terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

O enquadramento conta

A questão nas formas de economia política realmente existentes nunca é se o Estado intervém ou não, mas que interesses são protegidos e que interesses são desconsiderados por uma acção pública inevitável e nunca neutra em termos de valores.

Infelizmente, enquadra-se muitas vezes a questão da habitação pelo prisma ideológico liberal, como neste título: “Governo responde à crise habitacional com intervenção no mercado privado”.  

O mercado erradamente dito privado não existiria sem intervenção do Estado, sendo aliás parte da esfera pública, até porque é sempre uma construção política, passível de múltiplas configurações, com benefícios e custos sociais diferenciados. E isto por mais tentativas que os liberais façam para naturalizar um certo arranjo, reduzindo o Estado a um artifício que intervém a posteriori, no que são ajudados pela economia que ainda se ensina por aí. Os liberais, simplesmente, querem sempre mais direitos e menos deveres para os proprietários. Foi aliás esta tendência que nos levou à presente crise habitacional.

Num sistema de provisão como a habitação é tudo uma questão de distribuição e redistribuição de direitos e de deveres, de liberdades e de exposições a essas liberdades, de poder e de vulnerabilidade. 

Estas breves considerações de economia política institucionalista podem ajudar a reenquadrar o debate e o conflito inevitáveis sobre habitação, tanto mais que os interesses são profundamente divergentes e os valores também, da habitação como um activo financeiro à habitação como uma necessidade social. 

À boleia da linguagem falsamente neutra dos incentivos, e é também para isto que serve a economia convencional, para ofuscar ideologicamente, o governo opta por aumentar os ineficazes direitos fiscais dos especuladores e dos senhorios, por socializar parte dos riscos destes últimos e o mesmo faz com os riscos dos credores. A sempre tão poderosa banca não pode ser esquecida.  

Na crucial relação senhorios-inquilinos mantém um distribuição de direitos e de deveres muito favorável aos primeiros, até porque parece que os actuais mecanismos de definição da renda só são alvo de pequenos ajustamentos. Na questão das casas devolutas, ainda estamos para ver como, e se, as obrigações dos proprietários vão concretamente aumentar. 

Mas só a hipótese de um aumento das obrigações dos proprietários, correlativa de um aumento das liberdades de quem quer arrendar a um preço comportável, coloca as bem financiadas iniciativas liberais até dizer chega a querer vir para a rua, em defesa dos direitos dos proprietários, sempre definidos, protegidos e garantidos pela intervenção do Estado. Desculpem, devemos dizer direitos dos “portugueses”. Talvez sejam estes os portugueses de bem, de que falam os que estão no verso fascista desta má moeda...


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