mais barata, numa economia cada vez mais medíocre para todos, trabalhadores e patrões. A evolução da procura que se registou durante este período foi certamente um detalhe. E continuará a sê-lo no labirinto da troika e de um governo subalterno. Só sabem instituir políticas que aumentam a taxa de desemprego, naturalmente...

Mais uma proposta de imposto com mérito

O imposto sucessório faz parte do arsenal fiscal de uma tradição liberal com consciência social, que é onde se filia o filósofo João Cardoso Rosas. É, no entanto, sem qualquer surpresa que vejo a direita extrema blogosférica, que se diz toda “liberal”, considerar tal posição “socialista radical”, apelando de forma típica à imprensa para excluir tais “panfletos”, mas só se quiser ser “séria”, claro. Liberalismos há muitos. Enfim, fica um excerto da reflexão de João Cardoso Rosas: “As circunstâncias sociais do nosso nascimento são, como se costuma dizer, ‘moralmente arbitrárias’. Por isso, os herdeiros não merecem a sua herança e, quando essa herança vai para além de um património razoável que é lícito que os pais queiram deixar aos filhos – por exemplo 500.000 euros, ou mesmo um milhão de euros –, então é da elementar justiça que esse património seja taxado (…) Estamos a taxar herdeiros que não têm moralmente direito àquilo que herdaram e que, na maior parte dos casos, irão desbaratá-lo.”

Isto é apenas o início


A Itália encontra-se hoje em greve geral contra as medidas de austeridade. Depois de hoje, a contestação à estratégia falhada que as lideranças europeias insistem em prosseguir para lidar com a crise deixa de estar confinada às periferias, instalando-se bem no centro da UE (no país cuja capital dá o nome ao tratado fundador do projecto de integração europeia). Mais, instalou-se num país onde os movimentos sindical e social têm ainda uma força respeitável, tanto pela dimensão como pela combatividade. O cartaz que surge na fotografia acima promete que a greve geral é apenas o início. E parece que os ‘mercados’ já o perceberam.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Euro-obrigações há muitas…

A Standard & Poor’s ameaça classificar como “especulativas” as euro-obrigações que sejam garantidas pelos países em proporção do seu peso. Isto porque se considera que estas euro-obrigações acabariam por ter o risco do seu elo mais fraco. No entanto, este não é o modelo de euro-obrigações que consta da “modesta proposta” para salvar o euro, como esclarecem Stuart Holland e Yanis Varoufakis, os seus autores, que, aliás, o consideram idêntico à lógica do tóxico Fundo Europeu de Desestabilização Financeira. Na sua proposta, as euro-obrigações seriam, pelo contrário, emitidas por uma entidade europeia reconhecida, como o BCE, e seriam exclusivamente garantidas pelo seu poder, o que, de acordo com os autores, sossegaria os detentores destes títulos. As taxas de juro mais baixas fariam então com que todos os Estados tivessem acesso a empréstimos em termos muito mais favoráveis do que têm hoje hoje, mas só até 60% da sua dívida pública, que seria o que o BCE emitiria para assim, no espírito do compromisso, sossegar os obcecados com a narrativa da “irresponsabilidade fiscal”. A reestruturação de uma parte da dívida continuaria então a ser provável para alguns Estados.

A globalização infeliz

Depois de ter sido um dos principais intelectuais da “doutrina do choque” neoliberal imposta pelo FMI em tantos países – da América Latina ao Leste Europeu –, durante os anos oitenta e noventa, e agora desgraçadamente reeditada entre nós, é sempre bom confirmar que o economista Jeffrey Sachs está agora numa linha de economia mais substantiva, focada nos valores, como a felicidade, que temos boas razões para promover e na denúncia de processos económicos geradores de custos sociais, que acabam sempre por ser transferidos para quem menos poder e que temos boas razões para bloquear, reconhecendo então com todo o realismo que “o capitalismo global representa diversas ameaças directas à felicidade” ou que a “a procura louca pelos lucros empresariais está a ameaçar-nos a todos”. É por estas e por outras que temos de pugnar pela desglobalização sustentável.

