Thompson ajuda a tornar mais claro o que eu quis dizer quando disse que não existe, nem nunca existiu, um «mercado desregulado». Estou a pensar em duas passagens de «A Economia Moral da Multidão na Inglaterra do Século XVIII».
Na primeira descreve-nos o modelo que em Inglaterra «informava as acções do governo em tempos de emergência até à década de 1770; e para o qual muitos magistrados continuaram a apelar depois disso»:
«Os agricultores transportariam os seus cereais em quantidade para o mercado
local; não deveriam vendê-los no campo, antes da colheita, nem deveriam retê-los
na esperança de preços mais elevados. Os mercados deveriam ser controlados;
nenhuma venda deveria ocorrer antes de uma hora pré-determinada em que uma
campainha tocaria; os pobres deveriam ter oportunidade de comprar grão, farinha
ou pão, em primeiro lugar, em pequenas parcelas e com pesos e medidas
devidamente supervisionados. A certa hora, quando as suas necessidades
estivessem satisfeitas, soaria um segundo toque e os grandes negociantes
(devidamente licenciados) poderiam fazer as suas compras»
Este era o modelo de regulação de referência. O modelo que as autoridades impunham aos proprietários e comerciantes quando eram zelosas, e o que as próprias «multidões» se encarregavam de impor (evocando a lei e o costume) quando o zelo das autoridades fraquejava.
Na segunda passagem descreve-nos já actividade do Duque de Portland por volta de 1800 na repressão à «actividade reguladora» das multidões e em defesa de direitos de propriedade dos agricultores que incluíssem a possibilidade de vender, onde e a quem entendessem, o seu produto. O Duque de Portland, muitas vezes em oposição aos magistrados locais que ainda acreditavam nos valores do velho modelo, defendia que «o remédio para os distúrbios eram os militares ou os Voluntários» e repreendia desta forma um tal Conde Mount Edgcumbe que tinha conseguido um acordo com os agricultores que os obrigava a abastecer mercados locais a preços reduzidos em tempo de escassez:
«… a experiência que tenho… leva-me a dizer que toda a iniciativa desse tipo não
pode, dada a natureza das coisas, ser justificada e tem necessária e brevemente de
agravar a aflição que pretende aliviar… porque impede o Emprego do Capital na
Actividade Agrícola.»
O Duque de Portland, que não podia ter deixado de ler a sua Economia Política, talvez na versão popular da época, não acreditava no velho modelo de regulação e preferia a liberdade dos agricultores em detrimento das necessidades dos pobres. Não interessa agora a razão que não tinha ou que teria. Interessa atentar no facto de estar envolvido em contrariar (se possível proibir) negociações que levassem os agricultores a agir no interesse da multidão e em mobilizar forças repressivas para conter os distúrbios, ou seja, as acções da multidão contra o açambarcamento, a exportação de cereais em tempo de escassez e os preços considerados exorbitantes.
Mas, negando sê-lo, o Duque de Portland era um «regulador». Era ele quem com armas e bagagens estava a reconhecer e a sancionar um direito de propriedade irrestrito dos agricultores e ao mesmo tempo a negar às populações os alimentos cultivados nas terras onde as suas casas assentavam. Só que para ele o tal direito de propriedade irrestrito estava inscrito na ordem natural das coisas e o que ele estava a fazer não era mais do que deixar a natureza fazer o seu trabalho.
Tal como o Duque de Portland há ainda hoje quem veja um mercado onde os direitos de propriedade são irrestritos como um «mercado desregulado». O que se passa é que os hábitos são uma segunda natureza. Habituamo-nos a pensar os direitos de propriedade e os mercados de uma certa forma e eles rapidamente passam a ser «natureza». E a natureza, supõe-se, trabalha por si (e sempre bem, se não a contrariarmos).
Mas os mercados e os direitos e as obrigações, de cuja definição prévia a existência dos mercados depende, não são «natureza», são instituições. Por serem hábitos colectivos as instituições tendem a ser naturalizadas. E. P. Thompson ajuda porque nos permite ver que instituições, como o mercado ou a propriedade, assumiram formas muito diferenciadas ao longo da história e que não existe nelas uma forma «fixa», «natural», «imutável».
Apelei à capacidade e à obrigação de questionar e criticar racionalmente os nossos hábitos, e não a uma «ideologia», quando pedi para repensar as relações Mercado-Estado, pondo de parte, pelo menos por um momento, a imagem do manual de microeconomia de um Mercado que existe, porque existe, num vazio político e institucional e de um Estado que não deve intervir a não ser quando o mercado-natureza falha. O meu ponto é simples: o Estado entra nesta história desde o princípio, sancionando ou limitando os direitos de propriedade e as correlativas obrigações; direitos e obrigações situam-se a montante das trocas mercantis.
E a propriedade, afinal ainda mais fundamental enquanto instituição fundadora da nossa sociedade do que o mercado, também não é «natureza». Dela passo a tratar já que de Mercado e Estado, por agora, basta.
1 comentário:
Acho que deu mais uma noção de mercado enquanto "fonte de conflitos" do que mercado enquanto "plataforma onde os agentes fazem escolhas livres".Um factor que o seu post revela é algo que é muito caro aos liberais: a liberdade e igualdade de oportunidade de acesso aos mercados. No seu exemplo refere que havia agricultores que não queriam que determinados determinados clientes (os mais pobre, suponho) se juntassem a outros (os mais ricos, suponho) para (suponho igualmente) ganhar mais poder negocial. Isto é querer fugir do mercado concorrencial e o regulador tinha por missão evitar que tal acontecesse. Mas repare que também não é do interesse de quem compra (nem rico, nem pobre) que isso aconteça. Quer o rico quer o pobre têm interesse em comprar barato. Por isso a multidão também intervinha. A mão invisível, mais uma vez.
Depois refere que o Duque de Portland entendia que os agricultores deveriam ter "a possibilidade de vender, onde e a quem entendessem, o seu produto." Esta situação é muito interessante pois retrata claramente um conflito de interesses e de liberdades. Os agricultores queriam negar o acesso ao mercado a alguns agentes sempre no intuito de ganhar poder negocial, suponho. Porque o problema não era que os agricultores tivessem necessariamente desprezo pelos pobres. Se tal acontecesse, num mercado aberto, poderiam simplesmente fixar um preço a que só os ricos tivessem acesso. A quem eles provavelmente tinham desprezo era pelos concorrentes que lhes roubassem os clientes ricos. Queriam portanto acentuar as assimetrias de informação e em criar dificuldades de acesso ao mercado. E é aqui que reside o conflito de liberdades - defender a liberdade dos produtores venderem da forma que queiram ou defender a liberdade de intervenção de todos os agentes interessados no processo negocial?
Repare que o mesmo sucede hoje em dia no mercado do petróleo. Só uma pequeníssima parte do petróleo é negociada em mercados de livre acesso. A maior parte é transaccionado em contratos bilaterais. O produtor escolhe a quem e onde vender o seu produto.
Muito boa posta. Está de parabéns por esta série.
Enviar um comentário