terça-feira, 14 de abril de 2015

Esqueçam o Robinson Crusoé


Em ciência, a adequação à realidade é mais importante do que a simplicidade.

Existe uma abordagem muito comum, aliás dominante, à análise e ensino dos fenómenos económicos que assenta na modelização dos problemas à escala individual e posterior generalização para a escala da sociedade. Por outras palavras, que assenta na redução dos fenómenos económicos - que são intrinsecamente sociais - a fenómenos individuais em condições simplificadas, a fim de deduzir conclusões que são depois extrapoladas novamente para a escala da sociedade como um todo.

A chamada economia de Robinson Crusoé constitui um exemplo paradigmático deste tipo de abordagem. Nesta experiência conceptual, Robinson está só na ilha deserta e tem de optar por dedicar o seu tempo ao lazer ou à recolha dos côcos de que depende a sua sobrevivência - problema típico da teoria neoclássica do consumidor, nomeadamente quando se assume adicionalmente que Robinson é perfeitamente racional e que as suas preferências são dadas à partida.

Através de pequenas alterações de perspectiva ou modificações ao modelo, a mesma abordagem permite modelizar também o comportamento de Robinson enquanto produtor de bens alternativos (de côcos ou peixes, por exemplo) ou introduzir a possibilidade da troca (com um Sexta-feira igualmente racional e auto-interessado). Em todos os casos, a ideia subjacente é que as conclusões que retiramos por dedução a partir destes modelos hiper-simplificados da realidade constituem uma forma adequada - a forma mais adequada - de compreendermos como, na sociedade como um todo, se organizam as questões da produção, do consumo e da troca.


É uma abordagem típica das correntes clássica, neoclássica e austríaca da economia e, em termos mais gerais, designa-se por "individualismo metodológico": o requisito de que as explicações causais dos fenómenos sociais assentem nas acções, motivações e preferências dos indivíduos. Não precisa de envolver côcos e ilhas desertas. Noutros exemplos populares, temos o padeiro e o merceeiro como produtores únicos de uma aldeia imaginária, ou o família e os seus membros como representação da sociedade. Ou ainda, nas versões mais austeras utilizadas em contexto académico, modelos povoados por "agentes representativos" com as suas funções de utilidade ou produção.

Efectivamente, um dos desenvolvimentos mais relevantes na macroeconomia nas últimas três ou quatro décadas foi a generalização da exigência de que os modelos macroeconómicos assentem em microfundações deste tipo. Não era esse o caso anteriormente: para a economia dominante das décadas anteriores, a macroeconomia ocupava-se com entidades (agregados, como o Consumo ou o Investimento totais) que obedeciam a uma lógica própria e distinta do que se passava na esfera micro dos indivíduos. Havia uma descontinuidade fundamental entre os níveis micro e macro da economia, mas isso não era considerado preocupante. Da década de 1970 em diante, porém, o individualismo metodológico estendeu o seu predomínio à macroeconomia, impondo, como requisito para que as explicações macreconómicas (neoclássicas ou neo-keynesianas, tanto faz) sejam consideradas respeitáveis, que estas assentem em microfundações - preferências e acções de agentes representativos.

Esta evolução da macroeconomia é muitas vezes apresentada como um passo no sentido do rigor, da consistência lógica e da cientificidade. Na realidade, porém, constitui um retrocesso. E o motivo é relativamente fácil de explicar. O problema não reside no recurso a modelos: toda a ciência recorre a representações simplificadas da realidade, todo o pensamento científico abstrai de circunstâncias particulares na formulação de explicações gerais. O problema surge, porém, quando essas simplificação e abstracção implicam descartar aspectos essenciais do fenómeno que se pretende explicar. E é isso mesmo que sucede quando se salta para a escala individual em busca de explicações para fenómenos intrinsecamente sociais: descarta-se factores e propriedades que se manifestam à escala social sem que sejam (facilmente) detectáveis ou teorizáveis à escala dos indivíduos.

