domingo, 16 de dezembro de 2018

Antevisão do horror


Um artigo de Gabriel Stargardter do final de novembro trouxe à memória a operação das forças de segurança das Nações Unidas num bairro pobre do Haiti, em 2005, comandada pelo general Augusto Heleno e que envolveu o general Azevedo e Silva (que são, respetivamente, o assessor principal para as questões da segurança e o ministro da defesa do próximo governo brasileiro). O ataque, que durou sete horas e no qual foram disparadas 22 mil balas, foi classificado por diversas organizações de direitos humanos como um «massacre», causando dezenas de mortes, incluindo mulheres e crianças. Tudo leva a crer que a abordagem então adotada constitua a estratégia de Jair Bolsonaro para as favelas do Brasil, confirmando os piores cenários.


Brasil: gangues na mira do general que comandou um raide mortal no Haiti
Gabriel Stargardter (Reuters, 29 novembro 2018)

«Há treze anos, um general brasileiro chamado Augusto Heleno enviou centenas de militares das Nações Unidas para uma favela haitiana, no encalce de um poderoso bandido. Numa batalha que durou sete horas, os capacetes azuis dispararam mais de 22 mil balas no bairro de Cité Soleil, em Port-au-Prince. O alvo, um "senhor da guerra" conhecido por Dread Wilme, foi morto.
A operação, denominada "punho de aço", constituiu o ponto alto da missão de Heleno para restaurar a ordem no Haiti, depois do derrube do presidente. O general considerou o ataque um sucesso, mas diversas organizações de direitos humanos classificaram a operação como um "massacre", sublinhando que dezenas de pessoas foram mortas no fogo cruzado, muitas das quais mulheres e crianças.
Este episódio, já praticamente esquecido fora do Haiti, pode muito bem ser o guião da estratégia do próximo presidente do Brasil, o ex-capitão do exército Jair Bolsonaro, que cooptou Heleno como assessor principal para as questões da segurança, pretendendo que ele e outros militares que estiveram no Haiti dominem as favelas do Brasil, recorrendo aos métodos adotados nos bairros pobres de Port-au-Prince.
O Brasil atingiu no ano passado o número recorde de 64 mil assassinatos, o mais elevado à escala mundial, e Bolsonaro prometeu combater sem misericórdia os marginais. “Estamos em guerra. O Haiti também estava em guerra”, disse Bolsonaro numa recente entrevista a um canal de televisão. No Haiti «a regra era: se encontrares alguém com uma arma, primeiro disparas e depois esclareces o que aconteceu. E assim se resolve o problema”.

O Haiti no gabinete de Bolsonaro

O futuro presidente propôs para ministro da Defesa o general Fernando Azevedo e Silva, que esteve às ordens de Heleno como chefe de operações. Tarcísio Freitas, que será ministro das infraestruturas, era engenheiro militar sénior da ONU no Haiti, tendo lá chegado pouco depois da saída de Heleno, em 2005. O General na reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, que será ministro no próximo governo, comandou as tropas da ONU naquele país das Caraíbas em 2007. Nem Heleno nem Azevedo e Silva responderam às perguntas que fizemos sobre o ataque a Cité Soleil.
Ainda não sabemos quão pesada será a mão de Heleno na estratégia de combate à violência no Brasil, em particular no Estado do Rio de Janeiro, com elevados níveis de criminalidade e onde diversas ações repressivas não têm surtido efeito. Medidas como o reforço muito significativo da segurança em algumas favelas do Rio em 2016, antes do início dos Jogos Olímpicos, ou a recente intervenção militar em todo o Estado, iniciada em fevereiro. Relativamente ao ano anterior, as mortes violentas aumentaram 1,3% nos últimos nove meses no Estado do Rio de Janeiro e o número de mortes por forças de segurança aumentou mais de 40%, com cerca de quatro pessoas mortas por dia. Prevê-se que a intervenção militar termine pouco antes de Bolsonaro tomar posse, a 1 de janeiro, mas nem Heleno nem Azevedo e Silva excluem a possibilidade de a prorrogar.
Nas últimas semanas, Heleno manifestou o seu apoio à estratégia radical de combate à criminalidade defendida pelo novo governador de direita do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, que pretende colocar franco-atiradores a sobrevoar de helicóptero as favelas, disparando sobre criminosos. Numa entrevista recente à rádio, Heleno referiu que a abordagem seguida no Haiti é similar à proposta por Witzel, acrescentando que os aspetos-chave da intervenção militar na cidade “podem servir de modelo para o resto do país”.
Estas declarações alarmaram alguns membros das Forças Armadas, que receiam que uma guerrilha urbana prolongada possa minar o moral das tropas e gerar um ressentimento público contra uma das instituições mais respeitadas do Brasil. “O Rio é um laboratório que mostra que este tipo de políticas não funcionam”, disse Ignacio Cano, um professor universitário do Rio de Janeiro que tem escrito profusamente sobre questões de segurança.

