Como se sabe, Ricardo Reis (RR) é um dos mais reputados economistas portugueses.
Para contextualizar, recordemos que essa reputação lhe tem permitido partilhar com o grande público pedaços de sabedoria económica que se revelaram cruciais no desenvolvimento económico e social do nosso país.
Por exemplo:
No início da maior crise financeira desde 1929, veio dizer-nos que “o efeito na economia real dos problemas nos empréstimos subprime deve ser pequeno. Estamos a falar só de 1% dos devedores no mercado da habitação americano em incumprimento”.
Em 2010, quando o nosso país se viu obrigado a enfrentar, simultaneamente, as declinações europeias daquela profunda convulsão financeira e uma crise de endividamento privado externo em grande medida provocada por uma integração monetária disfuncional, RR defendia que a consolidação orçamental que se preparava estava teoricamente bem sustentada e podia ser expansiva.
Logo em Outubro de 2008, o terramoto provocado pela crise do subprime forçou Alan Greenspan a pedir publicamente desculpa. Parece que o problema era que “precisamente” “a sua visão do mundo, a sua ideologia, não estava certa, não estava a funcionar”.
E também não tardou muito para que a fraude científica da consolidação orçamental pró-cíclica fosse exposta teoricamente um pouco por todo o lado e, finalmente, na prática, pela realidade prosaica das coisas. Blanchard, um dos pais da ideia, viu-se obrigado a um humilhante mea culpa e a assumir que os multiplicadores orçamentais usados para sustentar a ideia que cortando se cresce estavam afinal largamente subestimados. Coisa pouca, apenas 300%.
E Ricardo Reis? Pediu desculpa? Passou a ter maior cautela nas suas previsões e prescrições? Vejamos:
Por exemplo, em Abril de 2020, defende que "[q]uem teve austeridade, quem não acumulou dívida nos últimos 10, 20, 30, 50 anos teve agora uma capacidade muito maior de responder e de acudir aos seus cidadãos e empresas". Ou seja, quem teve austeridade e, por isso fez o seu PIB cair aos trambolhões, muito para lá das previsões de RR, e, consequentemente, viu a sua dívida pública crescer proporcionalmente, esses, estão mais bem preparados para combater a pandemia.
Qual é o sentido disto?
Agora recentemente, sem se deixar atrapalhar pelo embaraço das posições passadas, face a uma mais que necessária proposta de anulação da dívida pública detida pelo BCE, RR volta à carga: “Não consigo levar isto sequer a sério. Seria uma claríssima monetização da dívida pública e retiraria a independência ao BCE”.
RR, muito sério, inamovível no extremo-centro, não embarca em extremismos. Ou parece que?
É verdade que a proposta de anulação da dívida, na medida em esta significa que as obrigações de dívida pública não seriam colocadas de novo no mercado, não retira reservas de circulação e, nesse sentido, é uma operação de monetização da dívida. Mas é uma monetização desejável. Com dívidas públicas elevadas, economias a recuar por insuficiência de procura e inflação historicamente baixa, não há qualquer razão de interesse público para não o fazer. Pelo contrário. Como, embora cheios de cautela e desnecessários caldos de galinha, reconhecem, por exemplo, Olivier Blanchard e Jean Pisani-Ferry.
No Twitter, muito menos parco do que nas declarações ao Expresso, RR vem acrescentar que as “reservas do banco central são apenas outra forma de empréstimo [dívida]”. RR está apenas a levantar poeira para ofuscar. O que diz é apenas parcialmente verdade e, na zona Euro, no presente momento, nem sequer parcialmente o é porque o BCE não remunera as reservas (dinheiro) que cria do nada e pelas quais troca as obrigações de Tesouro que adquire. Pode ter que o fazer no futuro, de facto, se o nível geral de preços subir para além do desejável e precisar de subir as taxas de juro para conter aquela subida. Mas não tem que o fazer agora, o que significa que o endividamento público que detém no seu balanço não paga juros ao setor privado. E, antes de decidir remunerar reservas, ainda pode, por exemplo, decidir aumentar o nível dessas reservas que a banca privada é obrigada a deter para operar. Se o nível de reservas obrigatórias é 1%, há ampla margem para o aumentar. E, claro, tudo isto só se tornaria necessário se fosse precedido por um uso errado das restantes políticas económicas, permitindo que a despesa agregada, a procura, excedesse a capacidade de produção da economia.
Adicionalmente RR opõe-se aquela operação de anulação de dívida pública do BCE, dizendo que “retiraria independência” ao BCE. Mas o que RR não diz é que a dependência do banco central face aos Estados significaria independência em relação à banca privada; que a separação entre o tesouro público e o banco central é uma escolha política nunca sufragada e que, na zona Euro, esta arquitetura disfuncional, que substitui a política por disciplina dos mercados, gerou e continua a gerar resultados perversos.
A meu ver, ao contrário, RR faria melhor em reconhecer, como afirma Adam Tooze, que embora durante décadas, a política monetária tenha sido tratada como técnica e não política, a pandemia pôs fim a essa ilusão para sempre.