sexta-feira, 18 de julho de 2008

Mercado e Estado V

Penso que a oposição Mercado-Estado é fictícia – um hábito de pensamento que esconde mais do que aquilo que permite ver. Sugeri (em I, II, III e IV) que antes do mercado e da azáfama dos produtores e consumidores é preciso definir: (a) o que é e o que não é um bem susceptível de provisão e apropriação mercantil; (b) normas respeitantes à provisão e utilização do bem; (c) quem pode e quem não pode participar no mercado.

Estas definições todas incumbem ao Estado. É o Estado que sanciona o entendimento moral prevalecente relativamente ao bem e às suas condições de provisão e consumo.

Convenhamos assim que não será um exagero dizer que «o mercado», a esta luz, pode ser visto como um «jogo» com regras definidas pelo Estado (mas também pelo costume). Como acontece em todos os jogos, as regras são o que constitui o próprio jogo.

É por isso que separar e opor Mercado e Estado pode ser tão enganador como tentar interpretar as acções dos jogadores de qualquer jogo no desconhecimento das regras que o constituem. Identificar mercado com laissez-faire ou falar de um «mercado desregulado» é tão absurdo como falar de um jogo de futebol sem regras. O ponto é simples: se não há regras, não há jogo. Igualmente absurdo é associar «Estado» a planeamento central. Será que a instituição que estabelece e modifica as regras do futebol (suponho que é a FIFA) planeia os jogos e as jogadas?

Não existe, nem nunca existiu, um «mercado desregulado». Existem, no entanto, diferentes modos de regular o mercado. Podemos conceber num extremo um modo de regulação que reconheça (e proteja) direitos de propriedade irrestritos e ignore os que são potencialmente afectados pelo uso que damos à propriedade. Neste caso, poderiamos fazer tudo o que quiséssemos com aquilo a que chamamos nosso ou com o que pensamos adquirir com o nosso dinheiro. E o Estado protegeria esses direitos ao mesmo tempo que deixaria expostos todos os outros. Podemos conceber também modos de regulação que estabelecem limites aos direitos de propriedade e obrigações, por forma a proteger os direitos de outros que podem ser afectados pelo uso que é dado à propriedade. Em todos os casos o Estado está presente.

Ponto importante: nada indica que esta presença seja menor no primeiro caso. Proteger direitos de propriedade irrestritos, ignorando os públicos lesados pelo uso irrestrito dos direitos de propriedade, pode exigir uma intervenção do Estado muito activa … e um aparelho muito caro.

4 comentários:

Pedro Viana disse...

"Não existe, nem nunca existiu, um «mercado desregulado»."

Não me parece que seja bem assim... constituindo um mercado um ambiente onde são efectuadas transações, pode-se dizer que o efectuar nem que seja de apenas uma transação resulta na geração, mesmo que momentânea, de um mercado. Deste ponto de vista, em todas as sociedades sempre houve transações, por exemplo não-públicas, que o Estado ou nunca pretendeu ou nem sequer conseguiu regular mesmo que quisesse (o que leva à existência efectiva dum mercado não-regulado pelo Estado). Negar a realidade da existência de transações efectivamente desreguladas não ajuda a tentar encontrar uma solução para controlar as sus consequências.

"Ponto importante: (...) Proteger direitos de propriedade irrestritos, ignorando os públicos lesados pelo uso irrestrito dos direitos de propriedade, pode exigir uma intervenção do Estado muito activa … e um aparelho muito caro."

Óbvio. Só a desonestidade intelectual de muitos neoliberais impede que reconheçam isso.

Luís Oliveira Martins disse...

Boa tarde,

O artigo é interessante mas ignora que, de facto, pode existir um trade-off entre Estado e Mercado quando se pretende promover o desenvolvimento económico. Um mercado de produtos, mesmo que funcione com regras claras e equitativas, vai sempre basear-se naquilo que Paul Samuelson designou de "dollar votes". Assim, quem tem mais dinheiro acede aos produtos; as empresas mais competitivas conseguem por suva vez a parte maioritária desses "dollar votes"; qual é o resultado esperado disto tudo: a Eficiência.
Mas se os objectivos forem outros que a Eficiência (equidade, protecção do ambiente, estabilidade) então só a intervenção activa do Estado pode resolver o problema. Não será por mais e melhores regras, mas por influência directa nos "dollar votes" (subsidiação/impostos/gestão pública).

L. Rodrigues disse...

Luis Oliveira Martins,
Não sou economista, mas não se estará a confundir desenvolvimento económico com maximização de lucros? Ou seja, tomar isso como a única medida de eficiência?

Luís Oliveira Martins disse...

Caro l.rodrigues,

A maioria dos economistas concordará que o mercado, baseado em iniciativa privada/lucro e no princípio do utilizador-pagador, promove a eficiência e a produtividade.
No entanto, eficiência/produtividade não é sinónimo de desenvolvimento (embora se observe que as economias mais desenvolvidas são tb aquelas que colocam a eficiência na 1ª linha das prioridades).
Eficiência é pois um vector importante, mas que deve, na minha opinião, ser complementado com objectivos de equidade/justiça social, que o mercado não gera espontâneamente.
É nesta articulação eficiência/equidade que pode surgir um trade-off: mais mercado leva a mais eficiência mas tb desigualdades/injustiças; para corrigir estas injustiças o governo deve adoptar medidas que limitem o mecanismo de mercado. Existirá pois um conflito Estado/Mercado.

Cumprimentos.