terça-feira, 28 de setembro de 2021

Portugal precisa de baixar os impostos para sair da crise?


Embora ainda não tenha sido dado o tiro de partida oficial para as negociações do Orçamento de Estado de 2022, há quem já se comece a posicionar neste debate. O Conselho Nacional das Confederações Patronais (CNCP) apresentou recentemente um conjunto de 20 propostas que pretende ver aplicadas já a partir do próximo ano. Reconhecendo que "o necessário esforço de reequilíbrio das contas públicas não pode constituir-se, na situação presente, na primeira prioridade da política orçamental", as confederações patronais defendem alterações ao sistema fiscal em Portugal - a ideia, dizem, é promover "uma política fiscal amiga do crescimento e do desempenho do tecido produtivo nacional". Para isso, querem não apenas prolongar a vigência dos créditos fiscais extraordinários ao investimento, como também garantir a redução do IRC, da derrama estadual (que passaria a abranger apenas as empresas com lucro superior a €5 milhões) e das tributações autónomas, defendendo ainda a redução das taxas de IRS.

Este tipo de propostas é normalmente fundamentado por dois argumentos. O primeiro é o de que, atualmente, se pagam demasiados impostos em Portugal. O CNCP considera que o próximo orçamento deve ter como “preocupação central […] aliviar a carga fiscal às empresas e famílias”. O segundo é o de que baixar os impostos tem efeitos positivos para o conjunto da economia - como argumentam os patrões, "a redução das taxas do IRC potencia o crescimento económico, a criação de emprego e a atração do investimento". No entanto, nenhum destes argumentos sobrevive ao confronto com os factos.

O primeiro argumento parte de um equívoco: o de que a "carga fiscal" serve como indicador do esforço a que as empresas e os cidadãos de um país estão sujeitos por via da fiscalidade. Como tem sido explicado, a carga fiscal corresponde apenas ao rácio das receitas do Estado com impostos e contribuições sociais sobre o PIB. Ou seja, um aumento da carga fiscal pode estar relacionado com a redução do desemprego (e consequente aumento das receitas de impostos e contribuições), o aumento dos salários (que passam a ser abrangidos por taxas de imposto mais altas) ou a tributação de rendimentos que anteriormente escapavam aos impostos. Além disso, a carga fiscal em Portugal continua abaixo da média da Zona Euro e da União Europeia, sendo também inferior à dos países mais desenvolvidos da região - Alemanha, França, Bélgica, Países Baixos, Áustria, bem como os países nórdicos (gráfico acima). Nestes países, maiores receitas do Estado conjugam-se com serviços públicos mais robustos e um Estado Social mais abrangente.

O segundo argumento está relacionado com a discussão em torno do "efeito multiplicador", que mede o impacto de uma determinada medida orçamental, como um aumento da despesa ou um corte de impostos, no crescimento económico. A ideia expressa pelas confederações patronais é a de que a diminuição dos impostos pode estimular o investimento das empresas, gerando efeitos positivos para o conjunto da economia pelo lado da oferta. No entanto, a evidência empírica não o tem confirmado. Em junho deste ano, Sebastian Gechert e Philipp Heimberger publicaram o estudo "Os cortes de impostos para as empresas estimulam o crescimento económico?", em que analisam a literatura relevante e mostram que os economistas não têm encontrado dados que suportem esta relação. Os cortes de impostos desta natureza têm, isso sim, o potencial de aumentar a desigualdade, uma vez que beneficiam sobretudo os empresários e gestores de topo, o que talvez ajude a explicar a posição das confederações patronais.

Na verdade, a maioria dos estudos sobre efeitos multiplicadores conclui que o impacto de um corte de impostos no crescimento do PIB é bastante inferior ao de um aumento da despesa pública, e em particular do investimento público, que além de constituir um estímulo à procura no curto prazo, também contribui para o aumento da produtividade da economia a médio/longo prazo. Ou seja, um aumento de 1€ na despesa do Estado tem maior impacto no crescimento da economia do que um corte de 1€ nos impostos cobrados. Isto é especialmente importante em períodos de crise e elevada incerteza: nestes períodos, a intervenção do Estado é decisiva para fazer face à quebra do consumo e do investimento do setor privado. É um tema para próximos artigos.


3 comentários:

Jose disse...

O pôr o PIB como o vector da análise sempre oculta o essencial: tem o país uma estrutura empresarial concorrencialmente forte, estruturalmente consolidada e inovadora tecnológicamente?

Anónimo disse...

Quando se fala em carga fiscal, ouve-se falar noutro indicador - o esforço fiscal.

João Vasco disse...

O problema desse indicador - esforço fiscal - é que está mal definido.
Já vi pelo menos umas 4 fórmulas diferentes por aí a circular.

Uma das fórmulas do esforço fiscal é (Receitas fiscais/PIB)/PIB. Essa fórmula é, em si, uma ferramenta de propaganda. Vejamos: imaginemos por hipótese que os países em geral usariam cerca de 30% do PIB para financiar as várias despesas sociais, etc. Se isso assim fosse, iríamos concluir que os países mais ricos têm um menor esforço fiscal, uma vez que teríamos o esforço fiscal igual a 0.3/PIB. Mas note-se: essa conclusão não surgiria por realmente existir uma tendência dos países mais ricos para gastar menos, neste exemplo estamos a assumir que gastam o mesmo. Essa conclusão surge "por construção".

Seria um pouco como usar como indicador "Robustez do estado social" e dividir os custos do estado social pela população. Iria concluir que a prosperidade do país está associada à "robustez do estado social", mas essa conclusão surgiria por "construção", por ter dividido pela população e não pelo PIB. Ao não dividir pelo PIB "construo" uma conclusão favorável ao estado social, ao dividir uma vez a mais "construo" uma conclusão desfavorável. Ambos os exercícios seriam manipulatórios.
Assim sendo, essa fórmula para contabilizar o "esforço fiscal" é pouco mais que uma ferramenta de propaganda.

Existem outras. Uma que parece razoável é fazer o ajuste linear entre carga fiscal e PIB e depois ver como é que cada país se desvia dessa linha, se para cima ou para baixo. Aí por construção já não temos uma associação entre PIB e esforço fiscal positivo ou negativo, mas dá para ver como é que um país em particular se desvia, para cima ou para baixo, dos restantes. Claro que mesmo assim o indicador terá uma conotação negativa e tudo o mais, mas já poderia ter alguma utilidade se adequadamente interpretado. Acontece que quase nunca é esta a fórmula que é usada para determinar o "esforço fiscal". Na realidade, quase sempre que se fala em esforço fiscal quem explica o conceito omite a fórmula, dizendo apenas que a mesma carga fiscal deve corresponder a um esforço fiscal maior se o país for mais pobre - mas há, literalmente, infinitas fórmulas possíveis que correspondem a essa condição.