quinta-feira, 30 de maio de 2013

Os novos liquidacionistas


Esta semana, num jornal de negócios e na televisão, dois economistas recorreram à metáfora da ressaca para explicar aos portugueses que a crise é o resultado de uma bebedeira de crédito durante mais de uma década. Por isso, os que propõem medidas de relançamento da economia deveriam estar calados porque, nas palavras de um deles, "nunca ouvi dizer que um problema de álcool se cura com mais álcool". Infelizmente, os jornalistas também parecem não perceber que se trata de uma retórica neoliberal, bem conhecida, que visa instalar a sensação de inevitabilidade da política de austeridade na zona euro.

Esta política funda-se nas teorias económicas que integram a ideologia neoliberal (neoclássicos, novos clássicos), as mesmas que caucionaram as políticas de desregulamentação da finança e levaram às crises dos últimos 30 anos. A crise da zona euro, com uma natureza institucional específica, é também um produto da globalização financeira e da financeirização das economias europeias, de que resultou um sistema bancário cuja estabilidade já não pode ser garantida ao nível nacional. As crises bancárias da Irlanda, Espanha e Chipre são fruto deste processo de integração financeira. Como mostra Paul De Grauwe ("Fighting the wrong enemy"), o excessivo crescimento da procura interna nos países da periferia (construção, serviços, importações), após a criação da moeda única, foi causado pelo grande afluxo de dinheiro vindo dos países excedentários, sem esquecer a grande valorização do euro que tornou ainda mais baratas as importações dos países de baixos salários. "Grande parte do financiamento desta especulação insustentável proveio dos países 'virtuosos' através dos seus excedentes na balança de transacções correntes. Estes desequilíbrios [externos] sempre ocorrerão mesmo que todos os países procurem manter o orçamento equilibrado. Portanto, tudo indica que a proposta alemã de instituir a regra do orçamento equilibrado constitui uma grande operação de maquilhagem da sua própria responsabilidade na criação dos desequilíbrios dentro da zona euro."

Nada disto é novo. Recorde-se que a crise financeira asiática, iniciada na Tailândia em 1997, foi causada pela enorme entrada de capitais especulativos em vários países da região, à procura de novas oportunidades de lucro. O crédito fácil gerou bolhas especulativas no imobiliário que acabaram por rebentar, deixando estes países com um grande endividamento externo. Comentando a tese da "ressaca" asiática, um artigo de Paul Krugman terminava, de forma pertinente ("The Hangover Theory", 1998): "Quantos editoriais já viram avisando que a expansão do crédito na Coreia ou Malásia foi uma péssima ideia já que, no fim de contas, foi o crescimento excessivo do crédito que criou o problema [das bolhas]?"

Esta ideia da bebedeira, seguida de uma ressaca que devemos sofrer por tempo indeterminado, é a versão moderna do "liquidacionismo" que levou à Grande Depressão. Como propunha Andrew Mellon, o secretário de Estado do Tesouro do presidente Hoover, é preciso deixar "liquidar os trabalhadores, liquidar as acções, liquidar os agricultores, liquidar as urbanizações; [a crise] eliminará o que está podre no sistema. O elevado custo de vida e os elevados níveis de vida descerão. As pessoas trabalharão mais e a sua vida será mais conforme aos padrões morais. Os valores ajustar-se-ão e a pessoas mais empreendedoras substituirão as menos competentes".

Contra os "liquidacionistas", era Keynes que tinha razão quando defendeu o controlo apertado da finança e maiores défices para relançar a procura: "Nos assuntos correntes, o longo prazo é um guia enganador. No longo prazo estaremos todos mortos. Os economistas assumem uma tarefa demasiado fácil, demasiado inútil, se em tempos de tempestade apenas nos dizem que, quando o vendaval passar, o mar estará novamente calmo."

(O meu artigo no jornal i)

1 comentário:

Anónimo disse...

"excessivo crescimento da procura interna nos países da periferia"
Afinal, houve um excessivo crescimento da procura interna em Portugal?
Se foi "excessivo" que isso dizer que vivemos acima das nossas possibilidades (ainda que porventura abaixo das nossas necessidades, tal como as definimos)?