Dizer da contenção orçamental acelerada que ela encerra o risco de nova recessão, de aumento das desigualdades e de asfixia do estado social, sendo verdade, é uma caracterização enganadora das políticas de austeridade recessiva. A questão não é apenas “o risco” que elas encerram mas antes a sua intenção. As políticas de contenção orçamental acelerada pretendem precisamente gerar efeitos recessivos, aumentar as desigualdades e asfixiar o Estado social. Pretendem e provavelmente conseguem.
Qual é a lógica? Induzir a descida dos salários em termos nominais e reais, para reduzir o consumo, o preço dos bens e serviços de exportação e atrair capitais. Supõem que se isto acontecesse o desequilíbrio da balança de bens e serviços seria corrigido, as necessidades de financiamento externo diminuiriam, obtendo-se deste modo o que a desvalorização cambial que deixou de ser possível permitia alcançar no passado.
A descida dos salários pretendida não é apenas a dos salários da administração pública. Essa descida pode ser obtida por decreto. Já a outra, a do sector privado, é mais difícil. Mas pode ser conseguida com a influência que as decisões salariais na administração pública têm no sector privado, com mais desemprego, uma menor duração e montante das prestações sociais de apoio aos desempregados e a retirada de outros apoios sociais. Com mais desemprego e menos protecção os trabalhadores seriam obrigados a aceitar trabalhar por menos dinheiro. A isto chamam eles com enorme desfaçatez “políticas que tornam o trabalho compensador”.
Para alcançar os seus objectivos a contenção orçamental acelerada deve ao mesmo tempo acentuar as desigualdades. A factura do “ajustamento” orçamental não pode ser paga pelos rendimentos de capital, porque, supõe-se, isso assustaria os capitais que se pretendem seduzir e espantá-los-ia para outras paragens.
Além disso, o Estado social que se supõe insustentável em termos financeiros deve ser emagrecido, sobretudo no sector da saúde e das pensões. A prestação de cuidados de saúde e as pensões devem degradar-se para que floresçam mercados novos e novas oportunidades para os fundos de investimento e as companhias seguradoras em sectores relativamente protegidos da concorrência.
A estranha noção de que a recessão pode ser remédio está para a Economia como o uso de sangrias e sanguessugas está para a Medicina. Baseia-se numa pseudo-ciência económica que vigorou antes da Grande Depressão, foi varrida do mapa depois dela, e renasceu com novas roupagens na década de 1980 do século XX. Essa Economia da idade das trevas cultiva as abstracções e os pressupostos irrealistas e recusa-se a aprender com a experiência.
Foi precisamente a experiência da Grande Depressão que fez compreender que a lógica da austeridade recessiva está errada. A descida dos salários numa só empresa ou num só país pode permitir a esse país (ou empresa) recuperar o equilíbrio vendendo bens e serviços mais baratos. Mas a mesma descida de salários não tem qualquer efeito nas contas externas do país ou no balanço da empresa, ou tem efeitos contrários aos desejados, quando é realizada em simultâneo por todos. Para onde exportar quando todos recorrem em simultâneo a estratégias recessivas como actualmente ocorre na União Europeia? A esta não-correspondência entre o que se passa nos níveis micro e macro da economia veio a chamar-se a “falácia da composição”.
A Economia da idade das trevas pressupõe também que menores salários podem atrair mais capitais. A experiencia mostra, pelo contrário, que os custos salariais, não são de há muito o factor de competitividade que os capitais, pelo menos os capitais que nos interessa atrair, procuram. Os capitais que procuram baixos salários têm muito para onde ir que não a Europa.
As benesses fiscais, pelo contrário, são importantes para os capitais móveis. Mas por um efeito de composição semelhante ao dos baixos salários são inúteis quando todos os Estados recorrem a elas num stip tease social indecoroso como o que actualmente decorre.
Por outro lado, o estado social é sem dúvida caro. Mas a experiência mais uma vez mostra que a provisão privada de saúde e de pensões é muito mais cara, essa sim ao ponto de ser insustentável.
Desmentida pela experiência, descredibilizada pela exposição das suas consequências, a Economia da idade das trevas, foi abalada nos duros dias de crise de 2008 e 2009. Mas quando a falência reemergiu como crise das finanças públicas, recobrou forças e voltou a ocupar o espaço público. Afinal, esta foi a Economia que os muitos economistas que hoje povoam os círculos do poder público e empresarial aprenderam.
Os velhos hábitos de pensamento são os últimos a morrer.
Tão incorrecto como caracterizar a contenção orçamental acelerada a partir dos riscos que encerra é presumir que os governos europeus, incluindo o nosso, adoptam a austeridade recessiva, depois de muitas insónias, só porque os mercados financeiros, o BCE e a senhora Merkel mandam. Na realidade, os ministros das finanças, os burocratas da comissão, os governadores do BCE e dos bancos centrais, autores dos planos que depois são apresentados aos chefes de governo como a alternativa única que “a ciência” determina, educados que foram na Economia da idade das trevas acreditam mesmo que a deflação salarial é o caminho mais curto para os amanhãs de equilíbrio que cantam. Podem ter alguma dificuldade em persuadir colegas que se assustam com as eventuais consequências eleitorais e sociais das sangrias violentas, mas no final têm conseguido.
