terça-feira, 17 de setembro de 2013

Mitos do cheque-ensino: «a supremacia das escolas privadas» (II)

A ideia de que, em Portugal, o ensino público tem um peso tão esmagador que quase impede a existência do ensino privado associa-se a outra ideia, também ela falsa - e recorrente nos argumentos dos defensores do cheque-ensino - segundo a qual as escolas privadas são melhores que as públicas (como supostamente demonstraria, por exemplo, a diferença obtida nos rankings de resultados dos exames nacionais).

Sucede porém, como bem se sabe, que as escolas privadas escolhem selectivamente os seus alunos, tendo nesse sentido o cuidado de assegurar (por forma a manter e consolidar o seu «prestígio» e posição nos rankings) que os mesmos provém, o mais possível, de famílias de classe alta e média-alta. Isto é, de agregados familiares com elevados níveis de escolaridade e rendimento, capazes de proporcionar aos seus filhos um background familiar e social que claramente favorece o seu desempenho escolar.

Este diferenciação sócio-económica de partida dos alunos do ensino público e privado - resultante da «liberdade de escolha» de que usufruem os colégios e escolas particulares (e que esboroa qualquer tentativa séria de comparação da «eficiência» dos dois sistemas) - não pode, infelizmente, ser exaustivamente apurada. Porquê? Por uma razão simples: porque nem o Ministério da Educação exige às escolas privadas informação sobre o estatuto sócio-económico dos seus alunos (ao contrário do que faz, e bem, relativamente à escola pública) nem as escolas privadas - por razões que bem se entendem - sistematizam e divulgam essa mesma informação. A sobrevivência do mito da supremacia do ensino privado aconselha, de facto, a um cauteloso silêncio estatístico.

Apesar disso, há alguns estudos que permitem - ainda que de modo amostral - confirmar quantitativamente o que todos sabemos. É o caso, por exemplo, do artigo de Manuel Coutinho Pereira, publicado em 2011 no Boletim Económico do Banco de Portugal («Desempenho educativo e igualdade de oportunidades em Portugal e na Europa: o papel da escola e a influência da família»), que analisa dados do PISA de 2006 (a partir dos quais se elaborou o gráfico lá em cima). Nele se demonstra que - ao contrário da ideia que se procura propagar - a suposta supremacia das escolas privadas não resulta de uma espécie de «código genético» deste sector de ensino, mas antes de uma clara «natureza de classe», que explica a sua aparente vantagem comparativa (e que é - mesmo assim - apenas marginal).

Mas quer então isto dizer que se for removida a diferença de origem social dos alunos nada passa a distinguir as escolas públicas das privadas? Não necessariamente. Uma parte da explicação para os distintos resultados escolares tendencialmente obtidos deve-se também ao facto de os estabelecimentos de ensino privado serem em regra de menor dimensão, muitos deles com turmas constituídas com um menor número de alunos e com um funcionamento orgânico mais definido e consolidado. O que deveria obrigar a cessar, de imediato, todas as medidas que instauram o caos e degradam intencionalmente a escola pública.

12 comentários:

Anónimo disse...

Execelente e esclarecedora série de posts sobre o cheque-ensino.

(em vez do anglicismo desnecessário "performance", porque não "desempenho"? o que é nacional é bom..)

Luís Lavoura disse...

O Ministério da Educação exige às escolas públicas informação sobre o estatuto sócio-económico dos seus alunos? Espanto-me. Eu tenho os meus filhos na escola pública e, que eu saiba, nunca essas escolas andaram a investigar qual o meu estatuto sócio-económico.

mexilhão disse...

Acompanho há anos este extraordinário blogue que tem contribuido para me "abrir os olhos".