Cortar com uma mão para dar com a outra

Uma boa pergunta, da Mariana Vieira da Silva, no Jugular: «Se as obrigações da escola pública no ensino básico vão diminuir, por que raio aumenta o valor [de 80 para 85 mil euros por turma] dos contratos de associação?».

É bom lembrar, de facto, que no memorando de entendimento com a troika, no compromisso de «reduzir os custos na área da educação, com o objectivo de poupar 195ME», também estava prevista a «redução e racionalização das transferências para escolas particulares com acordos de associação» [ponto 1.8 do capítulo da Política Orçamental para 2012].

E assinalar, paralelamente, que - no «histórico» plano de cortes da despesa pública - só as medidas relativas à «supressão de ofertas não essenciais do ensino básico», «revisão criteriosa de planos e projectos associados à promoção do sucesso escolar», «racionalização de recursos, nomeadamente quanto ao número de alunos por turma», «encerramento de escolas do 1º ciclo», «ajustamento dos critérios relativos à mobilidade docente» e «outras medidas» - todas elas dirigidas à escola pública - já perfazem um total de 309ME (ou seja, um acréscimo de quase 60% face ao valor inscrito no acordo com a troika).

Para a coligação PSD/PP, os cortes e os sacrifícios, quando nascem, não são de facto para todos.

domingo, 4 de setembro de 2011

Iminências

Lagarde avisa que está iminente uma recessão da economia mundial. É a austeridade dos dois lados do Atlântico, cujas consequências já tinham obrigado Lagarde a fazer o pino e a defender uma política de estímulos económicos para já. Enfim, com esta recessão mundial é que as exportações vão puxar pelo crescimento. Deve ser por isso que Passos Coelho, um crente na consolidação orçamental expansionista, na auto-regulação dos mercados e noutros milagres, anunciou hoje, com um notável sentido de oportunidade, o princípio do fim da crise em 2012.

Uma combinação miraculosa de milagres


Temos um ministro das finanças que não acredita em milagres mas está à espera que eles aconteçam, como bem lembrou João Ferreira do Amaral no último Expresso da Meia-Noite.

1) De acordo com as previsões do Documento de Estratégia Orçamental (DEO) 2011-2015 chegaríamos ao fim da intervenção da troika em 2013 com uma dívida pública não de 92,9% do PIB, como em 2010, mas de 106,8%. Mesmo assim prevê-se o regresso ao regime de financiamento nos mercados no final dessa intervenção a taxas sustentáveis. Prevê-se, portanto um milagre.

2) As taxas de variação do PIB previstas no DEO dependem de taxas de crescimento das exportações sempre superiores a 6%: um milagre no contexto recessivo europeu, cujo agravamento se tornou ainda mais claro depois dos estudos subjacentes ao DEO.

3) Apesar desta antecipação do crescimento das exportações, as importações sofreriam uma substancial redução em 2010 e 2011 e um crescimento muito moderado nos três anos seguintes. Dado o elevado conteúdo importado das exportações, uma redução tão acentuada, obtida à custa da quebra da procura interna nos dois primeiros anos, e um crescimento tão moderado, quando se prevê aumento de toda a procura, nos dois anos seguintes, só poderia acontecer por milagre.

4) A transição para o crescimento prevista para 2013 depende de uma inversão da variação súbita do investimento de -10,6% e -5,6% do PIB em 2011 e 2012 para +3% ao ano depois disso. Em que assenta esta expectativa de prazo alargado? Talvez num milagre.

Sairmos disto pela via da austeridade, só com uma combinação miraculosa de milagres.

O ministro das finanças não acredita em milagres, mas mantém-se sereno. Compreende-se a descontracção. Ele pensa, se é que o DOE reflecte o que ele pensa, que: “Os períodos de crise fazem parte da dinâmica económica e tipicamente dão lugar a transformações que são essenciais para novos progressos e avanços da economia” (DOE 1011-2015: p. 5).

