domingo, 19 de outubro de 2014

Vozes da austeridade


Paula vê o Estado a encolher no serviço de Acção Social Escolar. Não recebeu o cheque do costume. Recebeu dois livros do filho mais velho. Comprou os do mais novo, não conseguiu comprar os do mais velho. Pediu os que pôde, só que há dois manuais novos: Português e Matemática. Já disse ao miúdo: “Tens de esperar. Comprei os do mano, para o mês que vem, compro os teus”. Quinta-feira chegou a casa desolado: a professora de Português marcou-lhe falta de material. Paula torna a suspirar: “Pensam que se vive com 220 euros, não querem saber se os filhos precisam de calçado, de material…

De um lado, ele próprio, o professor — fisicamente cansado, desconfiado das intenções de quem governa o país, inseguro em relação ao dia de amanhã e desmotivado, descreve. Do outro, dezenas de crianças, muitas a beneficiarem de complementos alimentares, a maior parte com pelo menos um dos pais emigrados, que dizem que não sabem para que serve a escola, já que, com estudos ou sem eles, o seu destino é o desemprego ou a emigração. Ferreira Gomes faz este retrato com um pedido de desculpas e uma justificação — diz que, por natureza, é optimista. Acontece que “o que de mais precioso os últimos governos” lhe tiraram foi, “precisamente, a esperança”. 

Os cortes no subsídio de desemprego tiveram um impacto imediato na vida de Adelaide Paiva: deixou de reunir os dois filhos, nora, genro e netos no almoço dominical em sua casa. “Reunir a família não é nada de mais, não é viver acima das possibilidades, mas implica gastos e, sobretudo agora com o corte de 10% que vão fazer no meu subsídio, deixou mesmo de ser possível”.

1. Excertos de testemunhos recolhidos por jornalistas do Público num trabalho do Domingo passado que recupero neste. Ao dar voz aos que não têm voz, contribui para traçar o retrato da austeridade realmente existente. O retrato da destruição de capacidades, por via do desemprego, das escolhas trágicas impostas a cada vez mais, associado aos cortes nas gorduras de um país que vivia acima das suas possibilidades, um país pelos vistos viciado em trabalho durante a semana, em almoços familiares ao domingo, em manuais escolares, em calçado e coisas assim. As prestações sociais estão a cair desde 2010, numa altura em que mais eram necessárias por razões económicas, ligadas à estabilização da procura, e sociais, ligadas à protecção, sem separações artificiais entre estas esferas. O resultado está à vista: o risco de pobreza aumenta, em especial nas crianças, tornando o discurso sobre o mérito cada vez mais fraudulento, intensificando a injustiça social. Confirma-se uma das ideias em que mais aqui temos insistido: o Estado não pode comportar-se como se fosse uma família em crise e, por exemplo, cortar nos serviços públicos, no investimento e nos apoios sociais, embora tudo nos arranjos do euro conspire para fazer com que isto aconteça, sem destruir as famílias realmente existentes, miúdos e graúdos.

2. É bem verdade que os cortes continuarão, em especial na educação, no investimento público e nas prestações sociais, soubemo-lo esta semana. Que querem? A destruição mais ou menos rápida do Estado social está inscrita no ADN de uma política de classe, sobredeterminada pela escala europeia, que é causa e efeito da erosão da democracia na escala nacional. A potência de uma democracia também se vê pela forma como dispõe de meios para contrariar esta economia política do retrocesso. Aqui é preciso dizer, princípio da esperança, que a democracia portuguesa pode ser de cada vez mais baixa intensidade, mas ainda foi graças à Constituição desta República que tivemos um pequeno alívio da austeridade, uma alteração vantajosa para a justiça social e para o crescimento, embora tardia e modesta, da sua composição, com mais impostos e menos cortes na útil despesa. Agora, graças à aproximação de uma eleição, temos um orçamento de “austeridade eleitoral”, chamou-lhe o o Económico, naquele tom vagamente irritado com a maçada democrática, combinando a tal insensibilidade social de sempre com uma consolidação orçamental que, a fazer-se, far-se-á, apesar de tudo, sobretudo pelo tépido crescimento previsto. Quando este for revisto em baixa, logo se vê, prevendo-se que a pressão de fora, de Bruxelas e de Frankfurt, favoreça os mesmos de sempre cá dentro ao favorecer a mesma política. O que se sabe há muito é que a destruição gerada pela austeridade só pode ser superada por uma democracia de alta intensidade e esta exige um processo de recuperação de instrumentos de política económica que lhe dêem densidade material e que sirvam para capacitar os que por aqui vivem.

15 comentários:

Anónimo disse...

Com a limpidez das coisas claras e com a força de sabe que tem a razão dos que são explorados

"A destruição progressiva do Estado social está inscrita no ADN de uma política de classe"

Entretanto Eugénio Rosa alerta-nos que "está neste momento em curso uma gigantesca operação de manipulação e mentira levada a cabo pelo governo com o objetivo de convencer a opinião pública que se verificará em 2015 uma redução da carga fiscal.
http://www.eugeniorosa.com/Sites/eugeniorosa.com/Documentos/2014/49-2014-OE2015.pdf

De

Jose disse...

