sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Breve história de uma (má) ideia


Embora a expressão “desvalorização interna” seja recente, a ideia de desvalorização salarial como mecanismo de correção de défices externos está longe de o ser. Sob o regime do padrão ouro que vigorou entre 1880 e 1914 nos países industrializados e depois da primeira guerra mundial entre meados dos anos vinte e a primeira metade dos anos trinta do século vinte, a desvalorização interna foi praticada em muitos países como instrumento de ajustamento das contas externas.

Sob o regime do padrão ouro os países comprometiam-se a fixar a relação entre uma unidade da sua moeda e uma dada quantidade de ouro. Os bancos eram obrigados a converter o papel-moeda por eles emitido, em ouro, na proporção estabelecida, sempre que solicitados. Em consequência, o regime de padrão ouro fixava as taxas de câmbio de todas as moedas aderentes ao sistema: já que todas as moedas tinham um equivalente fixo numa quantidade de ouro, a equivalência ente elas também era fixa.

Sob o regime de padrão-ouro, um país que acumulasse défices externos, estava sujeito a ser confrontado com exigências de resgate da sua moeda nacional acumulada no exterior, por ouro, e, em consequência, a ver exauridas as suas reservas de ouro. Inversamente um país excedentário tenderia a acumular reservas de ouro.

Na realidade este regime instituía o ouro como moeda internacional, tal como o euro o é entre países da zona euro. O regime de padrão ouro, tal como o euro, privava os governos de um instrumento passível de ser utilizado em caso de desequilíbrio das contas externas – a desvalorização cambial. É por isso legítimo estabelecer um paralelismo entre o padrão-ouro e o euro.

Sob o regime de padrão-ouro a principal preocupação dos governos era evitar a delapidação das reservas de ouro. Dada a rigidez da taxa de câmbio isso só poderia ser conseguido com a deflação dos preços internos conseguida à custa dos salários nominais dos trabalhadores e/ou com um aumento das taxas de juro capaz de atrair de capitais do exterior em busca de melhor remuneração.

O regime do padrão-ouro entraria em colapso durante a primeira-guerra mundial quando, em consequência das enormes necessidades de financiamento, os estados beligerantes viram-se forçados a recorrer à emissão monetária em escala incompatível com o volume das suas reservas de ouro. Dispondo de enormes reservas de ouro, os EUA, mantiveram-se fiéis ao sistema.

Mas logo, em 1923, em resposta à hiperinflação, a Alemanha regressou ao padrão ouro. Em 1925 foi a vez do Reino Unido, seguido da França em 1928. Assim, quando a Grande Depressão eclodiu, em 1929, o padrão-ouro tinha já sido parcialmente reestabelecido.

A experiência britânica e alemã neste período são férteis em ensinamentos quanto às consequências do padrão ouro e das políticas deflacionistas por ele propiciadas.

A Grã Bretanha voltou ao padrão-ouro em 1925 por decisão do governo conservador de Stanley Baldwin que tinha como chanceler do tesouro Winston Churchill. Para defender as reservas de ouro o governo conservador adoptou uma política monetária restritiva (subidas das taxas de juro) e apertadas medidas de redução da despesa pública. Na opinião corrente dos círculos dirigentes o novo contexto do padrão exigia que no curto prazo os salários caíssem, sob pena de aumento do desemprego. Mais, o problema que os afligia não era os salários caírem, mas antes a impossibilidade de os fazer cair num país e num tempo em que os sindicatos haviam adquirido um poder considerável.

As políticas de deflação salarial do governo conservador tiveram de facto de enfrentar a resistência dos trabalhadores. As greves dos mineiros e a greve geral de dez dias que se lhes seguiu foram derrotadas, mas as lutas enfraqueceram o governo que viria a perder as eleições em 1929 para o partido trabalhista. A Grã-Bretanha sofria de um baixo crescimento antes do regresso ao padrão ouro. O padrão ouro defendido à custa dos salários e de elevadas taxas de juro agravou o problema. Em 1931 o novo governo trabalhista, sob as ondas de choque da Grande Depressão, ainda procurou manter-se fiel ao padrão ouro, mas a progressiva exaustão das reservas de ouro acabou por determinar o seu abandono por parte da Grã-Bretanha.