Bendita crise, pensam aqueles a quem a crise dói pouco.

sábado, 3 de setembro de 2011

Ainda a Irlanda

Ainda a pergunta de Carlos Alburqueque, que julgo ter suscitado o último post do José Maria: como vai a Irlanda? Olhem também para a última barra do gráfico (clicar para ampliar). O colapso das importações e uma tépida, e agora periclitante, recuperação das exportações são dois dos efeitos de uma estratégia de austeridade que não parece garantir uma saída decente para o que ainda é o maior buraco económico nacional gerado por uma crise que não é (ainda?) global. Afinal de contas, a estratégia de austeridade europeia transforma um jogo de soma nula num de soma muito negativa. Jogar este jogo com toda a determinação não permite reduzir uma taxa de desemprego irlandesa que já ultrapassou este ano os 14% (13,6% em 2010), num quadro laboral conhecido pela sempre enviesada “flexibilidade”. Entretanto, o caso irlandês pode ser acompanhado através da leitura, por exemplo, do Progressive Economy, onde pontifica, entre outros, Michael Burke, o economista que mellhor designou as intervenções externas da troika – “Tony Soprano Bailout”...

A novilíngua no seu esplendor

O plano de cortes na despesa pública anunciado pelo governo, para além da análise quantitativa feita no post anterior, merece ser também objecto de uma leitura qualitativa, pelo notável exercício de novilíngua que nos oferece.

O que podem significar, por exemplo, as «medidas de racionalização de recursos, nomeadamente quanto ao número de alunos por turma», senão uma degradação das condições de ensino e aprendizagem, dada a redução do número de docentes que comportam? Ou para que pode apontar a «melhoria dos procedimentos inerentes à aplicação da condição social de recursos no acesso a prestações sociais» senão para mais um cruel reforço no corte dos apoios estatais aos mais pobres, quando a austeridade e a recessão se agudizam de forma dramática? Ou, ainda, o que decorre da «racionalização de recursos e controlo da despesa» na saúde senão uma degradação das condições humanas e materiais inerentes à prestação de cuidados, susceptível de colocar em risco respostas atempadas e a própria vida dos cidadãos?

A novilíngua da coligação PSD/PP presta-se bem ao cinismo e à desinformação. O que é a «reforma dos sistemas de prestações de desemprego», senão, essencialmente, um corte nas condições de acesso num momento em que o número de pessoas que deixam de ter trabalho aumenta de forma galopante? Ou em que fundamenta o governo a necessidade de implementar uma «maior disciplina de utilização de fundos públicos» e um «plano de substituição de fontes de financiamento» no ensino superior, quando é notória a asfixia orçamental consecutiva a que estas instituições têm sido sujeitas, apesar de revelarem, em regra, uma gestão financeira exemplar?

São estas as «gorduras» do Estado que era imperioso cortar? Ou estamos, como era previsível, perante um plano de desmantelamento do Estado social há muito concebido, que apenas se encontrava escondido na manga das promessas de Passos Coelho, durante a campanha e na própria noite da vitória eleitoral?

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Das gorduras e dos músculos

Na reunião da Comissão Parlamentar de Orçamento, Finanças e Administração Pública que teve hoje lugar (com excelentes intervenções de Pedro Marques, Honório Novo e João Galamba) - e que deverá estar brevemente disponível aqui (na secção de arquivo) - era suposto que o Ministro Vítor Gaspar explicasse com detalhe o plano de cortes na despesa pública recentemente apresentado pelo governo, a rondar os 1500 milhões de euros.

Esse esperado detalhe na explicação do referido plano não aconteceu e, contudo, impunha-se por duas razões particularmente relevantes. Desde logo, pelo facto de a informação previamente distribuída à imprensa impedir - na maior parte dos casos - saber o que significam exactamente os referidos cortes. E, sobretudo, para que se pudesse avaliar com precisão em que medida esses cortes são efectuados nas propagandeadas «gorduras do Estado» (que se supunha estarem criteriosa e sobejamente identificadas pelos partidos da coligação governamental mesmo antes de estes chegarem ao poder).

