“É que – nunca é demais insistir – o dinheiro é nosso. Temos o direito de perceber como ele anda a ser usado”. Assim termina Susana Peralta a sua crónica, onde apela a uma maior transparência do governo relativamente ao orçamento. Concordando com o que afirma (quem é que não quer mais transparência do orçamento?) e compreendendo que se trata apenas de um artigo sobre a transparência do orçamento, parece-me ainda assim que existe uma grande desproporcionalidade entre a primeira frase (o dinheiro é nosso!) e a timidez do apelo que é feito em seguida.
Subjacente a esta desproporcionalidade creio estar uma conceção convencional do dinheiro, comum nos manuais de Economia, segundo a qual este surge (quer atualmente, quer na sua origem histórica) de forma “natural”, como resultado das ações descentralizadas de indivíduos, das suas opções e preferências numa lógica de mercado livre, havendo até quem descreva este processo como o mais democrático possível. Daqui decorre que qualquer interferência neste processo é vista como ilegítima e desrespeitosa das escolhas e preferências dos indivíduos devendo, portanto, ser a mínima possível. Esta conceção, instrumental para a legitimação duma sociedade submissa à lógica do mercado, não corresponde à realidade atual nem a sua história de origem do dinheiro tem qualquer sustentação empírica.
Uma perspetiva alternativa (apoiada por factos e lógica) atribui, para o bem e para o mal, ao Estado, ou a uma autoridade central, um papel fundamental na criação e formulação de dinheiro e do sistema monetário, sendo este um bem público, uma criatura do Estado. Segundo esta visão, não existe nada de “natural” na forma como o dinheiro surge na economia, sendo este antes uma construção coletiva com beneficiados e prejudicados e efeitos profundos no funcionamento da economia. Christine Desan é atualmente a principal figura desta perspetiva e a que a melhor tem exposto e divulgado, apelando a uma democratização do sistema monetário. Recomendo o seu livro “Making Money: Coin, Currency, and the Coming of Capitalism”, ou estes
excelentes artigos, assim como a conferência que organizou há dois anos intitulada
Money as a Democratic Medium ou uma das inúmeras palestras e entrevistas que facilmente se encontram por aí.
No pico da sua hegemonia, a conceção convencional de dinheiro foi institucionalizada - e ainda mais reificada do que era até então - com a criação do euro, onde o dinheiro parece menos nosso do que nunca, tendo o campo de contestação política do seu desenho passado para um nível europeu, convenientemente longe das tricas políticas nacionais. Mas isto não pode limitar o horizonte das nossas reivindicações e aspirações sobretudo num cenário de emergência social e climática. É importante que tenhamos presente o carácter público e comunitário da forma que medeia praticamente todas as interações duma economia monetária para que consigamos legitimar as transformações da nossa sociedade de que tão urgentemente precisamos. É que – nunca é demais insistir – o dinheiro é nosso. Temos o direito de exigir que este seja reformulado para dar uma resposta mais eficaz às nossas necessidades e aspirações.
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2 comentários:
O dinheiro que está nos cofres do Estado não é dos contribuintes.
Pela mesma razão que o dinheiro que está nos cofres da EDP, ou da MEO, etc. não é dos clientes destas empresas.
O dinheiro que damos como impostos ao Estado é o pagamento de diversos serviços que o Estado nos presta.
Se os representantes que elegemos para gerir a coisa pública, cobram impostos que não estavam previstos no Orçamento, ou gastam o dinheiro para além do que está previsto no orçamento, devem ser penalizados por isso. A principal principal penalização é não obterem o nosso voto nas próximas eleições.
Excelente post Pedro Pratas, a realidade tem como ponto de partida uma conceptualização e o que nos é apresentado é uma mentira e a mentira esconde sempre um inconfessável interesse. Na nossa sociedade faz-se a apologia da ignorância e da pobreza, o progressismo está proibido, não pode ser exercido nem deve ser falado.
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