1 - Os quadros da pobreza atribuídos às políticas dos governos significa pertenderem significar que só há pobreza porque há maus governos.
Assim se constrói a pieguice de quem diz que o facto o de TC dar dinheiro aos bem empregados nada tem a ver com a diminuição das prestações sociais ao desempregados.

Jose disse...

Sempre me comove ouvir falar na «recuperação de instrumentos de política económica que lhe dêem densidade material».
Já me vejo com moeda, reservas de ouro, Forças Armadas, pautas aduaneiras e ... uma ditadura nos cornos pela mão dos pertensos arautos da democracia!!!

Aleixo disse...

Não chega encher a boca com democracia!

A democracia representativa deixou cair a máscara e,

a captura dos centros de decisão,

só pode ser eliminada por ruptura do sistema.

Os “instalados” olham para o lado, com aquele ar de desdém cheio de superioridade,

passando atestados de mentecaptos aos representados.

Certo…certo…
é a defesa do interesse dos “1%“ !

Será que isto é deles?!

Podemos inventar aqui muito mas, só há uma maneira de impôr a vontade da maioria -

DEMOCRACIA DIRECTA!

Jose disse...

Aleixo,
A vontade da maioria só cobre a maioria das banalidades da vida.
Se houvesse 1% capaz de alcançar as tantas outras coisas que vão conduzir a que seja satisfeita a maioria,bem estariamos.
Democracia directa não passa as mais das vezes de peões no meio das massas e caudilhos em palanques.

Anónimo disse...

A diminuição das prestações sociais é algo que está inscrito no ADN desta política de classe praticada por este governo sem classe nenhuma

As "pieguices", termo com o qual o tecnoforma passos coelho tentou amedrontar e estigmatizar quem protestava contra as suas políticas, aqui não serve.

O código genético está lá.A política de classe também. Provavelmente foi este chamar o nome aos bois que fez o sr jose voltar pela enésima vez a utilizar o palavreado do tecnoforma coelho desta forma tão desbragada.

Agora por mais que jose tente, ainda não consegue fazer esquecer o palavreado dos seus quanto ao "estado#" social" e às pieguices" e aos convites à "emigração".
Juntamente com os urros dos fanáticos governantes , retomados pelos seus fanáticos seguidorese sobre o orgulho do "irem mais além do que a troika"
Bem antes de qualquer medida do TC.

Ah, e os gritos histéricos de alguns boçais neoliberais a chamarem de "aborto" ao TC subiram de amplitude quando viram que afinal o TC permitiu um pequeno alívio na austeridade?

De

Anónimo disse...

O resto mais uma vez é a irritação de alguém que começa a falar em "passeatas à galeria" e acaba a falar em "pertensos" ( não será pertences"?).

Quanto à ditadura ... o sr jose estará desmemoriado mas não se lembra dos elogios rasgados que lhe fez?

Ou afinal tudo isto não passa de mais uma evidência. As nossas elites ( não incluo o jose nestas, mais uma vez repito) sempre foram propensas a trair.A substituir o português pelo castelhano ou pelo inglês.
Agora uns preferem o alemão . Cumprem afinal a tradição dos miguéis de vasconcelos, as tais elites e os seus aficionados.

A direita é isto.É esta pobre coisa, aqui tão claramente expressa pelo sr jose.

De

Anónimo disse...

( é impressão minha ou esta questão dos tais 1% vive paredes meias com um desejo secreto da governança por esses mesmos 1%?
Os tais capazes " de alcançar as tantas outras coisas que vão conduzir a que seja satisfeita a maioria"?

Cheira claramente a defesa de "uma ditadura nos cornos pela mão dos " que andam não só a defender os tais 1% mas também a submissão aos grandes interesses económicos.

De

Que

Unknown disse...

A pobreza ramifica-se em cada dia.
Muitos dos que fazem as leis são insensíveis e quando determinam estas pequenas melhorias é como se dessem um rebuçado e com isso comprassem o silêncio do povo.

António Geraldo Dias disse...

A questão social e a via aberta pelo austeritarismo para a catástrofe do renascimento do fascismo na europa com as suas "soluções" para a pobreza xenofobia,racismo e autoritarismo mostram que a austeridade está a ser o instrumento política estratégico de uma revolução passiva destinada a colocar os novos pobres ao lado do capital no fim do estado social ao mesmo tempo que avançam novas formações anti-democráticas aptas a substituir os partidos socialistas/ sociais democratas- a Grécia talvez o exemplo mais acabado de uma resposta à questão social xenófoba e racista ilustra bem como a europa se "adapta"a uma crise capitalista enquanto os germes do fascismo puro e duro se tornam virais.

