domingo, 10 de junho de 2012

A crise da democracia europeia

«Se fosse necessária uma prova de que o caminho para o inferno se faz de boas intenções, a crise económica na Europa estaria aí para o demonstrar. As esforçadas, mas estreitas, intenções dos decisores europeus têm-se revelado desajustadas para uma consolidação da economia e produziram, em vez disso, um mundo de miséria, caos e confusão.
Há duas razões para que assim seja.
Primeiro, porque as intenções podem ser respeitáveis, sem que isso signifique que sejam lúcidas. E porque os fundamentos da actual política de austeridade, combinados com a rigidez da união monetária da Europa (dada a ausência de uma união fiscal), raramente têm sido um modelo de coerência e sagacidade. Em segundo lugar, porque uma intenção, mesmo que boa em si mesma, pode entrar em conflito com uma prioridade mais urgente - neste caso, a preservação de uma Europa democrática, que se preocupa com o bem-estar social. E estes são os valores pelos quais a Europa tem lutado, ao longo de muitas décadas.
Era certamente necessário que alguns países europeus tivessem assumido, desde há muito, uma maior responsabilidade económica e uma melhor gestão da economia. O tempo, contudo, é crucial; uma reforma assente num calendário bem pensado distingue-se de uma reforma feita à pressa. A Grécia, apesar de todos os seus problemas de prestação de contas, não estava em crise económica antes da recessão global de 2008 (de facto, a economia grega cresceu 4,6% em 2006 e 3% em 2007, isto é, antes de começar a contrair-se de forma continuada).
A causa da reforma, independentemente da sua urgência, não é bem servida pela imposição unilateral de cortes súbitos e selvagens nos serviços públicos. Porque estes cortes violentos e indiscriminados são uma estratégia contraproducente, dado o gigantesco desemprego e a falência e subaproveitamento das capacidades produtivas das empresas que a quebra da procura provoca. Na Grécia, um dos países que está a ser deixado para trás pelo aumento de produtividade verificado noutros lugares, o estímulo económico através da política monetária (desvalorização cambial), tornou-se impossível pela existência da união monetária europeia, ao mesmo tempo que o pacote fiscal exigido pelos líderes do continente europeu contraria de forma severa o crescimento. Os resultados económicos da zona euro continuaram a diminuir no quarto trimestre do ano passado e as previsões, na altura, foram tão terríveis que a estimativa de crescimento zero no primeiro trimestre deste ano, inscrita num relatório recente, foi amplamente saudada como sendo uma boa notícia.»

Do recente artigo de Amartya Sen, Prémio Nobel da Economia, no New York Times. Encontra-se aqui uma tradução completa do texto, que merece ser lido na íntegra.

3 comentários:

Fausto Simões disse...

«Se fosse necessária uma prova de que o caminho para o inferno se faz de boas intenções..."
Pretender meter a sociedade dentro da economia subordinada aos mercados são boas intenções?

"...de facto, a economia grega cresceu 4,6% em 2006 e 3% em 2007, isto é, antes de começar a contrair-se de forma continuada"
Não será altura de pôr frontalmente em causa o incongruente PIB, até por que vamos de precisar de outro indice capaz de avaliar o tão necessário crescimento economico rumo a um desenvolvimento sustentável?

"...ao mesmo tempo que o pacote fiscal exigido pelos líderes do continente europeu contraria de forma severa o crescimento"
Mas ... não será que só os que não estão na sombra dos mercados é que não pensam assim, desde o princípio desta malfadada história da salvação dos bancos, de uma crise que eles próprios provocaram?

João Carlos Graça disse...

Caro Nuno Serra
O texto do Sen é, na minha opinião, um caso exemplar de "falso implica verdadeiro" ser ela mesma verdadeira.
Passo a explicar. Uma parte dos vícios das premissas com que se labora resulta da sufocante "religião liberal" hoje em dia hegemónica, segundo a qual se torna obrigatório elogiar os supostos “pais fundadores”, mesmo quando isso se encontra em gritante contradição com a "verdade efetiva da coisa": nem Bagehot nem Stuart Mill foram democratas no sentido do que nós entendemos hoje pelo termo. Eram liberais, sim, mas eram, por exemplo, claros adversários do sufrágio universal não ponderado, isto é, do simples "um homem, um voto". Também eram, por exemplo, defensores da “tutela esclarecida” dos povos “civilizados” relativamente aos povos “bárbaros”… isto é, daquilo a que hoje se chama R2P, “responsability to protect”… ou, mais singelamente ainda, se chamaria colonialismo se não fosse politicamente incorreto chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes.
Ah, mas dizer mal de Bagehot ou Mill é lá possível, hoje em dia! Adentro do universo mental liberal, relativamente a tudo isso, estamos um pouco como na célebre anedota do Bocage: “o peido que aquela senhora deu, não foi ela. Fui eu…”. É claro que fui, é claro…
Mas deixemos agora de lado a religião da “igreja liberal universal” e concentremo-nos na variedade ou capela europeia, ou talvez “seita europeísta”. A “união europeia”, e mais ainda a “união económica e monetária” é um projeto democrático relativamente ao qual, depois, aconteceu um lapso, um “ups”, um “desculpem qualquer coisinha” ou algo afim?
Caramba! Deixemo-nos de tretas alucinogénias e tratemos de ler a produção tratadística pelo menos desde Maastricht – e deixo agora de lado o culto das relíquias associado aos “pais fundadores” Monnet, Schuman, et al. Procuremos ler os tratados e a regulamentação subsequente! Pensemos também na filosofia “public choice” associada à ideia de, precisamente, deixar os gregos e os outros sem possibilidade de procederem/procedermos a desvalorizações competitivas. É disso que se trata, sim, mas não só disso!...
O que lá está é democracia? Ou é, muito conscientemente, um empreendimento deliberadíssimo de esvaziamento do conteúdo de democracia existente em estados-nação, eles sim, basicamente democráticos? Alguma vez houve intenção de construir uma “democracia europeia”, relativamente à bondade da qual nos teríamos depois lamentavelmente desviado, ou houve, isso sim, um intuito de pôr no terreno um condomínio político europeu capaz de castrar politicamente as instituições democráticas vigentes à escala nacional? É claro que, em paralelo, se tinha de dar uma quanta música “social”, como está bom de ver, para garantir que o pagode continuava distraído. “Com papas e bolos…”

Nuno Serra disse...

Caro João Carlos Graça,
Admito que possa estar muito mais próximo da verdade, do que à partida se poderia supor, perante a sedutora ideia de uma génese democraticamente perfeita do «ideal europeu».
Assim, para além de assinalar (como o próprio João Carlos faz) a existência de uma trajectória que acentua o pendor não democrático na UE (isto é, não temos propriamente uma linha de continuidade pura entre o início e a actualidade da União), retomo o que me parece mais importante (eu sei, e confesso-o, que é de certo modo uma saída airosa): que se faça do debate da democracia na Europa um desafio de futuro. Aludindo ao Inimigo Público, trata-se quase de dizer: «não foi assim mas pode acontecer».
Um abraço