domingo, 2 de dezembro de 2018

O que acontece a um ministro que viola a lei?

Há uma coisa que confunde neste caso da greve dos estivadores do porto de Setúbal. E essa perplexidade decorre da leitura de uma disposição do Código do Trabalho que está em vigor.

É sobre o direito à greve, constitucionalmente previsto.

Artigo 535.º 
Proibição de substituição de grevistas 
1 - O empregador não pode, durante a greve, substituir os grevistas por pessoas que, à data do aviso prévio, não trabalhavam no respetivo estabelecimento ou serviço nem pode, desde essa data, admitir trabalhadores para aquele fim.
2 - A tarefa a cargo de trabalhador em greve não pode, durante esta, ser realizada por empresa contratada para esse fim, salvo em caso de incumprimento dos serviços mínimos necessários à satisfação das necessidades sociais impreteríveis ou à segurança e manutenção de equipamento e instalações e na estrita medida necessária à prestação desses serviços.
3 - Constitui contraordenação muito grave a violação do disposto nos números anteriores.

No porto de Setúbal, a empresa contratou trabalhadores de fora da empresa para acudir a uma acumulação no porto de carros por embarcar, produzidos pela Autoeuropa, em consequência da greve dos trabalhadores dessa empresa. Essa era a sua força: jogar o poder da Autoeuropa e peso do Estado português contra uma empresa que comete ilegalidades ao contratar precariamente quem devia ter um contrato permanente. Em vez de acudir a esse fundo da questão, o Governo mobilizou recursos públicos para proteger a vinda e a entrada trabalhadores de fora, para realizar o trabalho que os trabalhadores, numa justa, legal e tempestiva greve, não queriam fazer. Mas ao fazê-lo caiu na ilegalidade.

Possivelmente, o governo deve ter recebido enormes pressões, a ponto de vários ministros terem concordado em violar a lei e a Constituição. Já nem se fala disso, porque ninguém vai aceitar falar sobre isso. Mas a lei não pode ser objecto para ser usado em real politik.

E nesse caso, é caso para perguntar: Já foi aplicada esta "contraordenação muito grave" no caso do Porto de Setúbal? Ao abrigo de que disposição legal não foi esta contraordenação ainda aplicada? Ao abrigo de que disposição legal foram os recursos públicos usados para proteger uma empresa que estava claramente - e com o apoio do Estado - a violar a lei de forma "muito grave"? E estas não foram as únicas violações à lei, como defende o advogado Garcia Pereira.

Estamos ainda à espera das respostas. Porque o Código do Trabalho não pode servir para fazer caducar convenções colectivas, enquanto se aceita que empresas poderosas actuam ou beneficiem de actuações à margem da lei.

Actualização a 3/12/2018: comunicados do Governo e da parte patronal dos estivadores têm as mesmas gralhas... 

12 comentários:

Anónimo disse...

Greve ao trabalho extraordinário , não greve total. O outros tem contratos ao dia.

Diógenes disse...


Gostava de saber qual a greve que não é furada por "amarelos" de dentro ou fora da empresa?

Geringonço disse...

Recentemente houve uma greve na Amazon em Espanha e outros países, e ao que parece a Amazon pediu às autoridades para vigiarem os trabalhadores de forma a manter a produtividade!

"Uma fonte do sindicato que organizou a greve disse que a Amazon queria enviar as autoridades para dentro do armazém e forçar os trabalhadores a trabalharem".

Amazon negou esta acusação.

"O pedido da Amazon deixou as autoridades estupefactas. O pedido foi categoricamente rejeitado pelas autoridades, as autoridades afirmaram que controlar trabalhadores não é a sua função".

https://www.businessinsider.com/amazon-asked-police-in-spain-to-intervene-warehouse-strike-2018-11

Jose disse...

« salvo em caso de incumprimento dos serviços mínimos necessários à satisfação das necessidades sociais impreteríveis»


Manter a AE a trabalhar é uma necessidade social impreterível?

Possivelmente os serviços mínimos - só aplicáveis a pessoal dos quadros - teria que os mobilizar a todos e não bastava ... e por aí fora até à requisição civil.

Mário Reis disse...

Lembro uma afirmação como ministra dos transportes, uns dias depois da morte de um maquinista em Mirandela, em que garantia a segurança e manutenção da linha do Tua, quando as crianças foram filmadas a retirar parafusos das travessas apodrecidas.
Numa sociedade não anestesiada e enfraquecida pela mediocridade, não seria nunca ministra.
Parabéns por pôr a nu estes espíritos da conciliação e obediência.

António dos Santos disse...

No caso os trabalhadores não fazem parte dos quadros da empresa pois,
na sua maioria são contratados à jorna ... razão causadora da greve!

Anónimo disse...

Um governo que actua à margem da lei tem de ser deposto, e todos os que por participação directa e indirecta estejam envolvidos no caso devem ser criminalmente indiciados.

Anónimo disse...

Exige-se um relatório da ACT sobre o caso, porque a competência e a capacidade desta autoridade tem de ser escrutinada.

Anónimo disse...

Fica o exemplo dos trabalhadores na cidade portuária de Emden (Alemanha) que recusaram-se a descarregar na passada 5.ª feira um navio procedente de Setúbal, em solidariedade com a greve dos estivadores portugueses.

http://www.labournet.de/internationales/portugal/gewerkschaften-portugal/nach-dem-polizeiueberfall-im-hafen-von-setubal-der-streik-wurde-ausgeweitet-portugals-regierung-will-nun-doch-verhandlungen/?fbclid=IwAR2ojBnRUmf_bla4OIVOoFehvrrBJrrsBNgdgTeCdA333MMI5_oTMXKpNaE

José M. Sousa disse...

Onde é que está o Ministério Público? Não há nenhum advogado que possa interpor queixa naquele?

João Oliveira disse...

O Código do Trabalho trabalha?
Depende ...

Anónimo disse...

Este episódio de um Governo de um partido que se intitula socialisata usar a polícia para ajudar uma empresa a violar a lei da greve e, desse modo, contribuir para esvaziar o já frágil direito à greve é muito revelador e tresanda a Esdado Novo.
Com duas diferenças principais:
(i) durante o Estado Novo, o PCP era contra; agora, assobia para o lado e ignora a questão, tal como aparentemente fez também o Bloco.
(ii) durante o Estado Novo, estes episódios podiam ser acompanhados de agressão aos trabalhadores e isso agora não aconteceu.

Outro aspeto curioso é que os jornalistas ignoraram a questão, fingindo desconhecer ou achar irrelevante o que consta deste post de JRA. Foi preciso esperar pelos comentários de fim de noite para ouvir Francsico Louçã, Inês Pedrosa, Raquel Varela e Daniel Oliveira assinalarem este tristo episódo da também já frágil democracia portuguesa. A censura do lápiz azul dificilmente conseguiria melhor.