Ora, o que a informação vinda a público nos diz é que os cortes incidem duramente no Estado Social (Educação, Saúde e Segurança Social), com um impacto que representa cerca de 70% do volume total de redução da despesa pública proposto (0,9% do PIB), face ao esforço de poupança acordado com a troika para 2012 (situado em 1,3% do PIB). O que nos leva a pensar, portanto, que o plano de cortes visaria essencialmente atacar «gorduras» existentes no Estado Social.

Apesar da escassa informação divulgada junto da comunicação social (como demonstra a síntese gráfica elaborada pelo Público, acima reproduzida, e o texto jornalístico que a acompanha), podemos contudo constatar que o ataque se abate implacavelmente sobre os músculos já debilitados do Estado Social e não - como não podia aliás deixar de ser - sobre as gorduras que manifestamente nele não existem.

Senão vejamos: na mais bondosa das hipóteses (e excluindo opções completamente opacas como as «medidas estruturantes e transversais» no Ministério da Saúde e as «outras medidas» no Ministério da Educação), apenas as alíneas referentes à «redução das despesas de funcionamento nos órgãos centrais e regionais do Ministério da Educação e Ciência», a «redução de cargos dirigentes» na Segurança Social e a «política do medicamento» no Ministério da Saúde poderão comportar cortes (e na verdade não o sabemos, porque se desconhece qualquer demonstração inequívoca de que se trata de despesa supérflua) em «eventuais gorduras» do Estado, ou melhor, em «eventuais gorduras» do Estado Social.

Ora, sucede que estas alíneas não representam mais do que 14% do total de cortes efectuados nestes três sectores ao abrigo deste plano, cabendo a maior fatia às medidas que apostam na «degradação dos serviços públicos» (particularmente na saúde, mas igualmente na educação) e na poupança em prestações sociais e nas pensões de reforma. O que significa, portanto, que estamos perante mais& uma imposição de sacrifícios aos mesmos de sempre e que agora - tecnicamente - se situa no lado da despesa. Com a agravante de, em matéria de receitas, nos encontrarmos perante uma fiscalidade escandalosamente assimétrica, entre a taxação dos rendimentos do trabalho (46,5%) e dos rendimentos do capital (21,5%), a que o João Rodrigues já aqui se referiu.

E na Irlanda?


Na Irlanda as coisas até pareciam a estar a correr menos mal. Mas agora, diz a Reuters, espera-se que a economia da Irlanda abrande de novo no segundo trimestre, depois de um salto no início do ano, em consequência da moderação das exportações resultante de uma economia global em desaceleração.

Os juros da dívida Irlandesa a dois anos que tinham descido espectacularmente de 23% para 7% subiram hoje 2%.

O que vai acontecer amanhã e depois não sei. Mas como o milagre na Irlanda (e também em Portugal) depende inteiramente da procura externa, vai ser preciso rezar muito. Ou acabar com esta estúpida coordenação europeia da austeridade.

Portugal não é a Grécia e a Espanha não é…

Como a recente experiência grega indica, com um ano de avanço sobre a intervenção externa em Portugal, é impossível “sanear” as finanças públicas num quadro brutalmente recessivo, como o que é agora causado pela austeridade. Daí que a mais recente notícia só deva surpreender os moralistas das finanças públicas que dominam uma Europa cada vez mais fracturada e que pedem mais “determinação” suicida – Grécia falha meta do défice e põe em dúvida próxima parcela do resgate: “O ministro das Finanças grego, Evangelos Venizelos, deu hoje uma conferência de imprensa onde assumiu que o défice aumentará ‘automaticamente’ devido ao ‘agravamento da recessão’, mas não adiantou ainda qualquer estimativa para o seu valor, que remeteu para meados de Setembro, após novas negociações com a troika.” A reestruturação a sério da dívida grega pode estar para breve. Depois logo se verá. Se não se superar a austeridade, a desagregação do euro começará pelo que é apresentando como sendo o seu elo mais fraco.