Na Alemanha o regresso ao padrão ouro, em 1923, pôs efectivamente termo à hiperinflação experimentada nos dois anos anteriores e deu origem a um período de relativa estabilidade e crescimento que se prolongou até 1929. Mas, em 1929, em consequência do colapso do sistema financeiro  que deu origem à Grande Depressão, os bancos americanos suspenderam o financiamento que havia permitido à Alemanha combinar, temporariamente, o pagamento de reparações de guerra com crescimento económico. Sem acesso ao crédito a recessão e o desemprego instalaram-se na Alemanha.

Em 1930, o político e financeiro social-cristão Heinrich Brüning é nomeado chanceler. Como não tinha maioria no parlamento assumiu poderes de emergência e passou a governar por decreto. Determinado em manter a sujeição ao padrão-ouro, por convicção própria e por imposição dos credores, Brüning reduziu drasticamente os subsídios de desemprego de doença e invalidez, assim como as pensões, enquanto os salários nominais desciam em consequência do desemprego. O objectivo assumido era recuperar a competitividade da economia alemã para obter os excedentes necessários para servir a dívida e pagar as reparações de guerra. O plano falhou. O seu resultado foi a devastação da economia alemã. Em Maio de 1932 Brüning demitiu-se, em Julho o partido nazi obteve 37% dos votos nas eleições. Em Janeiro de 1993 Hitler tomava posse como chanceler.

No contexto da Grande Depressão o padrão-ouro constitui-se como um obstáculo à recuperação. Só com o seu abandono, em 1931 pelo Reino Unido, em 1933 pelos EUA e em 1936 pela França, se começaram a fazer sentir os primeiros sinais de recuperação económica. Mas a recuperação vinha tarde. Em meio mundo industrializado a democracia não resistira aos ajustamentos deflacionistas. A paz viria a não resistir.

6 comentários:

Jose disse...

E vai daí....
Fazemos a guerra, deflaccionamos via escudo ou diminuímos a despesa pública?

Dave Bowman disse...

Mais um excelente post. Muito obrigado.

Anónimo disse...

E vai daí, o neuronio do elemento das 22h56 "morreu" sozinho

Alt

vernon disse...

Excelente recuperação da memória.


Mais um pedaço de serviço público aqui oferecido pelos LdB.

biacouto@sapo.pt disse...

Obrigada por este artigo e pelo blog. Tem sido um bom trabalho de literacia económica e social. A mudança só pode acontecer pelo conhecimento. Obrigada

Anónimo disse...

É uma tristeza que perante este fundamentado texto, jose tire as conclusões que tira.

No seu esforço continuado e persistente de dar ouvidos de mercador aos factos, atira para o lado. Para o simulacro do humor, sem se aperceber que o ridículo passa também pela abissal ignorância com que tira as suas conclusões deste texto.

Nem fazemos a guerra ( fazem os outros por nós, como foi ditada pela ascensão do nazi-fascismo entre cuja corte figurava aquele néscio e pútrido salazar). Nem a substância se reduz ao espantalho ridículo da deflação via escudo. E queremos um estado forte do ponto de vista social, que impeça que os hitleres e quejandos voltem, ou que o neoliberalismo continue a afundar o mundo do trabalho em prol de meia-dúzia de grandes interesses económicos

Tudo isto era escusado dizer, mas o "pseudo-comentário" de jose obriga a colocar os pontos nos is.
É precisamente a defea dos tais grandes interesses que faz mover jose.
Infelizmente para ele a corrente onde navega e do qual tira proveito já teve melhores dias, ao ponto de só lhe restar este tipo de "argumentário"

De