quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Dá mesmo vontade de colocar um colete


O que é mais impressionante quando se participa dessas reuniões espontâneas em todas as rotundas do país, é talvez, para lá da raiva, a alegria que anima o povo. Como se sair de casa, ocupar o espaço público e engajar-se em conversas políticas com estranhos já fosse um fim em si mesmo, o começo de um renascimento. Porque essa experiência é de um tipo incomum: humana e viva, como eventos desportivos, mas muito mais profunda pela sua dimensão cívica. Todos os coletes amarelos sentem confusamente que são mais uma vez povo pela primeira vez desde há décadas; que um sistema odiado por eles, que pensava tê-los conquistado, é subitamente deslegitimado pelo seu aparecimento; que os cidadãos virtuais, chamados a expressar sua escolha sob restrição em eleições específicas, tornam-se cidadãos reais, capazes de desempenhar um papel importante na vida da cidade. Nestas centenas de ágoras improvisadas, cada um sente renascer em si um autêntico vínculo cívico, a fraternidade que surge espontaneamente das discussões políticas. É uma fonte de alegria profunda que essa palavra seja divulgada e trocada entre os cidadãos. 
(...) 
Trinta anos de frustração, ressentimento e amargura face ao declínio da coisa pública imposta a uma França relutante por governantes conformistas e covardes em nome de uma adaptação sem fim à globalização e de uma submissão necessária para uma construção europeia supostamente salvadora. Trinta anos de regressão social, de desregulação financeira, de enfraquecimento económico e de recuo do Estado em todos os domínios. Trinta anos de raiva reprimida que de repente explode na cara dos nossos dirigentes, atordoados pela ressurreição súbita do povo como força política directa e activa. Hoje, num justo retorno, ocorre um relembrar súbito da realidade fundamental do nosso universo político: não há democracia sem demos. Que seja preciso recordar essa evidência no ponto em que estamos, é algo que diz muito sobre a degeneração política, a desvitalização da democracia que caracterizou as últimas três décadas. 
(...) 
Os ministros afirmaram repetidamente que é difícil saber o que os Coletes Amarelos realmente queriam, já que suas reivindicações são diversas e às vezes confusas, mas é possível resumi-las numa única ideia: eles querem que o governo adopte uma política económica precisamente contrária a que tem conduzido até agora, o que significa substituir uma política da oferta inepta e destrutiva - as últimas décadas são uma prova irrefutável disso - por uma política da procura, ou seja, por um grande plano de investimento público de várias dezenas de mil milhões de euros, destinado a estimular o crescimento, criar empregos maciçamente, financiar a transição ecológica e restaurar, finalmente, as funções degradadas do Estado republicano. Para ser eficaz, um tal plano necessariamente implica fazer saltar o ferrolho europeu, livrando-se das restrições comunitárias e, idealmente, recuperando a nossa soberania monetária, retomando o controlo do banco central e instaurando temporariamente restrições à livre circulação de capitais. Por outras palavras, lançar uma revolução ideológica e institucional que varreria o essencial da UE.

Alguns dos excertos do notável artigo de Eric Juillot sobre uma revolta que faz sentido, disponibilizados e traduzidos aqui pelo nosso comentador ST, a quem agradecemos.

14 comentários:

Jaime Santos disse...

Sem dúvida interessante. Só que, depois o autor, ao dizer: 'Para ser eficaz, um tal plano necessariamente implica fazer saltar o ferrolho europeu, livrando-se das restrições comunitárias e, idealmente, recuperando a nossa soberania monetária, retomando o controlo do banco central e instaurando temporariamente restrições à livre circulação de capitais. Por outras palavras, lançar uma revolução ideológica e institucional que varreria o essencial da UE.', substitui-se a quem protesta na rua. Isso é o que ele pensa.

Ou seja, na verdade, esta declaração pode não ser mais do que puro 'wishful thinking'. Marine Le Pen bem viu o que lhe aconteceu nas urnas (essa coisa que despreza quem acha que o poder está na rua) quando quis sair do Euro, até porque, como de resto todos na Europa que propõem tal coisa, não se percebe bem como pretendem fazê-lo (e andam a dizê-lo desde 2012).

Ah, e João Rodrigues, o Governo italiano entretanto parece que mostra sinais de flexibilidade...

S.T. disse...

Jaime Santos não percebe que a flexibilidade é muito sexy e atrai votos.

Ponha lá o neurónio solitário a trabalhar.

Se a EU torcer o braço a Salvini e a Di Maio quantos votos é que isso valerá nas europeias de 2019? LOL

Entretanto, noutro registo mas sempre na macroeconomia da EU, no Tweeter Vitor Constâncio e Mervyn King trocaram umas farpas.

O que levou Vladimiro Giaché a tuitar:

"Interesting. A former member of ECB Board that accuses someone else to incur in macroeconomic mistakes..."


https://twitter.com/Comunardo/status/1070060637634613250

S.T.

