segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

"Coletes amarelos" em Portugal?

O que se passa em França assemelha-se cada vez mais a um movimento de revolta popular que tem por base uma acumulação de desigualdades sociais, agravadas pelas consequências de uma política orçamental associada à manutenção do euro.

Parte dessa movimentação pareceu, no início, erguer bandeiras de direita - contra uma subida dos impostos - o que já recebeu uma oportunística resposta por parte do ministro da Economia e Finanças de que era preciso reduzir os impostos e... a despesa pública. Mas o mal-estar geral parece tornar-se transversal, com críticas à esquerda ao governo Macron, pela redução dos impostos aos mais ricos e aumento dos impostos aos mais pobres. Após algumas hesitações, o movimento conta já com a participação política da população de esquerda.

Essas condições materiais para a revolta explodiram em França. Mas poderão eclodir em qualquer país. Porque a mãe de todos os populismos - como a direita gosta de lhe chamar - está na perpetuação de injustiças sociais.

Veja –se o que se passa em Portugal em termos fiscais, nomeadamente no IRS.

O IRS era suposto ser o imposto único sobre o rendimento recebido individualmente. Antes de 1989, o imposto que incidia sobre as diversas formas de rendimento tinha taxas diferenciadas. A reforma fiscal levada a cabo em 1989, era Cavaco Silva primeiro-ministro, pretendeu criar um imposto único, mas ao arrepio da comissão de reforma fiscal, o governo manteve a diferenciação de taxas e regimes, em nome da competitividade fiscal entre países. Os rendimentos de capitais não estão sujeitos à progressividade constitucional da tributação sobre o rendimento. O englobamento de todos os rendimentos não é obrigatório. O ónus da prova da veracidade das declarações fiscais apresentadas pelos contribuintes ficou do lado do Fisco.

Resultado: apenas os assalariados e pensionistas – cujos rendimentos não podiam deixar de ser declarados – declararam na totalidade os seus rendimentos. Os outros parecem mal contribuir para a sociedade.


De 2001 a 2016, os agregados familiares cujos principais rendimentos eram salariais e de pensões representaram sempre cerca de três quartos do universo de contribuintes. Quanto ao rendimento bruto declarado, detinham em 2001 cerca de 86% de rendimento bruto declarado. Mas em 2016 era já 92%!

As outras categorias de rendimento pesavam em 2016 apenas... 8% do total declarado!

Os agregados que viviam sobretudo de rendimentos empresariais e profissionais ou em regime de transparência fiscal (por exemplo, escritórios de advogados) representavam, em 2001, cerca de 10% dos agregados e pouco cresceram até 2016. Mas o peso do seu rendimento reduziu-se de 10% para 5%, o que é inverosímil.

Quanto aos detentores de rendimentos de capitais e mais valias, pouco variaram entre 2001 e 2016: situaram-se ao redor dos 5 a 6%. Mas o seu peso no rendimento bruto declarado nunca atingiu o 1% nos 16 anos analisados!

Já os rendimentos prediais chegavam, de 2001 a 2016, a cerca de 8% do universo de contribuintes. E o seu peso no rendimento global passou de 3 para 2%!

Fonte: Números calculados com base nos dados da Autoridade Tributária
Por agregado, verifica-se a situação mais inacreditável possível depois de tudo o que se passou na última década: os rendimentos salariais e as pensões são, em média, os rendimentos mais elevados por agregado e subiram de 2001 para 2016. Ao mesmo tempo, os rendimentos empresariais e profissionais desceram, bem como os prediais. Os rendimentos de capital por agregado que eram em 2001 de 766 euros anuais, passaram em 2016 para 2319 euros anuais!  Qualquer coisa como 193 euros mensais!

Ou os rendimentos individuais passaram para a esfera empresarial; ou os assalariados e pensionistas passaram a ser os maiores beneficiários de rendimento de capitais (em contas de poupança bancária); ou verifica-se uma enorme – enormíssima, gigantesca! – evasão fiscal. Um buraco, um passadouro monumental que se torna visível naqueles regimes extraordinários de regularização tributária (RERT) de que beneficiaram por exemplo Ricardo Espírito Santo e tantos outros, que os amnistiam, limpam, branqueiam e que proíbem o Estado de os perseguir, tudo com o aval do Parlamento quando PS e PSD/CDS tinham maioria. Mais uma causa para populismos futuros.