Nas microeconomias de ilha deserta compostas por um único náufrago plenamente racional, não existe desemprego involuntário - mas nas economias reais este existe e é um problema central. Nas aldeias imaginárias que contam com apenas um padeiro e um merceeiro perfeitamente racionais e informados, o aumento da massa monetária apenas aumenta o preço dos produtos e não o volume da produção - mas nas economias reais a política monetária tem (em circunstâncias normais) efeitos reais sobre o produto. Nas experiências conceptuais hiper-simplificadas, não existe história ou relações de poder - mas nas economias reais estes são fundamentais para a compreensão de tudo o que se passa.

E isto nada deveria ter de espantoso. A existência de propriedades emergentes associadas à mudança de escala é uma característica geral do mundo que nos rodeia. Todos os fenómenos biológicos são, em última instância, fenómenos químicos e físicos, mas não faz sentido explicar a reprodução ou o envelhecimento com base em teorias assentes no comportamento de protões e electrões. Da mesma forma, todos os fenómenos sociais e económicos assentam ontologicamente em indivíduos, mas procurar, no plano metodológico, compreendê-los ou explicá-los enquanto tal é, mais do que uma perda de tempo, uma contribuição para o obscurantismo.

É um obscurantismo típico das ciências que estão ainda na sua infância. À medida que amadurecer, a Economia não deixará de superar a sua fase Robinson Crusoé.

(publicado originalmente no Expresso online a 8 de Abril de 2015)

7 comentários:

Ricardo A. disse...

Deixam de parte o conceito de 'Satisficing' introduzido pelo Politologo, Economista, Psicologo e Informatico, Nobel da Economia de 1979: Herber A. Simon:

"Most problem solving can be represented as a search through a large space of possibilities. For real-world problems, the spaces are not merely large, but immense, and there is not the slightest chance for either man or computer to search them exhaustively for the solution that is absolutely the best."

http://edra.org/sites/default/files/publications/EDRA02-Simon-1-10_0.pdf

O exemplo é comprar um carro usado em Lisboa, ninguém visita todos os vendedores e vê todos os carros, nem num raio de apenas 40km. Visitando poucos e Satisfazendo com uma opção que faz com que deixe a procura.

Ricardo

João disse...

A economia política - a única digna do nome de economia - já ultrapassou a fase "Robinson Crusoé". Infelizmente, já outro tanto não pode dizer-se de muitos economistas, também dentre os que habitam a nossa praça.

Anónimo disse...

Convinha explicitar que a principal motivação da mudança metodológica na macroeconomia se deve a uma tentativa de basear os modelos em parâmetros que não variem com intervenções públicas, algo que os modelos garantem cada vez menos quanto mais agregados forem.

Depois, nos modelos baseados em microeconomia é possível incluir grande parte das características mais realistas que tipicamente as pessoas exigem. O único problema é que isso implica um modelo ridiculamente mais complexo, além de que em muitos casos não tem solução única.

Anónimo disse...

Não sei qual será a formação de "15 de abril de 2015 às 02:21", mas se as coisas são como diz, bem mal entregues se confirma que andamos.

Ressalva: Não estou a falar do comentador, mas de quem defenda o que ele diz que aconteceu

Se aquelas afirmações reflectem a realidade do que é o pensamento/reflexão de um grupo significativo de economistas prova-se a total indigência dessas cabeças.

1º A "tentativa de basear os modelos em parâmetros que não variem com intervenções públicas".

É a completa loucura do olhar e do ponto de vista conceptual. É estar convencido de que se poder ter na mão uma realidade social que não se altere com a presença de actores sociais. Estar convencido positivamente que a realidade social se conforma a leis, como as de Newton, de Navier-Stokes, de Bernoulli. Aos menos os historiadores e os sociólogos conseguiram perceber ainda no final do século XIX, que aquilo que estudavam não tem aproximação positivista. Que mais de 100 anos depois, com milhões investidos na sua formação e suporte, haja um corpo profissional da área social que ainda não tenha percebido o óbvio, evidencia um défice cognitivo muito grave e acentuado.