Quanto à questão em discussão, concordo, mas o argumento de que o rendimento dos alunos nas escolas privadas é superior devido às condições económicas e familiares peca por defeito. É verdade que o suporte familiar e económico é estrutural. Mas este é pernicioso. Nas particulares, o nível de exigência à família no apoio ao ensino é muito + elevado. Ironicamente, é a familia que ensina e a escola apenas apoia! Nestes estabelecimentos a "seleção de alunos" é feita não só na seriação mas também ao longo da frequência, no desempenho dos alunos. Acontece muitas vezes que, pese embora o "bom" background familiar e económico, alguns destes alunos apresentam dificuldades e assim são potencialmente "perigosos" pois diminuem o rendimento coletivo da escola privada. Nestes casos, como já testemunhei, os alunos (pais) são "convidados" a sair! no fundo, a ideia destas escolas, para obter resultados brilhantes, é ter "diamantes em bruto" a que basta lapidar. É mais difícil transformar pedras ordinárias em preciosas, independentemnte do substrato familiar e económico. A escola que o faz (seja pública ou privada) é que é 1 verdadeira escola de elite (no sentido nobre da palavra)!Creio que, dadas as condições em que as escolas públicas exercem a sua atividade, são as que têm mais potencial para atingir níveis de qualidade no ensino.

Nuno Serra disse...

Caro anónimo (das 7h51),
Agradeço a sua sugestão de substituir «performance» por «desempenho», já incorporada no post. Obrigado.

Nuno Serra disse...

Caro Luís Lavoura,
Seja no acto de matrícula, seja ao nível das direcçoes de turma, é prática corrente recolher dados sobre a profissão e o nível de escolaridade dos pais (entre outros, que podem incluir o escalão de rendimentos). Tal não significa que estes dados sejam sistematizados a nível nacional. Aliás, aparentemente nunca o foram, pelo menos até ao ano passado, em que o Ministério fez acompanhar os resultados dos exames de cada escola pública com os chamados «dados de contexto» (como é referido aqui: http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2012/10/ensino-privado-nem-melhor-nem-mais.html)

Nuno Serra disse...

Caro Mexilhão,
Agradeço-lhe que tenha salientado um aspecto muito importante e que se relaciona com a questão dos rendimentos e do estatuto sócio-económico dos alunos do ensino privado. De facto, há inúmeros relatos de uma «selecção» de alunos em segunda linha (isto é, que é feita já depois da escolha ao nível do ingresso).
São casos como o que aponta (de expulsão das «maças» que afinal eram menos boas do que se esperava), bem como de casos em que se dissuadem alunos com menor aproveitamento de ir a exame (para não estragar a média da escola).

Anónimo disse...

Existem escolas(conheço uma em que me pediram apoio estatístico a pro bono e na qual encontrei correlações aterradoras do ponto de vista resultado escolar-nivel socioeconomico) que fazem essa análise internamente e com resultados que, regra geral, demonstram o teor da postagem.

Eu diria mais e nem preciso de esperar muito até que surja uma boa tese de doutoramento a corrobar este facto: com o aumento da informação wikipedica e da expansão de redes sociais etc, onde praticamente não existem filtros de informação eficientes que as desigualdades irão aumentar fortemente apenas pelo facto dos encarregados de educação dos colégios privados com um nível socio-económico mais elevado conseguem ser filtros mais eficientes do que pais de alunos que passam mais de grande parte a "sugar" telenovelas de fraca qualidade e a absorver informação de péssimo rigor nas televisões generalistas. Que acabam por ser o IPAD dos pobres.

JL

Júlio de Matos disse...


Se o Estado um dia me propuser um "cheque-ensino" para eu poder "ter liberdade" de escolher a chafarica privada em que devo confiar algo de tão importante e delicado como a Educação dos meus dois Filhos, então eu vou exigir do Estado a Liberdade SUPREMA de ser EU PRÓPRIO a executar tal tarefa, sem ter de me submeter às iníquas "regras do Mercado".

Escola Pública, sob controlo oficial do Estado Democrático - SIM, negociata privada com a formação dos meus Filhos - NÃO!

Bem basta a fantochada da Educação Moral e Religiosa Católica no Ensino Público de um Estado laico!

Embora facultativa (única forma de a encaixar legalmente...), mas agora mascarada grotescamente sob a capa de "Educação para a Cidadania"!!!

