domingo, 22 de setembro de 2019
A coligação de que o país não precisa
Um dos mecanismos básicos da economia política do emprego e desemprego determina que quanto maior é o desemprego, menor é a força negocial dos trabalhadores, pelo que a parte dos salários no produto tende a diminuir. Quando, pelo contrário, nos aproximamos do pleno emprego, o poder negocial fica mais do lado dos trabalhadores do que dos patrões, permitindo o crescimento da parte dos rendimentos do trabalho no rendimento nacional. Este padrão é aliás o tema central de um artigo de 1943 do economista Michal Kalecki, em que este explica porque é que os empregadores têm todos os motivos para não quererem que se alcance o pleno emprego e no limite farão o que for preciso para evitá-lo, já que a prazo não podem dispensar este mecanismo disciplinador da força de trabalho.
À luz disto mesmo, é de esperar que a evolução da parte dos salários no rendimento das economias concretas esteja relacionada inversamente com a taxa de desemprego, e efectivamente é isso que verificamos na maioria dos casos. Em Portugal, o período de máximo histórico da taxa de desemprego no contexto da crise e da política de austeridade em 2011-2013 correspondeu também a uma queda sem precedentes da parte dos salários no rendimento nacional: só entre 2010 e 2015, segundo a AMECO, a percentagem dos salários no PIB a custo de factores caiu mais de quatro pontos percentuais, de 63,9% para 59,5%. Nesse período, a desvalorização dos salários ocorreu por esta via indirecta da pressão do desemprego mas também por múltiplas formas directas, incluindo o corte de dias de férias, a eliminação de feriados e o regime de remuneração das horas extraordinárias.
Com a fortíssima redução da taxa de desemprego de 2013 (16,2%) e especialmente de 2015 (12,4%) até à actualidade (6,7%), esta mesma lógica permitiria prever um aumento robusto da parte dos salários no rendimento nacional, que eventualmente reestabelecesse a repartição trabalho-capital nos níveis anteriores à crise. Ora, isso está muito longe de ter acontecido: ainda segundo os dados da AMECO, a recuperação da parte dos salários de 2015 em diante foi mínima, de 59,5% para 61,1%, e está muito longe de ter correspondido a uma recuperação para os níveis pré-crise.
Esta anomalia à luz da economia política do desemprego é tanto mais estranha quanto o período de 2015 em diante incluiu o aumento do salário mínimo nacional num total acumulado próximo de 20%, após anos de congelamento pela direita. Como é então possível que num contexto de forte quebra do desemprego, em que o salário mínimo aumentou mais do que o produto, a parte dos salários no rendimento tenha permanecido praticamente estagnada?
Claramente, a resposta passa pelo facto de a relação de forças entre trabalhadores e empregadores estar tão desequilibrada em favor destes últimos que os primeiros não têm capacidade de aproveitar em termos reivindicativos a conjuntura económica favorável. Sucessivas reformas laborais no sentido da flexibilização e vulnerabilização dos trabalhadores, incluindo a redução das indemnizações por despedimento, a generalização de formas contratuais precárias que vão dos contratos a prazo e falsos recibos verdes à uberização, a fortíssima redução da abrangência dos contratos colectivos (e, já nesta legislatura, a negociação de novos convenções colectivas sob o espectro da caducidade das mesma), tiveram como resultado uma evolução da repartição do rendimento fortemente penalizadora do trabalho, que depois contribui também, por exemplo, para a persistência de quase 10% de trabalhadores baixo da linha de pobreza.
Em todos estes domínios, o governo PS ficou muito aquém daquilo que se esperaria de um governo decente, quanto mais de um governo progressista. Não só se esquivou a corrigir muitas das alterações mais gravosas introduzidas pela troika e pelo governo de direita na legislação laboral como introduziu algumas novas da sua própria lavra, como a duplicação do período experimental e a generalização sectorial dos contratos meramente verbais. Em cima disso, como demonstração de autoridade e piscadela de olho pré-eleitoral à direita, atacou por diversas vezes o direito à greve, estabelecendo serviços mínimos de forma abusiva e patrocinando o recurso ilegal à substituição de trabalhadores, por exemplo nos casos da Ryanair e dos trabalhadores portuários.
Na semana passada, António Costa almoçou no Hotel Ritz com um grupo de empresários, gestores e banqueiros e propôs uma coligação entre o governo e os empresários para a próxima legislatura, desdobrando-se em promessas de manutenção do poder de veto patronal em matéria de legislação laboral e política salarial. Esta é, na verdade, a mesma coligação que nestas matérias vigorou já nos últimos anos, com as consequências que estão à vista em matéria de equilíbrios sociais e repartição do rendimento. É a coligação de que a maior parte do país não precisa e um fortíssimo motivo para não votar PS.
(publicado originalmente no Expresso online a 19/09/2019)
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4 comentários:
Excelente texto
Quando os sindicatos deixarem a sua política dos coitadinhos e passarem a exigir que haja medidas de produtividade que ordenem a distribuição dos salários nas empresas, eu vou começar a comover-me com as denuncias de fraca distribuição do valor criado.
Já cá faltava José e a sua verrina.
Se seguisse-mos o conselho de José talvez este até ficasse a perder, visto que seria legitimo que fizesse-mos a seguinte pergunta:
Qual foi a contribuição do José para o aumento da produtividade ultimamente? LOL
Num ambiente económico em que a taxa de juro natural é próxima ou inferior a zero, o que não falta é capital. Logo, teóricamente o poder negocial dos "Josés" deste mundo deveria diminuir.
https://jwmason.org/slackwire/tag/euthanasia-of-the-rentier/
Como a acumulação no topo da pirâmide de rendimentos continua a todo o vapor é óbvio que há factores que funcionam de forma dissimulada, escapando à percepção das opiniões públicas.
Suspeita-se que o poder negocial dos "Josés" advém das formas múltiplas e variadas como manipulam o discurso, isto é, básicamente através do embuste e da manha.
O comentário acima do dito José é um exemplo típico disso.
A forma como se vilifica e menoriza a função dos sindicatos na barganha pelos ganhos de produtividade é uma das boas explicações para a diminuição do peso dos salários no PIB.
Sabemos também, por exemplo, como os sindicatos alemães foram coagidos e comprados para aceitarem reformas que redundaram em aumentos de salários muito inferiores aos ganhos de produtividade.
E sabemos perfeitamente como isso foi instrumental na criação das "nossas" dívidas e na crise das dívidas soberanas na zona euro.
Sabemos como a marosca foi feita. Falta só explicar essa complexidade a uma opinião pública manipulada e anestesiada.
S.T.
Obrigado pela sua clareza.
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