domingo, 5 de maio de 2013

Urgência



Primeiro foi a violenta austeridade, dita sem alternativa e apresentada como a solução para tudo. O resultado foi uma crise que destrói a economia, desfaz o emprego, abala a esperança e mina o mais substantivo dos direitos, o de acreditar no futuro e confiar que os nossos filhos serão mais capazes e mais felizes que nós próprios. Quiseram-nos individualmente pobres e pobres nos têm.

Agora, a violência redobra. Querem-nos coletivamente pobres. Anseiam destruir o Estado. Não o Estado que os poderosos sempre usaram ao serviço dos seus interesses, mas o Estado social: o da ação redistributiva, o que acode aos mais frágeis, o que qualifica com educação, ciência, saúde ou Segurança Social, o que desenvolve a cidadania, porque é um Estado de direito e de direitos, o que organiza e moderniza com uma administração pública competente, o que, com investimento, desenvolve o capital fixo social, isto é, as infraestruturas coletivas que viabilizam e promovem as iniciativas privadas e as dinâmicas gerais, o que, enfim, regula estrategicamente a economia e defende a posição internacional do país.

Quiseram enganar-nos, encobrindo o efeito recessivo da primeira austeridade, pois queriam submeter-nos. E calam agora o ainda mais grave efeito depressivo da segunda, a destruição do Estado social. A verdade é crua: desfazer as políticas sociais e obrigar as famílias a usar o seu salário para obter tais serviços nos mercados privados, cuja criação é o grande propósito de quem dirige o ataque, vai aumentar as desigualdades e destruir emprego qualificado e dará início à mais profunda depressão. Sem a almofada progressiva que os impostos ainda conservam, a ação pelo lado da despesa pública e da privatização destruirá os mais pobres e desalentará os de rendimentos medianos. O Estado de um assistencialismo mínimo servirá, quando muito, para encobrir a crueldade da pobreza que o Estado de antes de Abril disfarçava, mas que o país democrático não tolera.

Sim, o primeiro nome do ataque ao Estado social é injustiça, mas o segundo é regressão económica e social para lá de todos os limites.

A economia política da regressão mostra as suas faces duras: redução da riqueza que podemos produzir, desemprego maciço, perda grave de receitas fiscais, pois uma economia moribunda não gera impostos, desperdício de pessoas e das suas qualificações, emigração. Empobrecemos violentamente. E sobra mais uma consequência. Como é notório pela crise de procura, as forças privadas são incapazes, por si, das ações de retoma geral e sustentável que houve noutras crises, porque havia ação pública, políticas de incentivo e estímulo, instrumentos para impulsionar a recuperação, desenvolvimento de recursos gerais, incluindo os humanos, e uma administração pública que agiu. O Estado social que temos não foi apenas um formidável investimento de todos nós em nome de direitos, igualdade e desenvolvimento. Foi também um agente crucial de ação pública e coletiva para sustentar um país tão periférico como o nosso.

O discurso liberal obcecado encobre as suas razões e é rico em falsidades. Nada diz sobre as instituições do euro que devastam periferias e servem interesses dos países centrais. Ilude que é a sua revisão profunda que pode ser a solução mais sólida. Diz que as famílias se endividaram, mas omite que o fizeram tanto como noutros países e que foi por causa da habitação. Encobre os que ganharam com privatizações. Chama monstro ao Estado, mas não diz que ele só se aproximou do nível que outros há muito atingiram e que o fez sobretudo para nos qualificar.

É tudo isto que obriga a discutir o Estado como é proposto na Conferência Vencer a Crise com o Estado Social e a Democracia, a 11 de maio, em Lisboa, organizada pelo Congresso Democrático das Alternativas. Porque ele é o último recurso dos necessitados e excluídos, a condição para manter o país minimamente coeso e organizado, para não deixar as pessoas no penoso declínio do empobrecimento e para evitar a degradação do que se criou num país que há quatro décadas era tão pobre e tão opressivo. Se aludir aos princípios não basta, que se tenha ao menos a noção de que o país não aguentará tais efeitos recessivos. Isso evita-se com uma administração pública capaz, com políticas deliberadamente redistributivas de salvaguarda dos rendimentos e da procura, com ação e investimentos públicos que mantenham a sociedade a funcionar e impeçam a degradação das suas infraestruturas coletivas, com regulação estratégica da economia e com uma atitude política que, em nome dos cidadãos e da democracia, defenda a posição de Portugal na Europa.

O Estado social, nestes tempos de desgraça, é uma necessidade urgente. Uma peça fundamental das alternativas que já sabemos reconhecer.

José Reis, Prof. da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, O Estado social como urgência, Público de hoje.

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