Anónimo disse...

É tão simples quanto isto:
A minha anda num colégio privado. Não tenho primária pública perto (tão perto) e é uma espécie de tradição de família.
Neste colégio, a turma da 3ª classe (a dela) tem 4 alunos.
O ano passado os alunos da 4ª classe (finalistas)eram também 4 e tiveram todos eles classificações máximas nos exames.
Neste colégio, ao invés de outros que conheço, ninguém impõe restrições à entrada de novos alunos (pretos, brancos, amarelos, ricos e ilustres, médios e remediados, feios e bonitos, todos podem entrar). Tem uma tradição quase centenária e muito republicana.
Ninguém quer saber se sou casado, se a menina é baptizada, se sou doutor ou outra coisa qualquer.
Mas dentro de dois anos terei de decidir se continua num colégio privado ou se opta pela pública. De coração, digo claramente e a todos (a mãe não concorda) que vai para uma escola pública. Mas cá por dentro, sinto que seria melhor para ela ir para um colégio privado (sobretudo, pelo acompanhamento quase personalizado). como eu, pensam milhares de pais remediados por esse país fora. É uma falácia eu sei. Mas quando todos (tontos) insultamos quem queira fazer da escola pública (Parque Excolar)não uma segunda opção, mas uma escolha ponderada e racional, e apenas deseje "para quem é...", está tudo dito.

Júlio de Matos disse...



Caro Anónimo da 01:06,

penso que quem defende uma Escola Pública de qualidade não está DE TODO contra a existência dos Colégios Privados. Esta é outra grande falácia.


Eu próprio, que sou absolutamente contra o cheque-ensino e defendo a Escola Pública (e confesso, a propósito, que não entendo de todo a sua referência despropositada à «Parque Escolar»), talvez até ponderasse, se acaso tivesse meios para isso, essa escolha também para os meus Filhos. Por que não?


Penso é que não são os nossos interesses particulares que devem decidir as nossas opções políticas (não sou portanto marxista, como pode constatar...), mas sim a nossa consciência, tendo em vista acima de tudo o bem comum.


Eu sou totalmente contra o "cheque-ensino" porque entendo, sinceramente, que o Estado existe para providenciar serviços PÚBLICOS de qualidade, não para subsidiar o seu fornecimento comercial por terceiros (nomeadamente privados), a troco das verbas do Orçamento.


É tal e qual as vias públicas, por exemplo: não é por defender a existência de uma boa rede de Transportes Colectivos que vou estar contra a posse de automóvel particular!


Defendo é que o Estado não deve dar aos automobilistas um "cheque-carro", ou um "cheque-gasóleo" (no meu caso...), para lhes dar "a liberdade" de não terem de andar de autocarro, ou de Metro (providenciados pelo Estado)!


Como não deve dar um "cheque-Saúde" aos doentes para terem a "liberdade" de não frequentar os Hositais e Centros de Saúde públicos!


Fui claro?

paulopes disse...

Caro Nuno Serra
Ao ler o seu artigo com atenção, perece que estava a falar, também, e por exemplo, da Escola Secundária Infanta Dona Maria.
Por isso, da mesma forma que generaliza a todo o ensino privado a “escolha selectiva de alunos”, pergunto-lhe se todas as escolas do estado bem posicionadas nos “rankings”, fazem o mesmo que a escola do estado D. Maria?

Nuno Serra disse...

Caro Paulo Lopes,
É muito difícil colocar as coisas nesses termos. A possibilidade de «selecção dos alunos» pelas escolas particulares é um facto (e aplica-se quase na totalidade dos casos). A selecção de alunos que é feita por algumas escolas públicas resulta desde há muito de expedientes para contornar a lei (sobretudo através de falsas moradas), contando para tal com a negligência de controle do Ministério da Educação (que com o actual governo aligeirou a exigência de pertença à área de influência da escola).
Daí a poder dizer-se que as boas escolas públicas o são porque fazem selecção de alunos parece-me, contudo, manifestamente abusivo.