S.T. disse...

Se Jaime Santos se tivesse dado ao trabalho de ler o artigo até ao fim teria percebido que o autor não tem ilusões quanto ao alcance do movimento dos gilets jaunes.

"Techniquement possible, la restauration d’un ordre économique souverain est cependant devenue inconcevable politiquement pour nos représentants. Entre le peuple et l’UE, acculés, il leur faut pourtant choisir, car le temps où l’on pouvait se payer de faux-semblants est, depuis deux semaines, révolu."

"Tecnicamente possível, a restauração de uma ordem económica soberana tornou-se no entanto, politicamente inconcebível para nossos representantes. Mas entre o povo e a UE, encurralados, eles têm agora que escolher, porque o tempo em que poderiam fingir chegou ao fim desde há duas semanas."

Como se vê o autor não tem ilusões mas sabe perfeitamente bem que a função deste movimento não é mais do que extrair algumas concessões e provar a vulnerabilidade e o odioso do poder europeísta.

Mas é a altura do baile em que as máscaras caem...

Não é o movimento dos coletes amarelos que vai fazer cair o euro, são as contradições insanáveis em que a incompetência das elites europeístas cada vez mais se encerra que se encarregarão de o abater.

Como diz um certo economista: Kapish, Jaime Santos? :)

S.T.

Jose disse...

Como sempre não faltam inteligentes a dar receitas sobre o que o povo quer.

A mais popular é sempre atirar dinheiro para cima dos problemas; se dá dívida ou inflação é sempre matéria secundária - há que viver cada hora como se fosse a última.

Se é serviço ao povo, poesia ou demagogia, importa pouco para um momento tão gozoso.

Anónimo disse...

"eles querem que o governo adopte uma política económica precisamente contrária a que tem conduzido até agora"
Votar Melenchon não é suficiente? Até podia ser mas dá trabalho e não dá aquela adrenalina da destruição e caos.

S.T. disse...

Numa outra vertente não directamente ligada aos coletes amarelos mas em que o traço de união é a estupidez das elites ordoliberais europeístas, Ashoka Mody comenta um artigo do FT, segundo o qual a Comissão Europeia pretende relançar (pela enésima vez :) ) o euro como moeda para transacções internacionais.

Ashoka Mody tuita:

"Brussels sets out plans for euro to challenge dollar dominance. This is so depressing. I want to hold my head in my hands and sob uncontrollably."

"Bruxelas estabelece planos para o euro desafiar o domínio do dólar. Isso é tão deprimente. Só me apetece segurar a cabeça nas mãos e chorar descontroladamente."

https://twitter.com/AshokaMody/status/1069927838718050304

E tem razão para isso! Quando as aventesmas da CE não percebem factos básicos como:

--- Este é o tipo de coisa que não se diz que faz, faz-se de mansinho.

--- Para que uma moeda seja utilizada em trocas internacionais precisa ter subjacente um título sólido "como uma barra de ferro", sem risco, assim como as obrigações do tesouro dos USA. A dívida norte americana funciona como parque de estacionamento de capitais. Ora o ECB não tem nada de parecido. Nem o seu principal accionista, a Alemanha, o permitiria.

--- Precisa de ter um sistema de transferências que não possa ser perturbado pelo opositor. Isso é trágicamente óbvio com as tentativas da CE de ultrapassar o embargo ao Irão que esbarram no domínio americano do SWIFT. Se a Comissão fosse composta de gente um bocadinho mais esperta já há muito teriam desenvolvido um sistema próprio como por exemplo fez a Rússia. Mas isso exige tempo, paciência e planeamento, não acontece assim num estalar de dedos.

O artigo do FT é este:

https://t.co/lq4zQKsqCC

Como soe dizer-se: Entradas de leão, saídas de sendeiro. LOL

S.T.

vitor disse...

A revolução esta na rua! Precisamente onde era mais desejável. No coração da Europa.

Jose disse...

É agora!
Agora é que vai ser!
...

Geringonço disse...

Jose, por favor responde! Qual é a tua actividade profissional?

S.T. disse...

Eu seria muito mais prudente do que o "Vítor". Revolução? Haja juízo! Como disse noutro comentário a função dos coletes amarelos não é fazer a revolução. É tão-sómente reverter, ainda que parcialmente, os ataques aos rendimentos da arraia-miúda francesa.

E para se compreender os riscos de se extremar posições ouçam Emmanuel Todd neste video:

https://www.youtube.com/watch?time_continue=1040&v=RvQc0TJUVdE

S.T.

S.T. disse...

