quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Lutas de classes e capitalismos

O título deste artigo requer que eu comece por pedir tolerância ao leitor mais susceptível. Lembro-o de que a aguda crise da liberalização financeira já fez entrar no léxico corrente outras palavras - nacionalização, por exemplo - que muitos gostariam de ter banido para sempre. Em troca da tolerância ofereço perguntas e mecanismos que demasiados economistas ortodoxos, comprometidos com ficções convenientes, tendem a descurar.

José Medeiros Ferreira, um dos nossos mais argutos intelectuais públicos, escreveu no seu blogue Bichos Carpinteiros: «Esta crise do capitalismo em nada se deve à luta de classes. Pelo menos do lado do proletariado». A ironia é uma arma da razão crítica. O questionamento permanente também. O resto da minha contribuição mensal para o Jornal de Negócios pode ser lido aqui.

Este artigo pretende interpelar a esquerda social-democrata que ainda parece muito enredada em generalidades sobre a superioridade da «economia de mercado». Neste contexto, e na expectativa de debates frutuosos, saúda-se o reaparecimento, em novo e reforçado formato, do blogue País Relativo. A blogosfera «fabiana» tem aqui um reforço de peso.

Será que a crise é o momento da social-democracia? Não sei. Em Portugal, as rupturas de fundo com o social-liberalismo não estão à vista. Pelo contrário. Os erros grosseiros da privatização da GALP e da entrega dos investimentos públicos estratégicos ao humor da iniciativa privada ou as alterações ao código do trabalho, aqui escalpelizadas por Elísio Estanque, aí estão para o demonstrar.

Continuamos a pagar um preço elevado por um europeísmo acrítico que trancou a UE numa trajectória neoliberal de Estado mínimo ao serviço da expansão da «concorrência livre e não falseada». As consequências desta ficção são agora vísiveis na esfera financeira. Foram muitos e trágicos os erros da social-democracia europeia desde os anos oitenta. Talvez a crise e a necessária alteração da correlação das forças políticas possam impor uma redifinição dos termos do debate. Os toques estratégicos de política com impactos sistémicos têm que ser dados na esfera financeira. Foi o elo mais forte e perverso. É hoje o elo mais fraco e perverso. Optimismo da vontade.

6 comentários:

Joao Galamba disse...

Joao,

Sou licenciado em economia, mas afastei-me da disciplina há muito, fugindo para outras paragens. Esta crise e muito do que tenho lido aqui reaproximaram-me da coisa. Os working papers sobre a financeirização da economia, que linkou há dias, foram excelentes leituras. É muito bom saber que há mais economia para além dos neoclássicos e austriacos. Eu estudei na Nova, por isso deve estar a perceber o meu fascínio...

Cumprimentos,
Joao Galamba

Anónimo disse...

JR,

Temos visto, nos EUA e em alguns países europeus, pelo menos, que a solução para os colapsos de empresas de investimento e até bancos tem sido a de o Estado "injectar capital". Sob esta capa, esconder-se-ão seguramente as diferenças entre os vários tipos de injecção, mas fiquemo-nos pela ideia de que tem sido o Estado, com capital público, a manter vivas as empresas deficitárias.

O que lhe pergunto é o seguinte:
Pressupondo que essas empresas eram totalmente detidas por privados, a intervenção do Estado representa o quê? Que passam a empresas públicas? Que passam a empresas com "golden share estatal"? De que falamos quando nos referimos a "nacionalizações" dessas empresas?

Esta questões prendem-se com uma de maior importância: para si, é razoável, tendo em conta o estado actual das relações económicas e o modelo de mercado instituído, defender uma nacionalização dos meios de produção, no sentido clássico da expressão?

p.heinz

Luis Gaspar disse...

Fabian Society! Que saudades... Um dia hei-de seguramente voltar.

F. Penim Redondo disse...

Mas há alguma alternativa prática à "economia de mercado" ?

A social-democracia não se baseia numa "economia de mercado", que quando há grandes excedentes faz umas "flores sociais" ?

Há alguma proposta para uma engenharia social em que a procura e a oferta não sejam, no essencial, livremente decididas pelos agentes económicos ?

Anónimo disse...

O mais irónico desta crise, com epicentro nos EUA, é a saída que os próprios mercados financeiros parecem apontar. Neste período de instabilidade aguda, o único activo a valorizar-se (talvez à excepção do ouro), último reduto da confiança que escasseia na esfera privada dos negócios, são as Treasuries americanas!!! Quando as taxas de juro do mercado interbancário sobem incessantemente, independentemente da liquidez que os bancos centrais insistem em injectar no sistema, os mercados financeiros apenas confiam... no Estado!

Os pruridos relativamente à recapitalização das instituições financeiras com recurso ao Estado só se podem entender por mero preconceito ideológico. De todo o modo, espero que mais cedo que tarde, estou em crer que a realidade vai mostrar que a confiança não se compra no mercado, o mercado pressupõe-na (de outro modo não funciona). Não bastará pois encharcar o sistema de liquidez para varrer os problemas. Por isso, não confio na capacidade da política monetária em ressuscitar os mercados de crédito. Actuar sobre as taxas directoras dos bancos centrais não é suficiente porque não vai ao cerne do problema: a confiança. Este tem de ser atalhado pela recapitalização das instituições financeiras e por um regresso a uma maior transparência nos seus negócios e activos. Só assim, podem os mercados de crédito retornar à "normalidade" e permitir que os mecanismos de transmissão da política monetária sejam repostos. De outra forma, não será possível impedir o agudizar dos efeitos desta crise sobre a economia "real".

Pedro Ribeiro

Dias disse...

“As rupturas não estão à vista…Os erros grosseiros da privatização da GALP e da entrega dos investimentos públicos estratégicos ao humor da iniciativa privada ou as alterações ao código do trabalho”.

Subscrevo.
Nunca perder de vista que o Estado tem que se pôr no seu devido lugar, e nunca mascarar o interesse e a salvaguarda do que deve ser público, com os interesses e as iniciativas privadas. Os múltiplos exemplos que nos chegam dia-após-dia, têm mostrado a promiscuidade que corre no Estado.
Ora, um Estado destes também não interessa à cidadania (como bem disse Boaventura Sousa Santos, é urgente a reforma e a democratização do Estado).

Agora que “toda a gente já se insurge contra aquela ideia luminosa do estado mínimo e da mão invisível”, é importante lembrar o fundamental: Estado sim, mas com ética republicana!