Qualquer financiamento público ao jornalismo tem de ser condicionado ao emprego com direitos, sem dúvida. Mas também à qualidade, autonomia, independência e pluralismo do jornalismo. Nunca para proteger lucros privados da «selvajaria do mercado». Sem isso, a retórica de dar «sustentabilidade, pluralidade e independência» ao sector só degrada o jornalismo que ainda tem alguma qualidade, como no serviço público, e encoraja um jornalismo cada vez menos plural (do extremo-centro à extrema-direita), mais superficial e sensacionalista, mais emocional e sem contexto, e com mais ângulos mortos nas realidades representadas (profissões, modos de vida, classes sociais, territórios).
Queremos mesmo defender o jornalismo e devolver-lhe credibilidade? Aumentem-se os salários para mais jornais serem comprados, reduza-se o tempo de trabalho para os cidadãos dedicarem tempo a informar-se, taxem-se as plataformas digitais que lucram com a partilha do trabalho alheio, legisle-se contra a precariedade, regule-se a informação para que ela seja rigorosa, plural e traduza a diversidade da sociedade. Ainda há pouco o jornalismo mostrou dois territórios que ignora sistematicamente: o mundo rural e os bairros das periferias das grandes cidades, onde o Estado e os serviços públicos estão cada vez mais ausentes após décadas de abandono das actividades e de exposição às alterações climáticas, após décadas de degradação e fecho de serviços, de substituição do Estado social pelo Estado policial. E de repente há incêndios. E de repente um homem, Odair Moniz, trabalhador e negro, é morto pela polícia num território relegado, invisibilizado pelos media. As reacções de revolta impuseram o olhar. Mas, se já agora esse olhar não perdura, imagine-se num campo mediático ainda menos democrático.
Sandra Monteiro, O governo dos patrões dos «media», Le Monde diplomatique - edição portuguesa, novembro de 2024.
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