Subjacente ao medo de Emmanuel Todd de que um excesso insurreccional conduza a uma forma ou outra de golpe de estado palaciano está o famoso Trilema de Rodrik, aqui definido:

https://rodrik.typepad.com/dani_rodriks_weblog/2007/06/the-inescapable.html

Reparem, Macron e o seu governo estão entalados entre o cumprimento dos tratados globalistas da EU e as justas reivindicações do coletes amarelos. Qual dos termos do Trilema de Rodrik irá ceder primeiro? A Democracia, o vínculo externo globalista ou a prosperidade dos franceses?

A dissolução do vínculo externo globalista da EU é a melhor solução, mas implica um agudizar das contradições internas (pressão dos gilets jaunes ou preferencialmente uma pressão eleitoral continuada) e externas (pressões políticas de outros governos lesados pelas políticas monetárias da EU).

Os globalistas sabem muito bem disso e daí a tentativa de fuga para a frente do "mais Europa", buscando na dissolução da soberania e dos povos a solução para as contradições do sistema. Os gilets jaunes contrariam esse movimento de dissolução mas têm que ser cuidadosos para não pôr em risco a Democracia.

Os gilets jaunes não são um movimento revolucionário. Tirem daí o sentido.

S.T.

vitor disse...

S.T.

A história também ensina que ninguém sabe como acabam este tipo de sublevações. Não sabe o Juillot, não sei eu nem sabe o S.T. Da mesma forma que não sabiam os contemporâneos de grandes revoluções como a Bastilha ainda na sua aurora. Logo não é uma questão de juízo mas de esperança. De alguém que já espera há muito tempo por uma revolta popular contra a ignomínia de meia-dúzia de privilegiados deterem mais de metade da riqueza toda do mundo. Não é um lugar comum afirmar que o povo pode tudo! Assim esteja para aí virado.

vitor disse...

Só para terminar esta aparente discordância, o que o S.T. preconiza chama-se tacitismo político. Que eu até prefiro abster-me de comentar. Porque eu nunca me vou sentir verdadeiramente derrotado se amanhã os coletes amarelos acabarem como acabaram os gorros encarnados o ano passado. Há muito tempo que à minha dimensão decidi apoiar toda e qualquer sublevação e da primeira à derradeira, com o objectivo de restituir verdadeiros direitos.

O que também me faz discordar do João Rodrigues quanto à recuperação de soberania como solução para o mundo actual é precisamente pensar que um pequeno país como Portugal hoje nada pode. Hoje a revolta na Europa contra os grandes interesses instalados tem que ser no mínimo de ordem continental. E apesar do meu mais profundo desprezo pelas redes sociais reconheço-lhes hoje uma capacidade de mobilização como nunca assisti à face da terra. Quase sem necessidade de outros catalizadores entres os diferentes povos. Um pouco à semelhança da solidariedade quase espontânea entre os estivadores alemães e os estivadores de Setúbal que ainda agora presenciamos. E termino como comecei o comentário anterior. Ao dia de hoje ninguém sabe como vão acabar os coletes amarelos e sobretudo com que ganhos.

S.T. disse...

Mais do que grandes fundamentações teóricas, é necessário nas análises que se façam ter um sentido das proporções e das forças reais em presença.

Primeiro os gilets jaunes não querem subverter a ordem política francesa. Como todos os movimentos políticos "ras-de-bol" não existe neles nem lideranças com ideias claras, estratégias definidas e nem a consciência do quadro político mais global em que se movem.

Segundo, nenhuma revolução pode triunfar sem que aqueles que defendem o regime com as armas sejam ou derrotados ou mudem de campo e se recusem a servir o regime.

Terceiro, é um grave erro de análise tomar a contenção das forças da ordem, provávelmente até por ordem das hierarquias, por vontade de não agir em defesa da ordem constitucional.

Portanto, os revolucionários de araque não fazem a mínima ideia do que seria necessário para fazer triunfar uma revolução nos dias que correm e com os meios de repressão de que estados como a França dispõem. As revoluções precisam de muitos mártires e felizmente não vejo muitos a oferecerem-se como voluntários.

Quanto às redes sociais, é tolo quem nelas ponha a sua fé. É grave que alguém que esteja na política profissionalmente ou até como amador não perceba que as redes sociais existem para ganhar dinheiro, que são corporações que vivem da venda dos dados (informações!) que recolhem e que servem as elites que as controlam directa ou dissimuladamente. Podemos servir-nos delas para os nossos próprios fins e ideias na extensão em que isso coincida com a latitude que elas permitam mas é tudo.

Os partidos de esquerda, sobretudo o BE deveria ser bem avisado de ter a sua própria rede de discussão e governança interna como por exemplo faz o M5S italiano. O PS devido à sua inorganicidade tem muito menos a ganhar com um tal nível de organização. E o PCP não deve precisar de lições nesse particular. :)

Mais tarde, se tivermos tempo e inspiração, abordaremos um último ponto sobre a suposta necessidade de uma "escala continental" da revolta em relação com a soberania.

S.T.