De qualquer forma, o IRS – tal como está - não reflecte neste momento nada do que era suposto representar. Qualquer medida relativamente ao IRS atingirá apenas quem é obrigado a declarar rendimentos, tal como acontecia há duas décadas atrás. As outras categorias de rendimento mal pagam para o Orçamento de Estado e, um dia, alguém terá o desplante de os isentar de imposto porque não é eficaz tributá-los...

E tudo isso obriga a uma vasta reforma fiscal. Era isto que um governo de esquerda faria, caso quisesse mudar alguma coisa em Portugal; caso não queira passar, daqui a pouco tempo, por aquilo que está a viver-se em França.

Nessa altura, os arautos da direita falarão de populismos. Mas os populismos são gerados por desigualdades agravadas que protegem durante décadas uma minoria. A periferização da sociedade e das cidades representa uma continuada expulsão de um centro, uma ghetização social e urbana, como se escreve no The Guardian. "A classe trabalhadora e classe média baixa estão de novo visíveis e, com eles, os locais onde eles vivem". O risco é que, como nos Estados Unidos ou em Italia, possam ser cavalgadas pela extrema-direita, evitando na prática outro tipo de movimentos sociais e, no final, para que alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma.

Por que será que a direita portuguesa não fala do que se passa em França?
 

16 comentários:

Anónimo disse...

Flat Tax ?.

Anónimo disse...

Rendimentos anuais por agregado familiar? Mas esses dados são credíveis?
Como o autor do post reconhece, isso seria um absurdo!
Não haverá nenhum lapso?

Jose disse...

As 'injustiças sociais' podem numa certa área medir-se assim:
1) Fulano e Beltrano ganham num dado ano o mesmo e pagam impostos iguais, e acumularam a mesma poupança.

2)No ano seguinte Fulano remodelou a casa e deu uns passeios; Beltrano aplicou o dinheiro em aplicações financeiras.

3) Nesse segundo ano os rendimentos de Beltrano excederam os de Fulano pelo montante do rendimento das aplicações financeiras; mas como tinha uma taxa liberatória para os rendimentos das aplicações financeiras pagaram a mesma taxa de IRS.

Eis um caso evidente de injustiça social!!!

João Ramos de Almeida disse...

Caro anónimo,

Os dados são da Autoridade Tributária. Nenhuma explicação adicional foi dada em relação à forma como os dados são apurados. Apenas é referido diversas vezes o seguinte: "Note-se que os rendimentos de capitais, correspondentes à categoria E, estão sujeitos à retenção na fonte à taxa liberatória, não se encontrando sujeitos a englobamento pelo que as estatísticas relativas a esta categoria não correspondem ao valor global de rendimento e de imposto liquidado relativamente a esta categoria". Por outras palavras, intrpreto eu, os rendimentos de capitais poderão acumular-se com outros rendimentos.


Anónimo disse...

"O que se passa em França assemelha-se cada vez mais a um movimento de revolta popular que tem por base uma acumulação de desigualdades sociais, agravadas pelas consequências de uma política orçamental associada à manutenção do euro."

Não, não tem!

O problema, que a esquerda faz vista ceguinha, está relacionado com o facto de a França ser o país da Europa com a mais alta carga fiscal.

E quando o saque do estado, que a esquerda sempre prometeu que se aplicava "apenas aos ricos e demais endinheirados para cima", começa a atingir a classe média, "o povo sai à rua"

A verdade é como o azeite
https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php?title=File:Total_tax_revenue_by_Member_States_and_EFTA_countries,_2016_and_2017,_%25_of_GDP.png

Anónimo disse...

Mas como é que esta gente não vê o óbvio: a França tem a maior carga fiscal da Europa, com 48,4% do PIB arrecadados em taxas e impostos. Praticamente metade do que o país produz é engolido pelo estado.

http://appsso.eurostat.ec.europa.eu/nui/submitViewTableAction.do

Como é que esta gente não vê o óbvio!?