A Economia da idade das trevas impede-os a todos de ver que a saída para a crise das finanças públicas devia ser procurada por outras vias. Não tinha de ser assim.
Na realidade, uma União Europeia dotada de um orçamento e de um Banco Central capaz de intervir no mercado primário da dívida soberana, capacitada com instrumentos de política económica, atenta tanto aos défices das balanças correntes como aos seus excedentes, e capaz de cuidar de uma inserção na economia global que não servisse apenas os interesses dos sectores exportadores alemães, teria outras opções que não a austeridade recessiva.
Mas uma tal União Europeia só é possível com outros agentes políticos. A Economia da idade das trevas penetrou fundo em todos os partidos do arco da governação europeia. Sacudir a sua hegemonia só é possível com uma mudança do pessoal político dentro dos partidos e com uma mudança da composição política dos parlamentos e governos.
Por isso mesmo, mais errado ainda do que presumir que os governos europeus adoptam a austeridade recessiva a contragosto é pensar que aos cidadãos nada mais resta do que consentir ou mesmo apoiar políticas que não só empurram os custos do “ajustamento” para quem menos pode e merece pagar, como são incapazes de cumprir as suas promessas. No final um Estado e uma economia mais pequenos terão mais dificuldade em fazer face ao serviço da divida. Mais tarde ou mais cedo “os mercados” não deixarão de nos castigar por isso mesmo.
A austeridade recessiva é um plano inclinado. Não deve ser apoiada nem activa, nem passivamente. Tão pouco o devem ser os seus executantes. Os limites estão a ser ultrapassados e para lá deles o que está em causa é própria possibilidade de viver livre e dignamente em sociedade.
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8 comentários:
O melhor artigo que li nos últimos tempos sobre o assunto...
Nem mais!
muito elucidativo, pena que a falacia da composicao se concretize tambem na falacia da eleicao. As ultimas sondagens ainda mostravam o PS a frente certo?
Nunca é de mais agradecer uma boa síntese.
Excelente exercício para compreender onde nos encontramos e que futuro nos espera.Depois das trevas a luz , mas a que preço?.
Muito obrigado
Obrigado Professor. Muitas vezes temo andar a pensar sozinho e o seu escrito faz-me sentir acompanhado.
Concordo com a bem argumentada descrição do processo em curso, mas discordo da explicação segundo a qual se encontraria por trás de tudo a prevalência, nas mentes de quem decide, de uma 'Economia da idade das trevas'. Não é, parece-me, em 'velhos hábitos de pensamento', mas sim em atemporais hábitos de acção (de exercício do poder, de prática da exploração) que reside a causa primeira. É sem dúvida imprescindível uma ‘mudança de pessoal político’, mostrando-se aquele actualmente (e antigamente) em funções incapaz de ver outras vias de saída. Mas essa incapacidade certamente não lhes virá da sua específica ideia de Economia, antes da sua específica participação nas práticas da economia (socialmente constituída, é claro). Por que razões, logo neste campo, haveria a ideia de prevalecer sobre a matéria?
Caro blogger,
Por inexperiência na navegação em sites e blogues de esquerda, encalhei um comentário e uma pergunta a este seu artigo no esquerda.net, que lá ficaram, solitários e sem resposta, até que uma alma amiga, mais experimentada nestas rotas de navegação, me ajudou a trazer o comentário e a pergunta ao seu porto:
Li até ao fim o artigo à procura da prova da tese que apresenta, de que os efeitos recessivos, as desigualdades e a asfixia do estado social são o objectivo das políticas de contenção orçamental, e não uma mera consequência.
E não encontrei...
Encontrei sim uma linguagem fundamentalista religiosa, cheia de alusões às trevas, e um incitamento à mudança do pessoal dos partidos e da sua representação nos parlamentos e governos, sem especificar o método para o conseguir, ou seja, se é dentro do quadro do sistema democrático, ou se é através dos métodos mais musculados típicos dos fundamentalismos religiosos.
Então as políticas de contenção orçamental não são uma tentativa de pagar as dívidas que acumulámos em décadas a viver de empréstimos? Ainda não consegui perceber se a crítica ao monolitismo e a promessa de soluções alternativas que a esquerda tem tentado fazer passar têm por base o pressuposto de pagar a dívida, ou o pressuposto alternativo de dar um calote?
Pedindo perdão pelo atraso, que se deve todo à minha citada inexperiência, reacendo agora a esperança de vir a perceber se acha que a dívida deve ser paga ou se se deve dar um calote nos credores?
Os melhores cumprimentos
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