Jose disse...

Vivemos tempos difíceis em que é preciso regenerar a economia por entre o nevoeiro de uma tralha ideológica que produz frases e palavrões que, sem nada construirem, mantêem a conexão a um tempo irrepetível, sustentado em dívida e a que é associado a construção de direitos irrevogáveis!
Seria ridículo se não fosse trágico.
Pieguice é palavra ajustada, porque a maioria dos reclamantes bem compreende a situação, mas encontra no lamento e na revolta verbal o conforto que sabe não encontrar na acção contra o inevitável.
Acresce que se sentem incapazes, por anos de modorra induzida, de abandonar o estatuto de vítimas, estatuto que em tempo tão bem lhes serviu pela mão de caçadores de votos que promoveu a seus governantes.

Anónimo disse...

" A tralha ideológica" com que jose quer acirrar o nevoeiro é focada por António Geraldo Dias. A tralha ideológica do fascismo a aparecer e a mostrar os dentes, tentando pela via austeritária unir os novos pobres ao Capital.

Não nos enganemos todavia sobre o pretenso carácter da "conexão a um tempo irrepetível" ,porque a besta é o que é.E promete mais sangue,suor, sogrimento, morte e lagrimas.

Advoga-se já abertamente contra os "direitos" ( chamam-lhe "irrevogáveis" para acirrar ainda mais a imensa mole que a cada dia que passa experimenta a fome, a miséria e o desemprego

Repetem estribilhos de classe e de ódio, surgidos primeiramente pelos ideólogos neoliberrais, usados pelo coelho e logo replicados pelas suas hostes. "Pieguices" é um termo que gostam, fazendo lembrar com tal palavra outros termos depreciativos usados pelos colegas ideológicos de outros tempos, como "raça inferior" ou "sub-humanos" ou "párias"

Tomam os seus dogmas ideológicos como de sentido único. "Inevitáveis" dirão , como outrora os esclavagistas diziam que a condição de ser escravo também o era. Ou os antigos torquemadas que proclamavam para todo o sempre a existÊncia de pobres ao serviço dos ricos.

Cai-lhes todavaia a linguagem para a verdade.

Quando inquiridos sobre os tais 1% que tudo têm , vem a resposta célere a dar graças e hossanas a esses 1% se capazes "de alcançar as tantas outras coisas que vão conduzir a que seja satisfeita a maioria".

Mais explícito do verdadeiro sentido de classe é difícil.

Eis a defesa sem tibiezas e sem rebuços dos mais ricos.Com a capacidade destes alcançarem para os demais a sua felicidade, desde que estes lhes obedeçam. Uns são os senhores,os donos do Capital, os outros os servos

E quem se lastimar, ou pior , quem contestar a "felicidade" gerada pelos tais 1%? Primeiro serão catalogados como "piegas".

Depois como excrecências a eliminar?

Daí à defesa da inutilidade da democracia vai um passo

A ditadura de facto espreita.

Entretanto num excelente texto João Ramos de Almeida revela um relatório que mostra como os 1% tratam dos "negócios" para garantir a felicidade dos demais.
Quase obsceno. Perdão. Mesmo obsceno

De

Anónimo disse...

Quanto aos "tempos dificeis"

Veja-se o relatório citado pelo João Ramos de Alomeida.Veja-se a denúncia sobre o aumento de impostos para os cidadãos ( mais de 2 000 milhões de impostos ) enquanto para as empresas menos 890 milhões.

E veja-se os passos em ecrân tecnofórmico e os dias loureiro em ecran laranja e os relvas em ecran de falsificador e os cavacos em ecran accionista e os catrogas em ecran à borges e ricardo salgado em ecran salazarento e soares dos santos em ecran de fugitivo de impostos e a albuquerque em ecran à gaspar e todos estes em ecran troikista...estes, todos estes , de facto vivem tempos difíceis uma ova.

De

Jose disse...

Piegas...que os hão, hão!

Anónimo disse...

Se o sr jose acha que os seus hão hão são uma resposta a qualquer coisa que seja, ele que esteja à vontade.Pode repetir os hão hão que quiser em coro com coelho que ninguém lhe leva a mal.É um direito que lhe assiste.

Porque as posições já foram expostas,importa apenas sublinhar duas pequenas coisas:
- O gozo que dá ver por vezes os mais ferozes anti-piegas comportarem-se duma forma mais miserável de pieguismo do que seriaxpectável.Ex o coelho e o caso tecnoforma aqui tão exemplarmente apontado por Correia Pinto
http://politeiablogspotcom.blogspot.pt/2014/10/passos-coelho-ameacado.html

( não,não vale a pena usar alguns exemplos exemplares da pieguice do próprio sr jose,lol).

-o slêncio atroador sobre tudo o que foi aqui dito por parte do sr jose, resumindo-se a sua resposta a um ensaio de texto convertido num "hão hão".

Mais palavras para quê?

De