João Ramos de Almeida disse...

Caros anónimos,
A carga fiscal, em teoria, não é usada em desperdício público. Os recursos públicos arrecadados pagam um conjunto de serviços públicos que vão desde o mais simples contínuo de escola até aos gastos em defesa, passando pela Saúde, a Segurança Social, etc., etc..

Portanto, caros anónimos, sejamos um pouco mais honestos. Tudo depende como esses recursos são gastos e não no seu nível. Só o conceito "carga fiscal" tem efectivamnte uma "carga" ideológica a que convinha estar atento...

Unabomber disse...

(Mais) algumas notas sobre a "justiça" do IRS:
- Os Pafistas num unico ano:2013 aumentaram o valor total da receita de IRS em 30% (repito 30%) - este é que foi verdadeiramente o publicitado "enorme aumento de impostos" (e não o IRC: imposto sobre o rendimento das empresas);
- 20% dos contribuintes pagam 80% da receita de IRS - foram estes "patos" (que são uma minoria dos contribuintes) que sobretudo suportaram (e continuam a suportar) os referidos 30% de aumento da receita de IRS dos Pafistas;
- Aprox. 50% dos contribuintes não paga IRS, ou paga até 100€ anuais;
- Uma parte da receita de IRS de capitais resulta da taxa de 28% aplicadas aos juros de depósitos bancários, os quais actualmente têm taxas reais negativas (inferiores à inflação);
- Os rendimentos empresariais não são apenas rendimentos dos advogados e outros profissionais liberais - são sobretudo rendimentos dos pequenos negócios exercidos a titulo individual.

vitor disse...

"Tudo depende como esses recursos são gastos"

Sobre a carga fiscal. E a prova disso encontrava-se no norte da Europa. Em que até há bem pouco tempo era talvez a única parte do mundo em que sentiam verdadeiramente orgulho nos serviços públicos pagos com o dinheiro de todos. Com os escândalos financeiros a história é outra como é óbvio. Ainda assim e já depois da "limpeza" não se ouve os islandeses queixarem-se da maior carga fiscal da Europa.

Anónimo disse...

"... Tudo depende como esses recursos são gastos e não no seu nível...". Este é que é realmente o problema.

Um homem razoavelmente rico, empresário de sucesso nos EUA, dizia: "Importo-me de ser altamente tributado. Mas importo-me muito mais por saber que esse dinheiro vai ser muito mal gasto (pelo Estado)".
O Estado -por muito que os impostos sofram sempre sucessivamente aumentos- arranjará sempre forma de gastar essas verbas e mais, continuar a individar-se.
Na verdade a dívida norte-americana ....

Pedro de Souza disse...

A propósito de coletes amarelos recomendo a leitura de:

https://mondaynote.com/

How Facebook is Fueling The French Populist Rage

Thomas Riepenhausen disse...

Penso que o conceito do populismo não é da direita mas sim do mainstream.

Anónimo disse...

"A carga fiscal, em teoria, não é usada em desperdício público"

A) João Ramos de Almeida, uma pergunta sincera: então no seu entender, qual o limite para a carga fiscal? 70%, 80%, 100%? Não consegue mesmo teorizar, do ponto de vista social e comportamental, que uma sociedade que assolada com impostos, desmotiva os mais produtivos? Obviamente que aqui ninguém defende o anarco-capitalismo, ou seja, 0% para o estado.

B) Acredita mesmo que por princípio a carga fiscal não é usada em desperdício público? Pelo contrário, e Milton Friedman explicava muito bem porquê: https://www.youtube.com/watch?v=5RDMdc5r5z8

vitor disse...

Milton Friedman. Esse grande mago do mercado que regula tudo. Vê-se.

vitor disse...

O "limite" para a carga fiscal depende de tantas variáveis - como o rendimento que se aufere e/ou que serviços públicos pretendemos, só para citar dois exemplos - que só a pergunta per si já denota a simplicidade do pensamento económico.

Anónimo disse...

O que gastou pagou IVA de 23%, o aplicou 5% ou nem isso... e ainda vai passear num país sem iva ...