Só um tipo fora do mundo, será capaz de conceber um sistema determinístico nesta área e botar fé no que inventou. Quem siga, estes modelos e acredite neles não passa de um mentecapto.

2º "é possível incluir grande parte das características mais realistas que tipicamente as pessoas exigem."

Não é que as pessoas exijam "características mais realistas". O que se passa é que a realidade é fodidamente (é o termo técnico) realista, daí que qualquer modelo que se queira válido tem de cumprir com a realidade, de lhe obedecer.

Eu não projecto navios ou aviões sem contar com a força gravítica, só pq aquilo é uma seca que os faz afundar ou cair. Mas sou capaz de imaginar um gestor que preveja não pagar aos trabalhadores durante três anos para a empresa ganhar liquidez. Se houver mão-de-obra suficiente que renove os que forem morrendo à fome, ao fim de três anos está ali uma empresa para as curvas.

3º "isso implica um modelo ridiculamente mais complexo".

Azar. Não há complexidades ridículas. As complexidades são o que são. Há sistemas químicos brutalmente complexos, mas há quem trabalhe com eles e obtenha resultados. Aproveita-se o que são leis, aproveita-se o que é imutável, introduzem-se todas as variáveis que provoquem mudanças significativas.

Ah, e não vale a pena ignorar as forças de atracção moleculares, quando o objectivo é fazer um elemento químico reagir com outro. São uma maçada, os elementos pegam-se e afastam-se, mas as forças de atracção e as camadas electrónicas estão sempre lá.

4ª "em muitos casos não tem solução única".

Porra, pá. Nem uma vulgar equação do 2º grau tem solução única. E é matemática, mais determinístico não podia ser – não é uma sociedade em movimento. E já sabemos resolver a equação do 2º grau desde o 8º ano de escolaridade. Um tipo que se forme em Economia está preocupado com a realidade múltipla de soluções com que miúdos de 13 anos já convivem?

Luís Lavoura disse...

Belo artigo. Gostei de ler.

Anónimo disse...

Gostei muito do comentário do "15 de abril de 2015 às 13:20"

Um prazer lê-lo.

Embora suspeite que por vezes alguns do "corpo profissional da área social que ainda não se aperceberam do óbvio, e que evidenciam um défice cognitivo muito grave e acentuado", têm algumas outras motivações para o seu comportamento.

De

Anónimo disse...

Quando se abdicam de todas as conceções determinísticas está-se também a abdicar da possibilidade de gerar conhecimento. Todos os cientistas sociais as usam, de forma implícita ou explícita, porque pretendem explicar a realidade social. Precisamente porque o objetivo é explicar a realidade, pretende-se chegar a proposições na forma “na presença das condições a, b, c, ocorre, com probabilidade x, evento y”. Quando o modelo nos diz que não só pode acontecer y, como também z (sem sequer menção de probabilidades), não se atinge o objetivo mencionado acima, pese embora o espaço de estados possíveis tenha reduzido bastante. O problema é que em muitas situações, com bastante mais soluções (inclusive infinitas), não se pode dizer o mesmo.

Desistir neste momento alegando que a realidade social é demasiado complexa para ser compreendida por modelos de foro determinístico é, como disse, abdicar de qualquer possibilidade de gerar conhecimento. É reduzir explicações da realidade social a meros exercícios de persuasão e considerar que qualquer explicação é inválida. A posição é consistente, embora derrotista, principalmente porque nada nos garante que, ao utilizar outro modelo, talvez mais realista, não se possam obter melhores resultados.

Há complexidades ridículas se considerar que não pode ensinar em licenciatura e mestrado modelos de um nível para os quais os alunos não têm preparação. Eles acabam por utilizar versões simplificadas dos mais avançados, tal como acontece nas restantes ciências, se for verificar. Só do doutoramento para a frente se começam a largar todas as simplificações previamente introduzidas. Depois, em relação a níveis ainda mais avançados, a literatura abunda com considerações que provavelmente gostaria de ver adicionadas aos modelos.