"As balas atravessavam as paredes"

A Reuters entrevistou mais de uma dúzia de pessoas com conhecimento direto do raide de 6 de julho de 2005, incluindo diplomatas, funcionários de ONG, autoridades do Haiti e residentes no bairro de Cité Soleil. A Reuters consultou igualmente relatórios da ONU, telegramas diplomáticos divulgados no âmbito da Wikileaks, artigos de imprensa e as próprias declarações de Heleno, à data. No seu conjunto, estabelecem um quadro detalhado da pressão exercida sobre o general para ser duro no Haiti.
Em meados de 2004, o Brasil assumiu o controlo militar da missão das Nações Unidas para estabilizar o Haiti, conhecida por MINUSTAH. Heleno, o primeiro comandante militar brasileiro da MINUSTAH, chegou ao Haiti pouco depois da destituição e exílio do então presidente Jean-Bertrand Aristide. O general tinha como missão a estabilização do país, de modo a permitir a realização de eleições num ambiente pacífico. Mas no seu caminho encontravam-se poderosos gangues, responsáveis por sequestros violentos, roubos de viaturas e extorsões. À medida que os meses passavam, os Estados Unidos em particular começaram a ficar impacientes com a falta de progressos de Heleno. "A MINUSTAH não conseguiu repor a segurança e a estabilidade aqui", referia James B. Foley, então embaixador dos EUA no Haiti, num telegrama escrito a 1 de junho de 2005, acrescentando que "por mais que pressionemos a ONU e os brasileiros a adotar uma abordagem necessariamente mais vigorosa, não acredito que eles estejam, ao fim ao cabo, à altura da tarefa". Cinco meses depois, Heleno deu ordens para que 400 militares dos Estados Unidos, apoiados por 41 veículos armados e helicópteros, entrassem em Cité Soleil para deter Wilme, que os cabos norte-americanos descreviam como o maior criminoso do Haiti.
No início, de acordo com relatos da imprensa, as tropas de Heleno disseram que Wilme e outros dos seus tinham morrido, num balanço que apontava para cinco ou seis vítimas mortais. Mas os relatos de feridos e mortes entre os civis rapidamente vieram à superfície. "Temos informação credível de que as tropas dos EUA, acompanhadas pela polícia haitiana, mataram um número indeterminado de residentes desarmados em Cité Soleil, incluindo várias mulheres e até bebés", referiu nessa altura Renan Hedouville, dirigente de uma organização social sem fins lucrativos. E o então chefe da missão dos Médicos Sem Fronteiras no Haiti disse aos jornalistas que os seus médicos trataram 27 pessoas com ferimentos de bala, na maioria dos casos mulheres e crianças. A desconfiança face à versão da MINUSTAH era partilhada por diplomatas americanos: num telegrama de 26 de julho de 2005 era referido que "22 mil cartuchos eram uma quantidade de munições demasiado grande para matar apenas seis pessoas", assinalando que alguns grupos locais de defesa dos direitos humanos estimavam que o número de mortes atingisse as 70. Perante o pedido de comentário ao ataque e ao comando brasileiro das tropas envolvidas na operação, um atual porta-voz do governo do Haiti optou por não responder.
A verdade é que para muitos residentes no bairro de Cité Soleil esse foi um dia impossível de apagar da memória. A vendedora de rua Anol Pierre referiu que estava em casa quando o tiroteio começou: "escondi-me debaixo da cama com os meus filhos enquanto as balas voavam e atravessavam as paredes. Limitámo-nos a rezar a Jesus. Lembro-me de uma mulher grávida, com dois filhos, que morreu. Muitas famílias foram vítimas da ofensiva".

