terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Programa da IL: pôr Portugal a funcionar… para o 1% do topo

 

A Iniciativa Liberal apresenta-se às eleições legislativas deste ano com um slogan: “pôr Portugal a funcionar”. Rui Rocha, líder da IL, repetiu esta ideia nos debates eleitorais em que participou até agora, contrastando alguns problemas do país com as propostas liberais que diz funcionarem em países europeus mais prósperos. No entanto, se olharmos para as propostas do programa, facilmente se percebe que os benefícios prometidos seriam para muito poucos – e a maioria sairia a perder.

Economia: baixar impostos e esperar que chova

A grande aposta da Iniciativa Liberal é a redução de impostos. A IL defende um corte substancial dos impostos sobre as famílias e sobre as empresas, garantindo que este trará crescimento económico robusto. No entanto, nos debates eleitorais, Rui Rocha tem difundido informações falsas sobre os impostos pagos em Portugal. Vale a pena olhar com algum detalhe para as várias componentes deste choque fiscal.

Para o IRS, a IL recupera a célebre proposta da flat tax: uma taxa única de 15% para todos os rendimentos, aplicada sobre a parte do rendimento que exceda o Salário Mínimo Nacional. A promessa da IL é que todos pagarão menos, mas a verdade é que a proposta beneficia muito mais quem ganha mais. Isso é, de resto, reconhecido pelas próprias contas do partido: no exemplo apresentado no programa, uma pessoa com um salário de €900 teria um ganho equivalente a menos de 5% do seu rendimento bruto, ao passo que uma pessoa com salário de €2500 ganharia algo equivalente a 11% do seu rendimento e alguém com salário de €4000 teria um ganho equivalente a 15% do seu rendimento (e por aí fora). À medida que o rendimento aumenta, o ganho aumenta de forma exponencial. Se pensarmos nos salários milionários dos CEOs, a poupança seria de várias centenas de milhares de euros. No fundo, os liberais acenam com poucas dezenas de euros para a maioria dos trabalhadores em Portugal para esconder enormes borlas fiscais aos mais ricos.

Há dois argumentos que a IL utiliza para defender a proposta: o de que a taxa única beneficia a atividade económica e o de que reduz a complexidade do sistema fiscal. Mas os resultados da experiência nos poucos países que a aplicaram – como a Rússia (ironicamente) ou alguns do Leste europeu – desmentem ambos: nem existem evidências de que a complexidade tenha diminuído nos poucos países que têm uma taxa única, uma vez que o que torna o imposto complexo são as deduções à coleta que a IL diz que quer manter, como não há sinais de que tenha produzido os resultados económicos prometidos.

O que sabemos é que este tipo de medidas tem como consequência um aumento da desigualdade. Um dos estudos mais influentes do economista Thomas Piketty e dos seus co-autores, que analisaram a evolução da progressividade entre 1960 e 2010 em diversas economias, mostra que, nas últimas décadas, os países que mais reduziram a taxa de imposto aplicada aos 1% mais ricos foram aqueles onde a fração do rendimento nacional captada por estes mais aumentou. Por outras palavras, foi nesses países que o 1% do topo passou a arrecadar uma fatia ainda maior do bolo. Reduzir a progressividade do IRS é minar a sua função redistributiva, o que é especialmente problemático num país que continua a ter níveis de desigualdade acima da média europeia.

A premissa descrita no programa é que “temos um nível de tax wedge [peso dos impostos e contribuições para a Segurança Social num salário bruto] muito elevado, onde o Estado leva em média 42% do que a empresa paga por um trabalhador”. É mais uma meia-verdade liberal: por um lado, o tax wedge em Portugal está abaixo de vários dos países para onde os jovens portugueses emigram (Bélgica, Alemanha, França) e é muito semelhante ao de outros destinos da emigração (Espanha ou Luxemburgo); por outro lado, mais de metade deste valor não são impostos, mas sim contribuições para a Segurança Social, que garantem que o trabalhador tenha direito a proteção social na doença, em caso de desemprego e para que tenha direito a uma pensão de reforma. O Estado não “leva” nada; os trabalhadores descontam para ter direito a proteção e não ficarem sem qualquer rendimento quando ficam doentes, quando são despedidos ou quando se reformam. De resto, a taxa média efetiva de IRS – o que é mesmo pago ao Estado como contrapartida de bens e serviços públicos – é de apenas 13,2%.