Passos


Vender activos estratégicos do sector da energia a empresas alemãs, certamente por baixo preço; aceitar mudanças sem sentido na nossa constituição só para satisfazer os dogmas dos ordoliberais alemães; recusar medidas que servem os nossos interesses, e também os da Zona Euro no seu conjunto, como as euro-obrigações. A lógica do resto, que é a troika e a austeridade entusiástica, já se conhece: políticas pensadas para servir os interesses de um capital financeiro que também é alemão. Tristes são os passos de um governo neo-colonizado, de visita a Berlim, num Euro que assim se reduz a uma nova prisão, económica e política, que as duas são inseparáveis, dos povos.

A imagem é da gui castro felga. Post publicado no arrastão.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Comentários

Infelizmente, as circunstâncias obrigam-nos a “moderar” os comentários. Estamos certos que a maioria, que usa as caixas de comentários para debater, compreenderá esta decisão.

Das previsões económicas

Vale a pena comparar as previsões económicas do governo português de Março de 2011 e as que agora foram anunciadas. Claro que já ninguém se lembra de quais eram as previsões para os próximos 4 anos há 5 meses, mas vale a pena observar as diferenças abismais entre os dois quadros de previsão e tirar algumas ilações. A mais importante é claramente não levar estas previsões, sobretudo quando implicam um longo período temporal, a sério. Há 5 meses, previa-se crescimento económico para o próximo ano e uma taxa de desemprego correspondente de 10,8%. Agora, prevê-se a continuação da recessão e desemprego de 13%, fruto da austeridade acrescida imposta pela troika e que este governo pretende ultrapassar.

Interessante também é darmo-nos conta de uma radical diferença entre os dois cenários. O mais recente, na ânsia de compensar os efeitos recessivos da austeridade, coloca as exportações a crescer a mais de 6% durante os próximos anos, bastante mais do que o cenário de Março. Assim, ainda que admitindo a profunda recessão que atravessamos, o governo consegue umas previsões mais optimistas para os anos 2013-2015 no que toca ao crescimento económico. No entanto, nos últimos meses, as perspectivas para a economia mundial deterioraram-se fortemente, algo que o próprio documento admite. No ministério das finanças, ou acreditam em milagres, ou tomam-nos por parvos...

Previsões de Março de 2011:

Previsões de Agosto de 2011:

Austeridade assimétrica permanente

Tratando-se de um expediente de última hora para tentar legitimar um programa recessivo e regressivo, o governo nem sequer deu dignidade estratégica à cosmética fiscal em sede de IRS e de IRC, que não consta do documento de estratégia orçamental. Como sublinha o jornalista João Ramos de Almeida no Público, a assimetria fiscal é gritante: as alterações progressivas em sede de IRS e IRC gerarão supostamente 100 milhões de euros em 2012, num total de 2700 milhões de receitas adicionais, onde pontificam 1200 milhões no regressivo IVA para tentar almofadar a ineficaz descida da TSU destinada a patrões medíocres. Subir a taxa no último escalão de IRS para 49% significa então que só aquela parte dos rendimentos colectáveis anuais dos pensionistas e assalariados ricos acima de 153 300 euros é taxada a este valor. Não se mexe no regime fiscal de favor para os rendimentos do capital em sede de IRS, taxados, quando o são, a pouco mais de 20%. Imposto sobre as grandes concentrações de riqueza nem pensar. A cosmética não esconde assim as alterações fiscais que contam e os brutais cortes, sempre regressivos e sempre recessivos, que se efectuarão nos serviços públicos, ou seja, numa das fontes de riqueza da comunidade.

