sexta-feira, 9 de março de 2012

Questões de fundo

O ruído que a comunicação social produz todos os dias com a crise da zona euro, e os seus aspectos particulares em Portugal, centra-se no défice orçamental e na dívida pública. Ao fazê-lo oculta o problema de fundo, a dívida privada externa. Todos sabemos que a integração da economia portuguesa no euro produziu um crescimento medíocre que está associado a défices sistemáticos no comércio com os restantes países da zona. Antes do euro, o país desvalorizava o escudo para encarecer as importações e aumentar a margem de lucro dos exportadores, desse modo reequilibrando a balança comercial e recuperando as reservas de divisas. Como membro da zona euro, perdeu esse instrumento de regulação. Os bancos dos países excedentários foram financiando os nossos défices e criou-se a ilusão de que as desvalorizações pertenciam ao passado. Até que a grande recessão atingiu a Europa.

A crise do euro, em Portugal e no resto da periferia, é a da impossibilidade de o país manter indefinidamente o seu desequilíbrio externo, a impossibilidade de acumular dívida privada sem limite. Com a progressiva recusa de financiamento por parte dos bancos estrangeiros, o país acabou por perceber que afinal o défice externo permanece como problema central da economia. Como era de esperar, o financiamento da troika foi obtido sob condição de uma desvalorização, agora interna. Trata-se de produzir uma forte recessão na economia, de tal forma que, ao reduzir-se o consumo e o investimento, também se reduzam substancialmente as importações. A recessão, produzindo elevado desemprego, também cria uma forte pressão para a descida dos salários com vista ao estímulo das exportações. As reduções de salários na administração pública também transmitem ao sector privado o sentido global da política económica.

Como está à vista de todos, a via da desvalorização interna é de uma crueldade atroz. Os custos humanos do desemprego numa escala inimaginável e em condições de apoio reduzidas, a humilhação, a conflitualidade e até a desagregação sofrida pelas famílias falidas sujeitas a pedir apoio dos familiares mais idosos, a perda definitiva do potencial de produção das empresas encerradas, tudo isto constitui o preço a pagar para obter a redução das importações. Entretanto, a redução salarial dos que ainda têm emprego dificilmente alcançará a escala dos 20%-30% que alguns preconizam, até porque a Alemanha não abandonará a compressão salarial que sustenta o seu modelo mercantilista. Em qualquer sociedade a resistência à baixa dos salários nominais é grande, por maioria de razão em Portugal, onde os salários pagos pelas indústrias exportadoras são baixíssimos, frequentemente apenas o salário mínimo. Na Grécia, após anos de recessão e uma taxa de desemprego de 20%, o indicador dos “custos de trabalho por unidade produzida” ainda permanece acima do seu valor em 2006(1). Acresce que uma política económica pró-cíclica agrava o peso da dívida pública e torna ainda mais difícil o desendividamento do sector privado. Numa palavra, a desvalorização interna aprofunda a crise financeira.

Estes são os custos da transformação de Portugal numa região empobrecida, estância de lazer de uma UE germanizada. Será mesmo este o futuro que queremos para o nosso país? Não seria preferível recuperar as vantagens da soberania monetária?


(1) M. Weisbrot e J. A. Montecino (2012), More Pain, no Gain for Greece: Is the Euro Worth the Costs of Pro-Cyclical Fiscal Policy and Internal Devaluation?

Publicado ontem no jornal i.

3 comentários:

Luis Pedro Coelho disse...

Concordo plenamente.

A insistência do governo grego em manter o país no euro está-se a tornar ridícula.

João Carlos Graça disse...

Sim, Jorge, claro que era "preferível recuperar as vantagens da soberania monetária"!
Mas vivemos decididamente, nessa matéria, num barranco de cegos... Ficámos dependentes, deixámos de apreciar a nossa liberdade política, agora levamos porrada a valer, mas continuamos com medo de recuperar a "liberdade positiva" (ler auto-determinação colectiva, nacional), e cada vez com mais medo.
Quanto mais "ela" nos bate, mais gostamos "dela", da "Europa", mais esperamos "dela", mais receamos sequer considerar a eventualidade da nossa "vida sem ela" ou "depois dela".
Isto ainda vai acabar, sim. Mas mesmo muito mal para nós.
E a esquerda "pró-europeísta" tem já - e vai ter mais - uma responsabilidade tremenda nesse desastre colectivo...

Maquiavel disse...

Caro Jorge, primeiro que tudo tenho de referir que o gráfico apresentado é falacioso, pois parece que os salários em 2000 estavam ao mesmo nível em termos absolutos, e como tal, a "culpa" da falta de competitividade foi apenas nos "gananciosos trabalhadores".

Pois é, os salário portugueses cresceram 20% mais que os alemäes (que practicamente se mantiveram nesse períodos), mas continuam a ser, em média, apenas 50% dos alemäes em valores absolutos.

Antes, desvalorizava-se a moeda... mas que benefícios trouxe a desvalorizaçäo de 1979, de 1982, ... quando ela näo foi usada para modernizar o tecido produtivo? Pois... NADA! Compare-se com a desvalorizaçäo da markka finlandesa de 1982. A questäo de fundo, lá está, é que na Finländia se investiu na qualidade e desenvolvimento de tecnologia *local*, em Portugal näo se tocou no paradigma de produzir a baixíssimo custo (a mais frágil das vantagens competitivas).

Sabes, tal como eu, que neste momento a "soberania monetária" näo iria ter outras consequências que aquelas da "desvalorizaçäo interna", e o drama é esse.

JCG, a responsabilidade tremenda de certa esquerda "pró-europeísta" no desastre colectivo é, "apenas", ter alinhado no neoliberalismo. Deslumbradas como o "Fim da História", guinaram ao neoliberalismo,e agora tentam desesperadamente sair do päntano. Tarde piaste, o keynesianismo foi, com a sua ajuda, ilegalizado na UE.

Mas deixem lá. Na semana passada houve greves na Alemanha, convenientemente esquecidas pelos merdia portugueses, em que reclamam aumentos de até 6%. A Merkelinha que se cuide.