A IL também quer reduzir substancialmente a tributação do capital, propondo que se reduza o imposto sobre os seus rendimentos para 14,5%, apesar de Portugal já ser dos países da OCDE que favorece mais o capital e prejudica os salários na tributação. Além disso, propõe a eliminação do adicional ao IMI. O AIMI, conhecido como “imposto Mortágua”, chegou a ser descrito no comentário político nacional como um “ataque à classe média”. No entanto, a verdade é que só é pago por uma pequena fração dos mais ricos. Em 2022, foi pago por 84 mil contribuintes, dos quais 70 mil eram pessoas coletivas (empresas) e apenas 13 mil eram pessoas singulares, segundo os dados da Autoridade Tributária. Trata-se de uma taxa modesta aplicada apenas a imóveis cujo valor patrimonial (que costuma ser bastante inferior ao valor de mercado) exceda os €600.000. A medida, que tributa essencialmente propriedades de luxo, permite arrecadar todos os anos cerca de 150 milhões de euros para o orçamento da Segurança Social. A IL opõe-se porque combate todas as formas de redistribuição de riqueza.

Para as empresas, a IL defende um corte substancial do IRC para 12%. Novamente, as grandes empresas são quem mais ganha com esta proposta: 40% das empresas não paga IRC e, entre as que pagam, as pequenas (que constituem a maioria do tecido económico português) já pagam taxas reduzidas. Metade da receita do IRC é paga por apenas 0,3% das empresas.

O partido vai mais longe e defende a criação de Zonas Económicas Especiais (ZEE) de baixa fiscalidade no interior do país “para atrair empresas”. Portugal já tem um caso semelhante: a Zona Franca da Madeira, que ofereceu às empresas que lá estabelecessem a sua sede fiscal isenções de IRC e outros benefícios. As promessas de criação de emprego na região nunca se materializaram, mas o arquipélago tornou-se um offshore que facilita a evasão fiscal e onde não faltam indícios de fraude e corrupção.

Apesar de a IL frequentemente se apresentar como o partido que domina as questões da economia, as contas sobre o impacto deste choque fiscal não são muito claras: o líder da IL tem dito que a redução de impostos custaria €4 ou €5 mil milhões de receitas ao Estado, embora, no passado, a estimativa do impacto só da flat tax (excluindo tudo o resto) fosse de mais de 3 mil milhões. A estimativa parece bastante otimista e o impacto real poderá ser de mais de €9 mil milhões.

Como a IL também assume o compromisso de manter Orçamentos do Estado com excedentes, é preciso perceber como é que ambas as promessas se compatibilizam. Inicialmente, o partido agarrou-se à promessa de que a redução de impostos levará a níveis de crescimento económico muito acima da média das últimas décadas (chegando aos 4% no final da legislatura). O problema deste argumento é que não passa de uma crença: os estudos empíricos existentes não nos permitem afirmar que baixar impostos traria mais crescimento. No que diz respeito às empresas, uma revisão de literatura recente analisou dezenas de estudos publicados e concluiu que, ao contrário que se costuma pressupor, não há evidência empírica que nos permita afirmar que os cortes de impostos sobre as empresas promovem o crescimento económico. Já sobre os rendimentos individuais, um outro estudo de economistas da LSE e de King’s College analisou todos os cortes de impostos para os mais ricos aprovados em 18 países da OCDE ao longo de 50 anos e concluiu, sem grande surpresa, que também não promovem o crescimento.

Nos debates eleitorais, de forma mais realista, o líder da IL já tem admitido que serão necessários cortes. O programa inclui a privatização da TAP, da Caixa Geral de Depósitos, da RTP e de outras empresas públicas, apesar dos péssimos resultados das privatizações no país, que minaram a capacidade de investimento e inovação do Estado e entregaram negócios lucrativos aos privados. Além disso, Rui Rocha diz que é altura de o Estado fazer “um pequeno esforço” de redução da despesa. No fundo, a ideia é a mesma da Troika: cortar nas “gorduras do Estado”, mesmo que a despesa pública em Portugal se encontre abaixo da média europeia na maioria das categorias.

Habitação: baixar impostos e esperar que chovam casas

A Iniciativa Liberal diz que o problema dos preços da habitação se deve à falta de oferta. O programa que apresenta é simples: reduzir impostos – IMT, imposto de selo, IMI, IVA da construção, taxa sobre rendimentos prediais –, rever regulações e esperar que o mercado “funcione”. O problema deste raciocínio é que ignora as dinâmicas de mercado realmente existentes. O setor imobiliário está cada vez mais virado para o setor de luxo, uma vez que responde ao padrão da procura que se tem intensificado nos últimos anos: fundos imobiliários e não-residentes ricos que não procuram casas para viver, mas sim como ativos para especular e gerar mais-valias. Em Portugal, o preço pago por compradores com domicílio fiscal no estrangeiro (ou seja, por não-residentes no país) é 43% superior ao dos compradores nacionais. O mercado já funciona… em benefício dos grandes proprietários.