Interligações perigosas

Continuo a ler o documento de estratégia orçamental 2011-2015. O governo confirma aí a sua aposta no capitalismo de pilhagem financeira e de nula pressão laboral: “A interligação entre o risco de crédito soberano e o risco de crédito do sistema bancário é muito forte como demonstrado na atual crise de dívida soberana. A deterioração do mercado da dívida soberana gera perdas potenciais nas carteiras de dívida pública dos bancos e diminui o valor do colateral e das garantias do Estado detidas por estes.”

Ai coitados dos bancos, que nem queriam comprar dívida pública, tendo sido obrigados pelo malvado Estado, eles que só queriam ser solidários, tendo intermediado entre Frankfurt e Lisboa enquanto puderam, mas só porque o BCE não podia financiar directamente os Estados devido a tratados que saíram da imaginação de economistas da linha Gaspar. Antes, os bancos só tinham alimentado um ciclo de dívida privada, sendo os nós nacionais da rede financeira internacional para a qual o país foi atraído graças à liberalização financeira.

Agora, está na hora do Estado ser solidário com os bancos, abrindo caminho à sua capitalização sem contrapartidas, com a tal ajuda da troika, sem meter o bedelho na sua gestão, sem controlo. Reparem que o governo tem razão: isto está tudo interligado. Mas para descobrir o que se passou é necessário colocar as coisas ao contrário: a crise assinalou a socialização do risco do sector financeiro, como o caso BPN indicou. A “crise da dívida soberana” é só a segunda parte de uma crise que teve nos desmandos do capital financeiro a sua origem. Esta fase atinge sobretudo os Estados que não são soberanos do ponto de vista monetário devido a um euro disfuncional.

A também chamada “crise das finanças públicas” mostra, uma vez mais, a validade do ponto de um Cavaco regressado a um keynesianismo de manual muito superior às ficções do documento estratégico: o défice é uma variável endógena, que depende da evolução da actividade económica. Já tivemos demasiados anos de “crises das finanças públicas”, causadas pela combinação de estagnação e crise económica, seguidas de austeridade, que só aprofunda o problema económico, para indicar a inanidade da lógica que considera que a causa do problema está nas finanças públicas.

Isto deixou de ser um problema intelectual. É apenas um problema de poder. E quem manda, na ausência de contrapoderes democráticos, é o capital financeiro, coitado, tanta interligação...

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Invenções

Li há pouco, estupefacto, a seguinte passagem do documento de estratégia orçamental 2011-2015: “A opção por proteger alguns sectores da entrada de novos operadores e de condicionar a aquisição e o controlo de empresas por capital estrangeiro traduziu-se na falta de concorrência e em baixos níveis de investimento e de inovação. Em termos de afetação de recursos, esta abordagem favoreceu a acumulação de capital no sector dos bens e serviços não transacionáveis (como a construção e o comércio a retalho).” O Ministério das Finanças quer oficializar uma visão da história económica compatível com os preconceitos ideológicos de quem por lá anda a aproveitar a crise para aplicar a doutrina do choque, o capitalismo de pilhagem com escala internacional. Nessa visão da história, a dinâmica económica não foi afectada pela política de convergência nominal da década de noventa, rumo ao euro, e pela correspondente apreciação cambial, que se perpetuou com o euro forte; não houve uma inserção internacional apressada e mal conduzida, com o aumento das pressões concorrenciais externas (especialmente na sequência da adesão da China à OMC e do alargamento da UE a Leste); as privatizações maciças e míopes não reconstituíram grupos económicos rentistas, um capitalismo de auto-estrada, de finança e de outros sectores com inevitável poder de mercado; não se criou uma economia do imobiliário muito bem oleada financeiramente, ou seja, a liberalização financeira não aprofundou todos os desequilíbrios; o Estado não perdeu quase todos os instrumentos relevantes de política. Não, a expansão de actividades produtoras privadas de bens ditos não-transaccionáveis, em detrimento de actividades, sobretudo industriais, potencialmente voltadas para os mercados externos, foi causada pelas “golden shares”...