segunda-feira, 2 de setembro de 2013

A violência da austeridade realmente existente


Se pudesse, não vinha à cantina social do Lar Sant'Ana, a única que existe em Matosinhos. O filho mais velho também não. Está com dez anos, já percebe o que significa entrar aqui com sacos cheios de recipientes vazios. Ainda há pouco viu um colega de escola. "Que vergonha", disse à mãe. 

Tenho-me lembrado por várias vezes deste excerto de uma reportagem, já com umas semanas, de Ana Cristina Pereira no Público. Para isso também contribuiu uma excelente crónica, relativamente mais recente, de José Vítor Malheiros que o convoca para fazer uma crítica certeira à passagem de uma lógica de direitos de cidadania para uma humilhante e ineficaz lógica caritativa, da sopa dos pobres, passagem que é todo o programa de violência social deste governo. A noticia da passada semana no DN, com os últimos dados sobre o Rendimento Social de Inserção, confirmando que este governo não respeita novos e velhos, lembrou-me a vergonha: só no ano passado, cerca de 70 mil pessoas perderam acesso a um rendimento que atingia o valor máximo de 569 euros para uma família com dois filhos, em 2010, e de 374 euros para a mesma família, em 2013.

Estes dados recordaram-me de novo a “vergonha” que se multiplica, os efeitos da mais perversa e eficaz campanha contra os pobres dirigida pelas direitas da preguiça ao longo de anos, vitoriosa no contexto da austeridade realmente existente. Os pobres são as gorduras. Sempre o soubemos e por isso tentámos combater, sem sucesso, aqueles que anunciavam os virtuosos cortes nas gorduras.

Contra estas campanhas e contra a desumanização, alimentada pela desigualdade e pela austeridade, é preciso ajudar a cultivar os necessários sentimentos morais, a simpatia, em primeiro lugar, aquele sentimento de que falava Adam Smith e que consiste em fazermos um esforço, que surge mais naturalmente em alguns e que tem de ser mais cultivado noutros, para nos colocarmos no lugar do outro, tentando compreender as suas circunstâncias. Afinal de contas, e esta parece-me ser a hipótese mais plausível e generalizável sobre o comportamento humano, as pessoas fazem o melhor de que são capazes nas circunstâncias que são as suas. Capacidades que podem ser desenvolvidas ou atrofiadas, circunstâncias que podem ser humanizadas ou desumanizadas. A política que vale a pena, a que institui direitos e obrigações sociais, é “só” sobre capacitação e humanização.

Os que nunca passámos por isso, só podemos então tentar imaginar o que é ter dez anos e ir buscar comida, o que é ser pai ou mãe e ouvir um filho dizer que tem vergonha. A boa reportagem social, e não conheço ninguém que a tenha feito melhor nos últimos anos do que Ana Cristina Pereira, faz esse apelo aos que não passam por isso: imaginem, rasguem o véu de ideologias que impedem de ver as coisas como elas são, que corroem os sentimentos morais, que nos levam a adular os ricos e a atacar os pobres. Simpatizem.

A luta por coisas básicas e sensatas, humanizadoras e capacitadoras, fica talvez mais fácil: do rendimento mínimo garantido aos serviços públicos frequentados por todos, porque assim é mais eficaz e mais redistributivo. Coisas que como sociedade podemos e devemos querer garantir, desde que não deixemos que as elites andem a brincar aos pobrezinhos, a cultivar sentimentos imorais ou, já agora, a espezinhar a Constituição, que isto está tudo ligado.

1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente texto.