Além disso, os liberais não parecem ver qualquer problema na expansão do turismo nos últimos anos. A IL quer reforçar a aposta no setor, apostando em “dar liberdade aos investidores”, “oferecer segurança fiscal” – leia-se, impostos baixos – e “liberalizar a legislação de alojamento, incentivando a diversidade e a inovação em ofertas turísticas”. No programa, quer voltar a diminuir os impostos sobre o alojamento local e reverter os limites ao registo de novos empreendimentos, numa altura em que já existem mais ALs per capita em Lisboa do que em Nova Iorque. A IL quer manter este mercado a funcionar de forma disfuncional, mesmo que ele não funcione para quem cá vive.

Desengane-se quem pensa que a IL quer “menos Estado”. Tanto no mercado de compra como no de arrendamento, o partido quer pôr o Estado a subsidiar os ganhos dos proprietários, aumentando as deduções em IRS do pagamento de rendas e juros do crédito à habitação (sendo que a suposta preocupação com a simplificação fiscal desaparece neste ponto).

Novamente, os liberais colocam as fichas na redução de impostos e no seu suposto potencial de aumentar a construção. No entanto, se não se restringir a procura especulativa e a pressão turística, mesmo que a oferta aumente, continuará a ser absorvida por esta franja e os preços da habitação dificilmente diminuirão para valores comportáveis.

Trabalho: voltar à página da Troika

O programa da IL para o trabalho é um autêntico regresso à agenda da Troika. Sob a capa da “flexisegurança”, aquilo que os liberais defendem é o aprofundamento da precarização do trabalho: facilitação de despedimentos, redução da proteção laboral dos trabalhadores (remetendo aspetos como o período experimental, o tempo de trabalho e “aspetos relativos à extinção dos vínculos” para negociação individual ou coletiva) e desregulação dos horários, nomeadamente através da reintrodução da hipótese de recurso a bancos de horas por negociação individual (podendo o horário normal de trabalho ser aumentado até duas horas por dia, 50 horas por semana e 150 horas por ano).

Além disso, a IL quer “evoluir para um modelo setorial de negociação de salário mínimo em vez de uma imposição estatal igual para todas as atividades”. O partido sempre teve uma relação difícil com o salário mínimo, tendo já defendido que este deveria ser municipal e agora que deve ser setorial, aparentemente para evitar a definição de um patamar mínimo por parte do Estado.

Sobre pensões, a IL propõe uma profunda reforma com a “introdução de um pilar de capitalização obrigatório e incentivo ao pilar de capitalização de contribuições voluntárias”, abrindo a porta a que sejam os privados a gerir estes fundos e a investi-los nos mercados financeiros. É uma proposta antiga de quem pretende privatizar a Segurança Social. Embora não o explicite desta vez, no programa de 2022 defendia também o fim da TSU (contribuição paga pelas empresas por cada trabalhador). Mais uma vez, beneficia-se as empresas, reduz-se a redistribuição de rendimento e ainda se entrega um fundo de milhares de milhões de euros aos privados para investirem na bolsa, omitindo os riscos associados.

Os truques liberais não funcionam

O programa da IL combina um choque fiscal (sem contas credíveis) à aposta nos privados para a maioria dos serviços essenciais, da saúde à educação e aos transportes. Este é o principal truque dos liberais: acenar com pequenas reduções de impostos enquanto se corta nos serviços públicos e se contratualizam mais serviços com os privados. Serve de pouco reduzir impostos se o desinvestimento no Estado Social empurrar as famílias para serviços privados mais caros.

Se a preocupação fosse mesmo com a melhoria dos rendimentos das famílias, algumas medidas aprovadas durante a Geringonça, como os passes sociais (que reduziram drasticamente o preço dos transportes) ou os manuais escolares gratuitos, foram bem mais significativas para famílias de rendimentos médios e baixos do que a redução de impostos prometida pela IL.

A “mudança” proposta pela direita é o regresso a um passado de má memória no país: precarização laboral, redução dos direitos dos trabalhadores e privatização de serviços públicos, agora aliada a uma redução de impostos regressiva que beneficia essencialmente a pequena franja dos que já ganham mais. A direita não está a falar para a maioria das pessoas. Está a falar para os ricos.

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