Sem arrependimento

Juan Gabriel Valdes, à data chefe civil da MINUSTAH no Haiti, referiu que foi permitido aos soldados de Heleno disparar em caso de ataque, nos termos das regras de operações de manutenção da paz da ONU. Mas a situação ter-se-á tornado tão descontrolada em Cité Soleil que foi impossível proceder a uma investigação exaustiva que permitisse apurar o número de mortos. Em resposta às alegações de uso excessivo da força, um Relator Especial da ONU solicitou à MINUSTAH esclarecimentos sobre o que tinha efetivamente acontecido. No relatório que produziu, esse relator consideraria, porém, que as justificações da MINUSTAH eram "amplamente satisfatórias". Heleno, por sua vez - de acordo Seth Donnelly, um ativista de direitos humanos no Haiti à época - terá manifestado desdém pelos que questionaram sua atuação. Num relatório sobre o ataque, Donnelly registou a resposta dada por Heleno, a ele e a outros ativistas, segundo a qual eles "pareciam importar-se apenas com os direitos dos 'proscritos'".
A verdade é que a posição de Heleno sobre questões de segurança pública não mudou desde a saída do Haiti. Em 2008, envergando ainda o uniforme, criticou publicamente as forças policiais brasileiras por reconhecerem às tribos indígenas direitos ancestrais sobre as terras, no que classificou como uma ameaça à soberania nacional. E quando se reformou, em 2011, Heleno referiu-se à ditadura militar brasileira de 1964-1985 como um baluarte contra a "conversão do país ao comunismo". Numa entrevista radiofónica concedida no início deste mês, Heleno disse que os direitos humanos devem apenas aplicar-se a "humanos direitos", considerando que os gangues do crime estão a transformar o Brasil num «país de narcotraficantes", sendo necessário adotar medidas agressivas para os deter. "É absurdo lidar com esta situação como se fosse normal", disse o general: "é uma situação excecional que requer uma abordagem excecional".»

2 comentários:

Jose disse...

"é uma situação excecional que requer uma abordagem excecional"

E se o Estado despejar dinheiro nas favelas e enviar legiões de psicólogos e sociólogos talvez possa competir com os lucros e os efeitos da droga...

Jaime Santos disse...

Segundo julgo saber, a abordagem musculada, para além do sem-número de vítimas, não resultou em Países como o México. Os traficantes de droga simplesmente adquiriram armamento mais poderoso para resistir à ofensiva das forças da ordem.

E suspeito que, se tal tática for aplicada no Brasil, a iniciativa paralela de armar a população não vai fazer mais do facilitar a resposta dos criminosos. Afinal, o que vai impedir armas adquiridas legalmente de acabarem nas mãos erradas?

Quem pensa que se combate o crime com artilharia pesada não só não compreende que o combate à criminalidade não se resolve com operações militares, como também parece não perceber que na maioria das guerras de guerrilha, a guerrilha no fim ganha...

Esperemos bem que os militares brasileiros da fação mais institucional se lembrem de tal coisa. Tal como nos EUA, serão eles que poderão servir de freio a Bolsonaro e aos seus muchachos...